Entre os leigos há muitas dúvidas e muitos equívocos no que se refere à feitura de uma canção. Por exemplo: mais de uma vez, estando eu em alguma roda de amigos ou familiares (ou mesmo numa entrevista), em companhia de Kana, apresentaram-nos a terceiros como sendo eu o compositor-marido e ela a cantora. Ora, gente, não é porque ela canta que não pode compor, né? Em outros casos, quando a cantora não compõe, dizem que a música que ela canta é dela. É muito comum alguém falar, por exemplo, que adora aquela canção da Gal, da Bethânia, da Elba, enfatizando a qualidade da letra, sem saber que as três acima não compõem ("A Bethânia é f..., ouve essa letra!") ...
Outras vezes, entre os curiosos, rola aquela pergunta: "como é esse negócio de fazer canção? O quê que vem primeiro?". Ué, vem primeiro o que a inspiração manda que venha (ou a necessidade, quando a canção é composta pra cinema, teatro, comercial de TV...). Vejam meu caso: digo que sou letrista pra encurtar caminho, mas me considero mesmo é compositor. Ok, faço mais letra que melodia, mas vira e mexe dou pitaco na melodia do parceiro, em muitas ocasiões chego mesmo a interferir na linha melódica de uma canção, e em outras... Bem, esta Trinca de Copas vai tratar justamente desses casos em que minha colaboração numa parceria vem, digamos, enviesada. Vamulá:
1) GERÚNDIO
Adolar, a água e fogo |
Tô sabendo (por boca do próprio - não do mesmo!) que Adolar Marin tá de disco novo, todo animado e prometendo polêmicas. Disse mesmo que as pessoas vão se surpreender com o resultado do trabalho. Isso me deixou feliz e me fez recordar de uma época em que as coisas não andavam tão iluminadas pro lado dele.
Foi assim. Há alguns anos Adolar fazia um circuito de shoppings, tocando MPB, obviamente. E, numa noite bissexta em que fui convencido por Kana a ir a um deles comprar ou comer sei lá o quê, acabei me deparando com ele, que cantava num palquinho improvisado, acho que num restaurante alemão. Notei que ele cantava sem tesão nenhum, meio baixinho, como se não quisesse atrapalhar os "ouvintes". Parecia mesmo triste e/ou ensimesmado.
Alguns dias depois nos falamos por telefone e eu lhe dei uma senhora bronca. Minhas palavras foram mais ou menos essas: "Adolar, meu velho, você é o Adolar! Onde quer que você cante, o que quer que você cante e pra que publico seja! Imagina se numa noite dessas vai jantar por ali um cara que poderia mudar sua vida e o encontra com aquela cara de b... Ânimo, rapá! A gente tem que estar sempre preparado, pois nunca se sabe quando pinta a grande oportunidade!"
Pois bem, dias depois abro meu e-mail e encontro uma letra de Adolar com os dizeres "é pra você". Li-a, achei-a bem bonita e lhe escrevi agradecendo por ele a ter dedicado a mim e pedindo pra ouvi-la na canção. Ao que ele me respondeu que era minha MESMO, ou seja, era pra EU fazer a melodia! Adolar já sabia que de vez em quando eu cometia uma ou outra melodiazinha, mas receber dele, um baita melodista, uma letra pra musicar, parecia-me ao mesmo tempo uma honra (minha) e uma insanidade (dele).
O fato é que passei dias abrindo o tal e-mail e olhando pra danada da letra, como que abobalhado, esperando que alguma mágica se desse. E nada de a mágica vir... Até que me peguei, alguns dias depois, ouvindo Xote de Navegação, de Dominguinhos e Chico Buarque e... Eureca! A linha melódica da canção me remeteu a outra melodia, que me remeteu à letra de Adolar, e lá fui eu, às pressas, à cata da letra...
