Era uma vez uma linda garotinha cuja maior brincadeira consistia em fazer e desfazer as malas. Só dos 4 aos 17 anos, por exemplo, tivera que se mudar de cidade pelo menos dez vezes, daí que se viciara em tal passatempo. Sendo filha única, suas melhores companheiras eram as bonecas, que ora eram suas irmãs, ora filhas, de acordo com seu estado de espírito. Por isso, a cada nova viagem, sua maior tristeza era o momento de encaixotá-las. Chegava a fazer uns furinhos nas caixas pra que as pobrezinhas pudessem respirar.
Quando ameaçava se adaptar à nova cidade, nem bem começava timidamente a conquistar novas amiguinhas na escola, lá ia ela de novo fazer as malas... E lá iam as coitadas das bonecas outra vez respirar por pequenos orifícios. O fim desse agradável joguinho era o ato de desfazer as malas em nova cidade e, assim, libertar suas irmãs/filhas. O inventor do joguinho fora seu pai, que, por sua vez, negava a patente, outorgando-a ao patrão. Houve uma vez, contudo, que foi sua mãe que, de tão acostumada que estava a esse jogo de tira e põe, fez as malas e se mudou novamente. Porém, dessa vez, esqueceu-se de levar a família... e de voltar.
Um dia, como num piscar de olhos, a linda garotinha cresceu. E, como já não coubesse mais em seu quarto, quando atingiu a maioridade, já senhora de seus atos, a primeira coisa que escolheu fazer por decisão própria foi... as malas. Mas dessa vez, só. Como estava acostumada a não ter tempo de dizer adeus nem às amigas muito menos aos garotos com quem que eventualmente flertava, também lhe foi muito natural não se despedir do pai. Não deixou um bilhete sequer. Não se sabe ao certo se foi por esquecimento ou intencionalmente, mas o fato é que deixou pra trás também suas irmãs/filhas.
A menina, agora adulta, começava uma nova fase de sua vida. Prometeu a si mesma que nunca mais iria ter que fazer e desfazer malas, porém sucumbiu ao destino, que, dono de um senso de humor muito peculiar, insistia em se divertir de situações que não tinham a menor graça. Após ter que, contra sua vontade, fazer e desfazer as malas mais duas vezes, abandonou a promessa e abraçou os humores do destino. Conseguiu um emprego noturno que, além de lhe proporcionar uma profissão que não lhe requeria experiência, permitia um vestuário mínimo; por causa disso, e como se tratava de uma profissão dada a altos e baixos (além do sobe e desce), cada vez gastava menos tempo fazendo as malas.
Teve sorte. O que em outra profissão poderia ser considerado assédio sexual nesta lhe resultou em casamento. Mas a sorte durou pouco. Após um par de anos senão de todo felizes ao menos tranquilos, como não conseguia conceber, e como o marido voltasse pra casa cada vez mais tarde (e menos sóbrio), pra ocupar as tardes livres e não depender financeiramente deste, começou a trazer trabalho pra casa. Existem profissões às quais não se abandona tão facilmente. Tudo ia bem até que um dia o marido voltou mais cedo pra casa e a pegou, digamos, com a mão na massa (não exatamente a mão...). A mala que levou consigo dessa vez continha muito pouca coisa.
Há profissionais que escolhem seu ofício e há outros que são por ele escolhidos. Contudo, em ambos casos há ofícios que estipulam (ainda que não explicitamente) um limite de idade. E nossa errante personagem (ex-garotinha linda), nessa volta ao batente, encontrara-se de repente nessa ingrata posição. Porém, calejada pelo destino, não se fez de rogada e, na impossibilidade de ser contratada por alguma empresa do ramo, tornou-se autônoma. O problema desse tipo de autonomia é que o profissional passa a deparar-se com certos empecilhos no que se refere ao aluguel de imóveis. E nossa heroína não viu outra alternativa que não fixar residência do lado de fora dos portões.
Por falar em heroína, a protagonista de nosso conto de fadas, vendo-se emancipada e dona do mundo, passou a colecionar novas amizades, que a iniciaram num universo de deliciosas brincadeiras que, pra sua felicidade, propiciavam-lhe viajar sem precisar fazer e desfazer malas. Foi por essa época que mudou drasticamente seus hábitos alimentares, transformando-se numa espécie de neovegetariana. Em contrapartida, foi também quando fez as pazes com suas amiguinhas de infância, as bonecas, a quem, apesar de carecer de dinheiro pro resgate, aprendeu a resgatar dos lixões.
Com o tempo, completamente adaptada à nova vida, sentia-se cada vez mais leve, quase a ponto de aprender a levitar. Havia dias mesmo em que acreditava que suas bonecas cresciam e ficavam cada vez mais pesadas; eram ocasiões em que fingia não notar que faltava um braço a uma, um olho a outra e que a muitas lhes faltavam mesmo roupas. Nada disso importava, pois aprendera que os amigos valem pelo que são, não pelo que vestem (incluídas nessa máxima as irmãs/filhas). E essa era, provavelmente, a maior verdade de todas. Porque, quando fez sua última e mais espetacular viagem (aquela pra qual, além de não carecer de fazer mais as malas – que já não tinha –, tampouco necessitou levar o próprio corpo), foram elas, as bonecas, as únicas que ficaram ali, ao lado de sua inanimada carcaça. Uma delas parecia chupar-lhe o bico de um seio.
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Léo,queridão!
ResponderExcluirVocê foi muito generoso me enviando este conto espetacular. Quem sabe ele entre na próxima edição de nosso Doido,Eu?
Guy Maupassant deve ter ficado orgulhoso de você.
Amei!
Beijos
Lu Prado
Sabia (sem falsa modéstia) que você ia gostar, queridona. E "adelante" com esse projeto! Tô por aqui esperando as instruções.
ResponderExcluirBeijão do
Léo.