Há pouco tempo, eu perdi um querido amigo que não via fazia muito tempo e o Brasil perdeu (praticamente sem conhecer) um dos mais talentosos compositores da música brasileira contemporânea. Coincidentemente, meu amigo e esse compositor talentoso eram a mesma pessoa: Madan. Chorei bicas e lhe prestei homenagens póstumas em meu blogue (aqui e aqui). Pouco tempo depois, fiquei sabendo que meu não menos querido amigo – e outro genial compositor da música brasileira contemporânea – Kléber Albuquerque, que eu também não via fazia muito tempo, iria se submeter a uma delicada cirurgia... do coração! Confesso que fraquejei. Pensei que, se a moda pegasse, eu e música brasileira iríamos sofrer perdas irreparáveis. Felizmente, Kléber saiu dessa; safenado, mas vivo.
Durante esse período em que aguardava notícias sobre a cirurgia de Kléber, meio que em transe passei dias ouvindo seu mais recente trabalho, 10 Coisas que Eu Podia Dizer no Lugar de Eu te Amo. Antes de continuar, e em nome da verdade, preciso confessar: Kléber é um dos artistas mais importantes em minha formação musical; tenho sua obra completa e até hoje recorro a ela em momentos de vazio criativo... ou por puro prazer, claro. Contudo, eu, na condição de grande conhecedor do universo kleberiano, havia considerado 10 Coisas..., em princípio, uma obra menor dentro de sua discografia. Talvez, e é importante frisar, o fato de ver que nenhuma de nossas parcerias havia entrado no disco tenha contribuído pra tal veredicto. Na verdade, eu, como compositor que não canta, ainda que contra minha vontade sou dado a tal falta de grandeza de alma.
Só que a notícia do problema de saúde de Kléber me fez rever meus conceitos. Lembro mesmo que, em conversa recente com meu mano Adolar Marin, em outro contexto, disse-me ele que devemos nos sentir privilegiados por poder ter próximos de nós gênios da música nos servindo de mestres gratuitamente, brindando-nos com sua amizade e sua parceria, mesmo que tenhamos com eles certas diferenças. Tais palavras de Adolar foram um tapa em meu ego e, ao mesmo tempo, um curso-relâmpago de espiritualização. Lembrei-me da canção de Nelson Cavaquinho na qual ele dizia "Me dê as flores em vida/ O carinho, a mão amiga,/ Para aliviar meus ais/ Depois que eu me chamar saudade/ Não preciso de vaidade/ Quero preces e nada mais"; pensei no quanto Chico Buarque anda tomando paulada...
... e cheguei à conclusão de que nossos mestres precisam de menos críticas e mais afagos, e resolvi fazer minha parte, ofertando a Kléber flores em vida. Em seguida, fiquei pensando em qual tipo de texto lhe escreveria. Só que, nesse meio tempo, já estava enfeitiçado por 10 Coisas..., e resolvi escrever sobre esse disco. O fato é que hoje em dia somos rápidos pra julgar e raramente damos segunda chance a uma obra. E há obras que são como certos amores, precisam de um tempo pra conquista. Precisam que antes os compreendamos, sem pressa, como quem, no santuário pagão do amor, despe peça a peça o vestuário da musa antes da comunhão íntima e mais que espiritual, porque celebradora do culto da carne.
O que primeiro me chamou a atenção nesse disco de Kléber foi a leveza que deixa transparecer um estado de espírito muito próximo ao riponga "paz e amor". É um disco cujas canções eu imagino sendo tocadas ao violão em luaus noturnos em que jovens, à beira-mar e ao redor de uma fogueira, celebram a amizade, o amor, enfim, a vida (tendência corroborada pela bela arte gráfica, feita por Kléber em parceria com a designer Vivi Correa). Convenhamos, não é algo muito comum em discos maduros de artistas que, embora tenham décadas de atividades profissionais, ainda não conseguiram chegar ao grande público. A impressão que me deu foi que Kléber ligou o "foda-se" e resolveu brincar de ser feliz, como se fosse realmente um pop star. Se bem que, pras pessoas que o conhecem, ele já é. Se mais não é, o problema não é seu, mas de quem não teve o privilégio de entrar em contato com sua música.
Quando conheci Kléber, ele era já um excelente letrista cujas boas melodias serviam de eficiente muleta pra sua poesia e cuja voz rascante tentava ser entoada à altura das coisas da maior importância que compunha. Tanto que, quando letrava melodias alheias, deitava e rolava. Com o tempo, o instrumentista e o cantor foram conseguindo alcançar a excelência do letrista. As melodias, mesmo quando singelas, foram se tornando mais ricas, e a voz foi ganhando doçura... e dor. Ah, sem falar no arranjador criativo, que transformava a falta de grana em ferramenta de experimentação, o que resultava em produtos finais que eram capazes de surpreender, mesmo que (e principalmente) por meio do minimalismo. Tal excelência lhe permitiu ir além do orgulho intelectual do letrista e se transformar num compositor completo.
Foi aí que Kléber atingiu um grau de genialidade por poucos alcançado, dono de uma originalidade que crava sua digital em tudo o que faz, mesmo quando musica letras alheias (talento do qual algumas vezes tirei proveito). Da mesma forma, aprendeu a explorar os mais variados estilos sem deixar de imprimir neles sua assinatura, do rock à valsa; do samba ao xote; da balada ao sertanejo (o verdadeiro). E este seu 10 Coisas é um dos mais bem acabados exemplos dessa genialidade. Besouro, a canção que abre o disco, é uma espécie de samba de roda com arranjo inusitado e letra que flerta com o paradoxal. A segunda, Brincadeira de Amor, não à toa parceria com um baiano (Sérgio Lima), num Brasil que se merece seria disputada a tapa pelas mais populares vozes baianas.