Toda criação musical beira o plágio. Sempre há ecos de outra canção em nossa cabeça quando compomos uma nova... Ou talvez seja só deficiência minha, como não-músico. Pra encurtar, terminei a tal da melodia e mostrei-a pra Élio Camalle (foi outra da época em que dividíamos o aluguel), que, desinteressadamente a harmonizou e cantou... Até chegar numa parte em que ele achou que a melodia não estava legal e resolveu "resolvê-la". Moral da história: entrou na parceria! Triceria. Ah, mas valeu, inclusive a introdução foi dele. Adolar adolou, digo, adorou... Não a ponto de a gravar, claro, mas isso é outra história. Ouçam-na com o próprio (não com o mesmo!):
GERÚNDIO
Ando sentindo muito, fazendo pouco
Pouco caso da vida, vida que me faz tudo sentir
Ando sentindo tanto, me afogo em água e "fogo"
Coração de amianto, sonolento em pleno jogo
Ando sentindo pouco, faltando muito
Muito fiz por fazer, prazer que tem ficado só pra ser
Ando falando à beça, me peça um tom, um tema
Não tema, meu amor, o meu amor é um poema
Ando por aí, tô em nenhum lugar
Lugar pra mim é aqui, que é qualquer "estar"
Ando no gerúndio, determina a ação
Sem lar, sem latifúndio, meu mundo é a canção
***
2) LEVE LEVE
Daí que madrugada dessas estava eu 30% acordado e 70% na Dreamlândia, com o fone de ouvido esquecido nas zoreias. As canções iam e vinham aleatoriamente, até que Zeca Baleiro (é, ele de novo) mandou um "meu amor, minha flor, minha menina/ solidão não cura com aspirina" etc. e tal... E não é que uma danada de uma melodia veio me trazer pro lado de cá da existência? E a enxerida já veio com letra e tudo!
Gabriel, fazendo cara de fácil, pra ser levado |
Rapaz, quando isso acontece dá uma reiva! Quer dizer, é legal e tudo, dá a impressão de que a gente é especial, que tem algum espírito (às vezes é de porco) soprando maravilhas em nosso escutador, mas... Mas! No meio de um sono tão gostoso, a vontade que dá (e o mais comum é fazer isso mesmo) é de deixá-la pra amanhã, na certeza de que não a iremos esquecer. Só que 110% das vezes... a esquecemos!
Por isso é que eu acordei, levantei, fui pra outro cômodo (pra não acordar Kana), daí começa aquilo de procurar papel, caneta e o escambau! E quando a melodia vem junto, pior, porque a temos que gravar... E, vou te contar, não tem coisa pior do que um cara com sono ter que escutar o Léo cantando às lá vai maria da madrugueides! Liguei o celular (pam-pam-pam... pam... pam), esfolei o rec e sussurrei a melodia. Daí, já estava acordado mesmo, terminei a letra.
Galo cantou, eu deitei. Na noite seguinte... Tá, vão dizer que tô puxando o saco do menino, mas juro que eu não queria!!! Dessa vez, não! Mas o fato é que (a parada nem tinha nada a ver comigo) de noite veio nos visitar Gabriel de Almeida Prado pra ensaiar um lance com Kana. Ensaiou, comeu um frango dos deuses (Kana é feiticeira também na culinária) e disparou num falatório sobre um zilhão de ideias que estava tendo (o cara, se deixar, faz umas dez letras por dia), e já íamos começar a fazer outra letra quando caí na besteira de lhe mostrar a canção que eu tinha feito... Sacumé, a gente tem sempre aquela ânsia de aprovação...
E ele, ao ouvi-la, tascou: "Esse primeiro verso tem a mesma melodia da canção do Camalle quando ele canta 'cabeça de um negro alemão'". Casa caiu! Era vero! Pô, eu ouvindo Zeca plagio Camalle? O tempo de eu pensar isso foi o de ele pegar o violão e achar uma solução pro caso. E nem foi lá aqueeela solução... O cara inverteu umas notinhas, vá lá, mas o perigo foi que ele continuou! E o desaforado foi costurando minha melodia, melhorando-a, e ainda dando pitaco na letra! Moral da história: entrou na parceria!
Mas também, o quê que eu ia fazer com uma canção só minha? Cantá-la eu? Deus me livre e guarde! Deixa a bichinha aí, no final até ficou biita, assim meio Roberto Carlos, meio querendo imitar Chico César quando tá com dor de corno. Eu gostei. Deu até vontade de mandá-la pra Bethânia, ou pra Marisa Monte... mas passou (quiçá volte). Ouçamo-la:
LEVE LEVE
No meio da bagagem
Me leve na coleira, feito um cão
Ou numa tatuagem
Meu bem, me leve como pedra no sapato
Pra Vênus, pra Vitória
Ou leve na carteira meu velho retrato
Me leve, leve, na memória
Meu bem, me leve quando for lá pra Paris
Num frasco de perfume
Na carne, feito fosse cicatriz
Por gosto ou por costume
Me leve como conta pra pagar
Como o ar em seu pulmão
De qualquer modo ou em qualquer lugar
Se não puder levar no coração
***
3) O NINHO DA SERPENTE
Camalle, pensando nessa sina sertaneja |
Há muito tempo, ainda no século XX (quando ainda se escrevia com algarismo romano), Daisy Cordeiro me pediu uma letra nordestina, afinal, apesar de já ter composto muitas melodias, nunca havia feito uma assim, regional. E eu, com uma sensibilidade de dar inveja a quadrúpede, mais rápido que imediatamente, fiz a que segue ao final do texto. Mandei-lha. E ela, ó-bi-viamente, não achou as notinhas necessárias pra transformar aquilo em canção.
