Em minha época de criança, não conhecíamos ainda a palavra bullying (tão feia quanto seu significado), mas eu, moleque chegado havia pouco do Ceará, cedo comecei a sofrer com o preconceito e as brincadeiras de mau gosto. Era São Paulo me dando as boas-vindas. Talvez por causa disso tenha – inconscientemente – "trocado" de sotaque e – conscientemente – posto uma máscara paulista. São Paulo faz isso com os bicos de fora: exige-lhes amor incondicional em troca do afeto de madrasta. Lembro de um conhecido paraibano que, certa vez, ao ser indagado sobre seu Estado de origem, respondeu na lata: "Paraibano? Sou não. Fui." Talvez isso ajude a explicar por que, apesar de São Paulo ser a maior cidade nordestina fora do Nordeste, os nordestinos daqui pensam de modo tão diferente do modo como pensam os de lá... principalmente em relação à política.
O fato é que adoeci, adolesci, cresci, sarei e, adulto, já distante do convívio com a coletividade estudantil, fiz as pazes com minha individualidade e voltei a assumir minha condição de cabecinha-chata. Daí que, quando me perguntam, respondo: "Cearense? Não era, mas hoje sou." Até porque a cada dia que passa sinto menos afinidade com "a força da grana que ergue e destrói coisas belas" desse "gigante". Claro, tenho muito a agradecer; tudo o que adquiri (e o que me tornei) devo a São Paulo. Aliás, tudo de bom e de ruim; educação, traumas; sonhos, pesadelos; amores, mágoas; minha música e todo o barulho ensurdecedor que a sufoca... Mas trata-se de uma relação complexa. Tanto que, quando ouço/leio alguém que não mora aqui criticar São Paulo, meu primeiro impulso é correr em sua defesa, como se criticar SP fosse um direito nosso.
Sim, porque São Paulo... peraí, escrevo sobre o Estado, mas queria tratar um pouco da cidade de São Paulo, que penso conhecer um pouco mais. Na verdade, meu maior sofrimento é porque, após morar aqui praticamente a vida inteira, aprendi a amar esta cidade com um amor platônico, desesperado, quase rancoroso. E, apesar de fazer o máximo possível pra tornar tal amor recíproco, é sempre debalde. Mas admito que São Paulo reúne qualidades únicas dificilmente encontradas em outra metrópole brasuca. As opções e facilidades são muitas, múltiplas; aqui, quem procura, literalmente, acha. De cultura a consumo, de gastronomia a boemia (ou boêmia, como queiram), de trabalho a lazer etc. e tal. Falta só uma praia, mas não temos do que reclamar, pois ela está logo ali, a uma horinha de estrada (assim, quando voltamos, deixamos a areia lá).
Ou seja, São Paulo tem seu lado maravilhoso. E agora voltemos ao Estado como um todo. O problema é que nenhuma unidade federativa age por si só; ela depende das pessoas que moram nela. E é aí que o rabo torce a porca: o paulista, apesar da mistura, é (com raras exceções) extremamente conservador, reacionário mesmo, sobretudo quanto mais nos afastamos da capital. Nos interiores ainda vemos aqueles típicos subtexanos, machões endinheirados que dirigem carros mais altos que eles (alguns precisam de escadinha ou impulso pra subir neles); gostam de rodeios ao som de música sertaneja pasteurizada; vão à missa, mas querem mais é que pobre e preto se explodam (e nordestino volte pra seu cafundó de origem); são coronelistas até a medula, contrários a tudo que represente mudança; e, como Maluf tá sujaço, trocaram-no pelo alckmista, mas conscientes de que a troca foi pra pior.
Mas na capital também há muuuuuitos tipos como os supracitados. Só que esse paulistano tão endinheirado quanto atrasado se acha um cidadão do mundo, gosta de ir pros Istêites torrar a grana com o suprassumo do supérfluo, só pra mostrar aos amigos em jantares chiques; coleciona brinquedinhos eletrônicos tanto quanto descarta amizades; se sente piloto de F1 no trânsito e não dá passagem nem pra ambulância... sem falar que dirige gritando urgentes desimportâncias ao celular. Enfim, a lista é longa. E não vou nem falar de sua consorte e sua prole, senão não acabo hoje. Quer saber? Na real, essa categoria de "cerumano" que acha que fala inglês, mas não domina sequer o subjuntivo do português ("quer que eu vou/faço/ligo?"), essa galerinha que é fã de Huck & cia., tem mesmo é, como cantou Caetano, "uma vontade fela da puta de ser americano".
E quanto mais o tempo passa e o paulista engorda seus lucros, mais umbilicalmente reaça fica. Nesse período entre pré e pós-primeiro turno, caminhando pelas ruas, tenho ouvido tanta abobrinha, que dá até vontade de vomitar. Ou, pior, de me mandar. Sem contar o tom raivoso de muitas falas. Em choque, fico sem saber se é maior o medo ou a vergonha. Medo porque venho notando um crescimento nos comentários e atitudes nazistas; vergonha porque não consigo explicar como, em pleno século XXI, após tantas conquistas e melhorias, a população reelege um governador que representa a intransigência, o desrespeito aos professores e aos cidadãos, uma polícia despreparada e violenta, escândalos de trensalões varridos pra debaixo do tapete etc.; e ainda tira do Senado Eduardo Suplicy, de longe o político mais ético e honesto do País, e coloca em seu lugar José Serra, conhecido por não concluir mandatos...
