Trinca de Ouro: 11) Folk na Kombi, Iris Salvagnini e Sander Mecca

Há muito se fala no fim do CD físico. Eu, que sou da época do LP, do qual, admito, tenho saudades, posto-me como voz dissonante em relação a esse assunto. Sou favorável a tudo o que apareça pra facilitar nossa vida, mas ainda defendo a bolachinha (como defendi a bolachona), nem que seja apenas por questões afetivas. Contudo, a Terra gira, a vida segue e, como diz Zé Simão, quem fica parado é poste. Por isso, escolhi desta feita, pra tirar o pó desta coluna, três parcerias minhas lançadas (por ora) em plataformas digitais. Vamos a elas:

1) CAFUNDÓ

Tenho profundos carinho e admiração por meu mano Bezão, um cara pra cima, do bem (de verdade, não de estampa), cheio de empatia, daqueles que saem com elegância de quaisquer debates ou saias justas, e, sobretudo, um pusta cara talentoso. Estive em vias de escrever sobre ele em minha coluna Ninguém me Conhece quando o gajo ainda fazia parte da banda Rossa Nova, só que atrasei, cada um dos membros foi cuidar de sua vida, e a oportunidade se perdeu. Recentemente, soube que ele formou nova trupe e hoje em dia anda pra cima e pra baixo viajando de kombi pra tocar nos mais diversos recantos do país com seu Folk na Kombi. Os caras são um arraso! Talentosos, engraçados, donos de um baita som alto astral etc. e tal. Dessa vez, vou tentar não perder o bonde, digo, a kombi! Me aguardem!

E calhou que os muchachos lançaram há pouco nas plataformas digitais seu CD/DVD Um Filme de Música (veja na íntegra aqui), gravado na Gargolândia, estúdio de outro querido parceiro: Rafael Alterio, o Garga(!). De quebra, o repertório conta (pra orgulho meu) com a canção Cafundó, parceria minha com Bezão, feita quando o Rossa Nova já tava meio que indo pra roça. Lembro que, na mesma tarde em que a finalizamos, ainda compusemos mais duas, numa espécie de celebração lírico-pagã em homenagem ao deus Baco, entre algumas garrafas de vinho que se secavam misteriosamente à medida que molhávamos as notas. Contei um pouco dessa história aqui. Bem, mas deixemos de prosa e vamos à canção:

CAFUNDÓ
Bezão - Léo Nogueira

Uma coisa somos nós
Outra coisa sou eu só
Você me levou a voz
E eu fiquei com esse nó

Uma coisa somos dois
Outra coisa é essa dor
Sem você aqui, o sol se pôs
E até o luar minguou

Não tem sol pros girassóis
Nem tem flor pro beija-flor
Ficam dedos, vão-se anéis
Foi você, ficou o amor

Não tem centro sem calor
Nem Madri, nem Marajó
Tudo é sempre pranto pronde eu for
Todo canto é cafundó

***

2) CRUZEIRO

Esta é uma de minhas primeiras canções feitas em parceria com Kana, e é um tanto autobiográfica. Na época, já engatávamos uma relação, digamos, complexa. E eu, sempre muito exigido, me meti a (de forma até meio sacana) entrar numas de desabafar nos versos desta Cruzeiro, que acabou ficando de fora do primeiro disco dela, Do Japão ao Ceará (notem abaixo que o título do disco saiu de um verso dessa canção), mas entrou no seguinte, Imitação. Anos depois, meu parceiro Sydney Valle, que na época estava à frente da produção do segundo CD dessa grande intérprete que é Iris Salvagnini, contou-me que lhe havia mostrado o Imitação e ela havia se encantado justamente com Cruzeiro, que acabou sendo gravada (para a nooooossa alegria!) neste lindão e sofisticadésimo Pétalas da Mesma Flor. Ouçamo-la:

CRUZEIRO
Kana - Léo Nogueira

Amor, amanhã
Eu vou te cobrir
Com roupas de grife,
Flores, rubis

Amor, amanhã
Vou encomendar
As coisas que o dólar
Pode comprar

Vou beijar teus pés
E falar inglês
Só pra te traduzir love

Vamos num cruzeiro pelo mar
Amar do Japão ao Ceará

Mas, ao menos hoje, por favor
Deixa que eu seja como sou!

***

3) UM PÁRIA

Não é segredo pra ninguém que quando conheci o mano Sander Mecca fiquei embasbacado não só com as abençoadas cordas vocais do gajo, mas também com sua visceral interpretação das canções que cantava. Aliás, ele é desses que têm o dom de se apropriar de uma canção alheia e a tomar pra si, praticamente a transformando numa canção nova. Até brinquei dizendo ser ele nosso Cássio Eller, mas, brincadeiras à parte, a associação se deu pelo fato de ambos "chutarem o balde", mas mano Mecca é originalíssimo, daí que chamá-lo de "Cássio Eller" é reduzir sua arte.

Pois bem, fizemo-nos amigos e, mais que parceiros, comparsas, e ele se agradou de meus versos e passou a interpretar várias de minhas canções. Animado e acarinhado, falei dele pra outro mano, Zeca Baleiro, que também se empolgou com o gogó do garoto, e foi assim que resolvemos compor uma canção especialmente pra ele. Nasceu dessa ideia Um Pária, que acaba de ser lançado no EP Não-Estrutural (assim mesmo, com hífen), trabalho lindão de Mr. Mecca sob a batuta de Gabriel Póvoas. E notem como sou abençoado: as três canções do EP têm minha modesta pessoa como coautor. E mano Baleiro ainda teve a gentileza de participar em outra canção, Dia de São Nunca (que virou clipe – vejam aqui), agora como intérprete (ouçam as três aqui). Paro por aqui pra deixá-los com:

UM PÁRIA
Zeca Baleiro – Léo Nogueira

Você me acha um pária
Só porque eu sei pairar com elegância
E às vezes eu dou área
Que é pra sentir o aroma da distância

Eu posso ser otário
Aos olhos dos imbecis
Invento o meu itinerário
Conforme a intuição me diz

Não sou um derrotado
Vitória é o que junto dos fracassos
Já o cara do seu lado
Meu bem, os medos dele são de aço

Eu posso ser otário
Aos olhos dos imbecis
Invento o meu itinerário
Conforme a intuição me diz

Vou pagar pra ver
Se o mar não dá no cais
Se eu morrer tanto faz
Você nem vai saber

Eu quero é viver
Do meu jeito voraz
Agora ou nunca mais
Sozinho ou com você
Vem

PS: Mecca teve a ideia de recitar algo no meio da canção, então pra isso me pediu que compusesse os versos adicionais que seguem:

Não me incomoda que me vejam como um pária

Tô me lixando por estar fora do páreo

Palavras são não mais que letras proletárias

Num reino arcaico cujo rei é o dicionário

Já eu, meu bem, não caibo em nenhum adjetivo

Se me rotulam, dou um passo e vou além

Em meio aos mortos, me contento em estar vivo

Que tal você ressuscitar comigo? Hem?

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