Procura no Google dá uma saudade da moléstia de um tempo bom que não vivemos naquela cidade do interior à qual nunca fomos, ao mesmo tempo que tem uma letra que contrapõe nostalgia e atualidade. All Star (Single Soul) é um dos melhores exemplos dessa excelência de melodista a que me referi acima, pois se trata de um poema (da maravilhosa maranhense Lúcia Santos) completamente sem métrica que Kléber conseguiu cobrir de notas tão harmonicamente, que chega a parecer que a melodia nasceu primeiro. Vazante talvez seja a obra-prima do disco. Lembro que, quando essa canção venceu a Fampop (Feira Avareense de Música Popular) há alguns anos, ouvi-a e achei um exagero. Claro, ela, tal qual um rio que não tem pressa de desaguar no mar, é daquelas que vão nos corroendo pelas bordas. Não lhe damos importância porque não captamos sua essência e, quando menos esperamos, estamos nela imersos. Canoeiro é lúdica e poética, sucesso absoluto no luau que eu imaginei acima.
Mas minha preferida do disco é, sem dúvida, Maquinário, uma que me roo de inveja de não ter composto. E uma que mais de uma vez me levou às lágrimas, quando a ouvia e traçava um paralelo entre sua letra e o estado de saúde de Kléber. Mais que explicar, vale pôr a letra qui na íntegra. Vocês me entenderão: "Essa tal de poesia/ é coisa que vicia/ e maltrata o coração/ faz rimar fel e folia/ faz amar quem não devia/ dá rasante na razão/ mas em comparação/ com outras profissões/ vê mais sol/ vê mais lá /vê mais dó/ sou poeta/ que sabe que a morte é certa/ e ainda canta/ sou criança/ que sabe que a vida é dança/ enquanto dança/ sou artista/ operário/ operando o maquinário/ desse trem/ de ilusões/ são só canções/ são só canções/ não valem nada, eu sei"...
Ela Tem Fogo possui uma melodia tão contagiante, que valoriza uma letra que ficou uns degrauzinhos abaixo na hierarquia da canção. Permitido é outro clássico do disco. Fosse eu ditador, tornava obrigatória sua execução em todas as residências durante o período de Natal. Um verdadeiro hino ao Amor (com maiúsculo). Sujeito Objeto é uma velha conhecida minha. Tanto, que parece que já faz parte dos clássicos do cancioneiro brasuca (e faz). É uma canção híbrida, cujas letra e melodia foram compostas a quatro mãos com meu também parceiro Gabriel de Almeida Prado. Se Kléber tivesse grana pra pagar jabá, seria a música que estouraria nas rádios. Confiança é prima-irmã de Ela Tem Fogo. Tevê, parceria com Zeca Baleiro (e já anteriormente gravada por ambos), dispensa comentários. Esses dois, compondo em parceria, é covardia!
E não é que o disco, que começa pra cima, termina um tanto lúgubre? Devoluto, parceria com o grande Sérgio Natureza, com uma atmosfera lírica medieval, é de longe a canção mais pungente do disco. Detalhe, apesar de ter letra de Natureza, parece quase uma canção-testamento de Kléber. Ela também conta com participação de Zeca Baleiro, recitando parte do poema. Quando li a ficha técnica, achei meio excessivo, visto que Zeca já havia participado na canção anterior. Porém, depois, quando a ouvi, mudei de opinião. A última, Terra do Nunca, é mais uma parceria com Lúcia Santos. Seu arranjo, dançante e enganosamente alegre, esconde nas entrelinhas um grito de socorro. Quem é que não quer ver, enquanto há luz, o amor de perto?
Como veem, caí numa cilada ao classificar o disco de leve. Não devemos subestimar a dor que o poeta deveras sente, mesmo quando finge que não. Afinal, só ele sabe como "gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama coração".
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10 Coisas que Eu Podia Dizer no Lugar de Eu te Amo (2012 – Sete Sóis)
1. Besouro
2. Brincadeira de Amor
3. Procura no Google
4. All Star (Single Soul)
6. Canoeiro
7. Maquinário
8. Ela Tem Fogo
9. Permitido
10. Sujeito Objeto
11. Confiança
14. Terra do Nunca
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Ouça o CD na íntegra:
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O único problema de ler essas suas crônicas musicais (vou chamar assim, no lugar de "críticas", tá? - poderia chamar de resenhas, mas também não acho que o sejam) é que vai aumentando a nossa lista de CDs (além dos muitos livros) desejados!
ResponderExcluirLá vem mais um pra minha (já extensa) listinha! :)
Beijão,
Danny.
Oi, Danny!
ResponderExcluirGostei do "crônicas musicais". Também prefiro assim. Não são críticas, porque só escrevo sobre discos de que gosto; e não são resenhas, porque não me atenho didaticamente às informações do disco. Quanto ao "problema", admita que é um bom problema, não? rs
Beijos,
Léo.
Belas e justas palavras para um artista completo e muito querido, parabéns pelo texto
ResponderExcluirGrato pela visita e pelo comentário, Caetano.
ExcluirAbraço,
Léo.