Ricardo Stuckert/Instituto Lula |
Deus é brasileiro. O Brasil é o país do futebol, do Carnaval, do futuro! Os estrangeiros vêm pra cá pra desfrutar um pouco dessa felicidade toda, dessa inexplicável alegria, que beira a euforia. Que coisa estranha... Contudo, tem certa lógica, pois deve fazer bem ao turismo vender esse sonho paradisíaco aos tristes endinheirados do mundo. Mas que tudo isso tem muito de folclore, ah isso tem. Caso contrário, sendo que a maioria dos brasileiros vive em condições precárias, o segredo da felicidade estaria em desfazer-se de posses pra atingir esse nirvana.
O que me parece é que o brasileiro, mais do que realmente ser feliz, assimilou bem essa personagem que tanto cativa o estrangeiro, essa máscara que ostenta sempre um sorriso de orelha a orelha (e uma boca banguela), pois isso não me cheira a felicidade, e sim a estupidificação. É como se fôssemos todos hipnotizados, levados a crer que é uma sorte viver na m... iséria. Lembro-me de que, quando eu era adolescente e morava com meus pais, havia uma janela de casa que dava pros fundos através da qual eu podia ver, pra além do muro, alguns barracos. Num deles morava um casal com três crianças que costumavam dançar descalças (pisando mesmo num córrego) cantando um hit da Xuxa cuja letra dizia "todo mundo tá feliz/ todo mundo quer dançar" etc. Era surreal (o Tietê não é mais belo que o córrego que corre por meu barraco)!
Enfim, fomos condicionados a acreditar em nossas mentiras, em nosso próprio estereótipo. Em minha tese de conclusão de curso usei, entre outros, o Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, há um parágrafo genial que resume um pouco o que levantei aqui: "No 'homem cordial', a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: 'Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro'."
Ou seja, é difícil imaginar o brasileiro como um indivíduo, pois ele é mais um coletivo, um cérebro por todos e todos por um. Precisamos nos filiar a algo pra nos sentirmos pertencentes a algo: uma escola de samba, uma torcida organizada, um templo, um clube pra frequentar nos fins de semana, os amigos do boteco, do dominó, do baralho... É proibido estar só! Contra a solidão (e, consequentemente, o pensamento) temos o celular, o facebook, o twitter; podemos postar, onde quer que estejamos, fotos em nosso perfil que mostrem a todos os nossos amigos/seguidores o quão somos felizes... Exemplo: segunda-feira, assistindo ao novo show de Zeca Baleiro, reparei que uma moça sentada atrás de mim praticamente não prestava atenção, ocupada que estava em subir fotos do artista pra sua página do face. Os músicos quebrando tudo e ela nem se abalava, concentrada em sua necessidade de demonstrar a seus amigos que ela estava... ali!
O que me motivou a escrever estas surradas linhas foi a foto acima, que ilustrava uma reportagem da Folha de São Paulo acerca da visita de Lula a um hospitalizado Sarney. Vendo-a, voltei no tempo e fiz um balanço de minhas posições políticas. Desde que me entendo por gente sou petista. Tive mesmo um tio que foi candidato a vereador pelo PT. Com o tempo, fui perdendo aquela vitalidade socialista, sobretudo depois de viagem de duas semanas que fiz a Cuba. Sim, votei em Lula e tenho o maior respeito por sua história, mas talvez sua maior qualidade tenha sido seu maior defeito: carismático como sempre foi, foi conversando com fulano, dobrando beltrano, oferecendo cargos pra sicrano, ou seja, pra se manter no poder teve que fazer muitos conchavos, chegando mesmo a se misturar com políticos representantes de um passado manchado de sangue.
Lula e Sarney, dois nordestinos, porém cada um representante de uma extremidade: aquele, um retirante vindo de família pobre; este, um "coronel", um cacique de uma oligarquia exploradora. Os dois juntos nessa foto, lançando-se olhares carinhosos, são dois homens cordiais, proibidos de se dizerem o que pensam, em nome das "relações". Lula fez muita coisa boa pelo País... Vá lá, FHC também fez, mas Lula foi mais longe, por sua história. Virou the guy, paparicado pelas pessoas mais influentes do mundo, de Obama a Bono. Mas, a que preço? Quem é amigo de todos...