Mas, se fosse só isso, ainda não seria o fim do mundo. O pior (e o mais inexplicável) é a falta de vergonha de apresentar pra toda a nação nossos três mais votados candidatos a deputado federal: Celso Russomanno, Tiririca e Marcos (in)Feliciano. Quer dizer, pensando bem, até entendo os votos em Tiririca; visto que há uma grande parcela da sociedade que perdeu por completo a fé nos políticos, votar em Tiririca representa o desprezo do eleitor por essa instituição. Claro, sem falar nos retardados mentais, aqueles que acham que estão zoando com a cara de todo mundo. Mas até isso eu entendo, o que não entendo é que os outros dois supracitados estejam no topo da tabela. Ah, e, claro, não poderia me esquecer de citar o emérito paulista Paulo Maluf, que, mesmo com a candidatura impugnada, ultrapassou os 250 mil votos. Às vezes tenho a impressão de que não se trata de uma eleição, mas de um show de horrores!
Creio que há dois tipos distintos de eleitores responsáveis por esse triste quadro político que ora São Paulo representa: de um lado, os pseudoesclarecidos, aqueles que, por não terem ideia própria, compram as oferecidas por órgãos como Rede Globo, Veja, Folha de São Paulo e quetais; do outro, os que não se informam, não leem, não pensam e, quando muito, conseguem digitar sem errar os números que os pastores de sua igreja recomendaram. E, ensanduichados entre estes, sobramos nós, os bicos de fora, os que ainda perdemos tempo sonhando com um Brasil com menos desigualdades, intolerâncias e ódios, nós, os contrários à homofobia e ao racismo, os pró-aborto, os favoráveis ao casamento gay e à descriminalização (e, por que não?, legalização) das drogas, os... Pensando bem, melhor parar por aqui. E desculpe qualquer coisa aí, sagrada família paulista.
PS: Por meio de fonte fidedigna, fiquei sabendo que, há exatos dois anos, após Fernando Haddad ter sido eleito prefeito de São Paulo, muitos respeitáveis paulistanos, indignados com tamanha ignomínia, picaram a mula e resolveram fixar residência no Rio de Janeiro, transferindo pra lá, inclusive, seu local de votação. Está explicado, portanto, o motivo de o excelentíssimo senhor Jair Bolsonaro ter sido o candidato a deputado federal eleito com maior número de votos nesse Estado. É a força paulista exportando suas convicções!
***
Pra terminar, um presente aos paulistas em geral e aos paulistanos em particular, um soneto duplo que compus há alguns anos, mas que acho que vem bem a calhar com este nosso momento político. Atualmente, o único verso que ficou obsoleto foi o que diz que "a chuva mata mais do que chacina", por motivos óbvios...:
SONETO PAULISTANO
Léo Nogueira
I
Lá, onde o preconceito faz quermesse,
Onde a felicidade é uma oração
Lá, onde, em se plantando, nada cresce
Ali plantei também meu coração
Um reino existe ali, desencantado
Envolto em névoas e poluição
Pra lá eu sempre volto, resignado
Na hora em que me arrancam do avião
A chuva mata mais do que chacina
As árvores desabam nas esquinas
O céu é um manto negro cor carvão
Barulho e caos nos servem de calmante
Os suicidas sentam-se ao volante
O celular engana a solidão
II
A juventude, atrás da tatuagem,
Vai maquiando sua frustração
O mar, ali, não passa de miragem
E os cães morrem de raiva ou depressão
Cidade de infeliz geografia
Onde infelizes comem macarrão
Obesos e brindando à hipocrisia
Que apelidaram civilização
Cidade aberta a todos, noite e dia
Explodem vidas na periferia
E o sangue escorre, inútil, pelo chão
São Paulo é meu futuro do passado
Com quem eu faço amor, sem ser amado
Ali plantei também meu coração
***
Léo Nogueira
I
Lá, onde o preconceito faz quermesse,
Onde a felicidade é uma oração
Lá, onde, em se plantando, nada cresce
Ali plantei também meu coração
Um reino existe ali, desencantado
Envolto em névoas e poluição
Pra lá eu sempre volto, resignado
Na hora em que me arrancam do avião
A chuva mata mais do que chacina
As árvores desabam nas esquinas
O céu é um manto negro cor carvão
Barulho e caos nos servem de calmante
Os suicidas sentam-se ao volante
O celular engana a solidão
II
A juventude, atrás da tatuagem,
Vai maquiando sua frustração
O mar, ali, não passa de miragem
E os cães morrem de raiva ou depressão
Cidade de infeliz geografia
Onde infelizes comem macarrão
Obesos e brindando à hipocrisia
Que apelidaram civilização
Cidade aberta a todos, noite e dia
Explodem vidas na periferia
E o sangue escorre, inútil, pelo chão
São Paulo é meu futuro do passado
Com quem eu faço amor, sem ser amado
Ali plantei também meu coração
***
Depois dessa, "vou-me embora pra pasárgada...."
ResponderExcluirBeijos!
Vamos todos, Valéria.
ExcluirBeijos,
Léo.