Algum tempo depois, indo pro trabalho, dentro de um ônibus lotado, pulando num pé só, tomando cotovelada daqui, tapa na orelha dali, o cérebro (talvez com uma cacetada dessas) ativou, e ali mesmo, no meio do busão, pari uma melodia! E, ó, nessa época nem tinha celular! Quer dizer, eu (pelo menos). O que fiz? Passei a manhã inteira sem falar com seu ninguém, fazendo cara de poucos amigos e cantarolando baixinho a melodia feito um doido.
Na hora do almoço liguei pra casa. Kana atendeu. Falei pra ela desligar e não atender de novo (bravo!). Liguei de novo e me deixei recado na secretrônica eletária! Ó, esse é irmão desse! Voltei pro trabalho leve como uma pluma. De noite, fui ouvir a cantoria, e, rapá, a coisa foi feia! O cara era tão desafinado, que eu só entendi porque me lembrei da dita cuja (não porque a ouvisse)! Mas o mais inacreditável foi que, não sei por que raios, veio-me à mente a letra que tinha feito pra Daisy.
... E, senhoras e senhores, uma cabia que nem luva na outra! Pelo menos a primeira parte. Mas daí, eu já tava empolgado mesmo, cantarolei mais umas bobaginha e terminei-a. Nem mostrei pra Kana, pois ela, fã de Tom Jobim, já riu na minha cara mais de uma vez nessas ocasiões. A vítima foi, claro, Élio Camalle, que veio em casa e, com aquela paciência impaciente, ouviu(!), aprendeu a melodia, fez uma harmonia de responsa pra ela, e ainda, num momento de fraqueza, foi convencido por mim (já de MD e microfone em punho), a gravá-la!
Rapaz, tenho saudades daquele MD! O coitado arriou (acho que de tanto me ouvir). Hoje tem todas essas modernidades por aí, mas o som que aquele bichinho produzia era coisa de cinema! Pois bem, Ritinha Carvalho ouviu-a e teve a coragem de gravá-la! Com o grande músico e arranjador Dino Barioni ao violão, precisava de ver (ouvir)! Só que ela gravou, mas não lançou (tivesse lançado, este texto estaria no Trinca de Ouro). E, quase como uma homenagem (e um agradecimento) a Camalle, que foi quem a trabalhou, gravou bonitinho... E com um sentimento, que até parecia que o negócio era com ele (se Chico Buarque pode, por que Camalle não?)! ...Então, por conta disso, decidi postar aqui a gravação dele, que já emocionou até gente lá na terra de Iracema (né não, Veleiro?).
Ah, mas dessa vez eu não lhe dei parceria!
O NINHO DA SERPENTE
Moço,
Eu sou mulher da vida, moço
Eu sou mulher perdida, moço
E não posso ter nenhum perdão
Moço,
Moço,
Era minha comida osso
A lida, carne de pescoço
E o poço tinha água, não
Moço,
Moço,
Era uma luta pro almoço
A minha fruta era um caroço
E nem era nosso o seco chão
Mulher dama é como um fundo fosso
Não reclama e come rindo o insosso
E o grosso amanhecido pão
Moço,
Larguei a minha gente tudo
Ganhei presente de veludo
Pensei "me mudo com satisfação"
Moço,
Moço,
Deitei com a serpente em seu ninho
Oxente! Eu quero só carinho
Dinheiro, moço, quero, não!
***
PS: Esqueci de acrescentar que a letra acima não nasceu por mero acaso. Lembro-me de que na época eu havia lido uma reportagem que dizia ser Fortaleza a capital nacional da prostituição infantil. Aquilo me deixou profundamente triste. A letra nasceu daí.
***
Essa ninho de serpente é minha preferida desde todos os tempos, é uma crônica, é um filme, é um documentário... perfeita, letra e melodia. Toda vez que ouço me emociono. Bonita mesmo... Veleiro
ResponderExcluirValeu, Velerim!
ExcluirVerdade que a interpretação de Camalle a valoriza e muito!
Abração do
Léo.
Pô...Essa nossa música ficou boa demais.
ResponderExcluirHAHAHA você colocou a foto do I LOVE GALINHA HAAHAHAHA
É, Gabo, a música ficou boa, só falta o cantor aprender. Hahaha!!! Sobre a foto, o que vale não é a galinha, é o contexto. Hehe!!!
ExcluirAbraço,
Léo Leve.