E assim, nosso legado hoje é essa hipocrisia de sorrisinhos e mentirinhas. Dizemos "me liga", "aparece em casa", "a gente se vê", sabendo que não queremos nada disso. Temos que tomar cuidado com o que dizemos, pois as relações não sobrevivem a uma bela verdade lançada no meio das fuças do interlocutor. Daí que os amigos é que são o máximo... E todos são amigos! Ninguém está preparado pra ouvir verdades. Na verdade, não somos amigos de ninguém, somos puxa-sacos, principalmente de quem está por cima da rapadura. Mas não se trata apenas de política. Queria até fugir desse assunto aqui, pra não fazer ebulir a bílis de raivosos...
Troquemos o foco, pois. Falemos de música, que é tema mais pertinente a este espaço. Na música não é diferente. Não importa quem tem talento, o importante é se fulano pertence a meu clube. Pra que levantar a bola de um neguinho da ralé? Dizemos "sim, sim, é talentosíssimo", depois lhe viramos as costas e vamos lá tratar de que esse tipinho não nos roube o osso. Afinal, ele não é da nossa turma. Por essas e outras aplaudo o surgimento de pessoas como o supracitado Baleiro, que tem a coragem de vir a público criticar tanto o chororô do mocinho que teve seu reloginho roubado quanto essa necessidade que Caetano tem de se ver obrigado a dar sua opinião a respeito de tudo, como se fosse imprescindível a todos.
Zeca escreveu que não foge de uma boa discussão. E discutir é argumentar. Mas as pessoas que têm opinião diferente e não conseguem contra-argumentar ofendem-se, procuram desqualificar não a opinião do oponente, mas a ele próprio. Geralmente são pessoas que dizem "Quem é esse? Nunca ouvi falar dele". E essas mesmas pessoas costumam ser aquelas que, tentando se safar de alguma saia justa ou querendo obter algum benefício, ameaçam arrotando um "Você sabe com quem está falando?". Como se a lei não fosse igual pra todos (e não é).
Mas ainda bem que Zeca não está só. Seu parceiro Chico César não fica atrás e põe o dedo em muitas feridas, tendo sua música como ferramenta. Respeitem meus Cabelos, Brancos e Odeio Rodeio são dois exemplos já clássicos de até que ponto pode chegar a ousadia do moço em dizer sua opinião por meio de canções, sejam essas opiniões a respeito de racismo ou de selvageria contra animais. Mas ainda são poucos aqueles que têm coragem de dizer o que pensam. Já cantava Sabina: "por decir lo que pienso sin pensar lo que digo/ más de un beso me dieron (y más de un bofetón)". A maioria, embora queira o beijo, teme o bofetão, teme incomodar, sabedora de que os que incomodam são, em geral, varridos pra fora da cena. Lobão que o diga.
Afinal, somos todos cordeiros. Aliás, quem falou não tá mais aqui.
Cordiais saudações.
"Rio, 7 de setembro de 31."
Parabéns pelo texto, essencialmente verdadeiro, e principalmente, no que tange às considerações do meio musical.
ResponderExcluirGratíssimo, AC!
ExcluirAbração do
Léo.
Tristes tempos em que se perdeu a vergonha de fazer marketing com a doença. United Collors of Lulatton...
ResponderExcluirAlancito, mi viejo, se perdeu a vergonha de muita coisa neste país, e isso não é privilégio de um único partido político, caso contrário seria mais fácil. As lambanças que o PSDB vem fazendo em Sampa também são dignas de nota, mas, como não quero transformar meu blog em um espaço político, apenas sobrevoo a área, sem aterrissar. Afinal, há areia, mas é movediça.
ExcluirAbração do
Léo.