segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ninguém me Conhece: 63) Pedro Guerra, el encantador de gentes

Ser letrista não é fácil. Imagine você, caro (e raro) leitor, a dificuldade que é tentar ser original, criativo, não se repetir e ainda emocionar(!), tudo isso em meio a uma infinidade de letras maravilhosas que o cancioneiro nacional nos deixou de legado... E, se pensarmos no que já foi escrito em inglês, espanhol, italiano, francês... Aí é que o rabo torce a porca! Daí recebemos uma melodia e lá vamos nós nos esmerar pra fazer o melhor possível, ou então caprichamos quando nos pedem uma letra pra musicarem, mas tem que ser AQUELA letra! E depois no-la devolvem dentro de uma melodia assim-assim...
1) El Encantador de Serpientes (Pedro Guerra)
Pedro Guerra e Daniela Mercury

É, ser letrista não é fácil. De-fi-ni-ti-va-men-te! E, quando vem alguém e faz uma versão de uma de nossas canções, a porcentagem que vai pro versionista é tirada sabe de quem? Da parte do bolo que cabe ao letrista! É, amigo leitor, ser letrista é pior que ser goleiro! E depois disso tudo sempre vem um bonitinho dizer que fazer letra é uma arte menor, que letrista não é músico, muito menos compositor (e, pra falar a verdade, segundo as leis brasileiras, não é mesmo, é autor!) e blablablá. Sendo que a maioria dos que criticam não passa de um bando de melodistas razoáveis.

Semana passada estava eu numa mesa com alguns músicos e, quando chegou um casal (de músicos) e fui apresentado a ele, quando disse que era letrista, logo um tascou: "Ele é normal"! Sacaram? Quiseram dizer que eles, sim, os músicos, é que são gênios (ou loucos). Só me restou dizer que cada arte contém em si sua parcela de genialidade e de loucura (ia acrescentar "e de mediocridade", mas calei). Além do mais, se é pra pegar pesado, se os letristas não entendemos de cifras e partituras, grande parte (pra não dizer a maioria) dos músicos não é capaz de entender, por exemplo, um versinho mais simples completamente desprovido de metáfora. 

Alguns parceiros meus, vez em quando, pra me desbancar, dizem mesmo que eu não tenho sensibilidade pra sacar a profundidade de uma melodia, visto que sempre presto atenção na letra primeiro. Isso me chateia pra burro, sobretudo quando tal crítica vem de um amigo. E sobre-sobretudo porque é uma deslavada mentira. Cá pra nós, quando uma melodia é boa e a letra é maomenos, perdoamos-lhe a fraqueza desta por causa do lirismo daquela. Agora, quando uma ótima letra vem embalada numa melodia sofrível, daí é muito mais difícil engoli-la. É ou não é?

Cacildis! Me empolguei! Queria apenas escrever um pequeno prefácio só pra servir de ilustração pra tratar de um cara que descobri há pouco tempo e que me arrebatou o coração. Ah, e esse fulano me ganhou primeiro por conta das deliciosas melodias, muitas das quais já me levaram às lágrimas. E olha que só depois fui prestar atenção em suas letras, e, pra ser sincero, nem as achei assim o suprassumo... Quando lidas fora do contexto musical, claro. Porque dentro das melodias se tornam estupendas!

Quem me apresentou ao moço foi meu parceiro Pedro Moreno, que vive lá nos Madriles. Por isso prestei atenção nas melodias primeiro. Pedro me mandou por mp3 todas as canções do CD Ofrenda, de 2001. E o disco é tão divino, que até Daniela Mercury (que faz uma participação numa faixa) surpreende, cantando pra caramba... E em espanhol! Tempos depois, quando de uma viagem que fiz a Buenos Aires, aproveitei a valorização de nosso real e mandei ver na aquisição de vários CDs do moço.

Ah, esqueci de dizer: seu nome é, a exemplo do Moreno, Pedro, Pedro Guerra, e é espanhol, natural das Ilhas Canárias. Sua voz é um dom de Deus, e olha que ele tem muito o que agradecer ao Criador por tê-lo presenteado com ela, porque o moço, com aquela cara de nerd, sem essa qualidade dificilmente teria lá muito sucesso com o sexo feminino. Mas, voltando ao que interessa, já em Sampa passei a degustar mais de seu trabalho, disco a disco, e o deslumbramento virou mesmo lugar-comum. Pedro é daqueles compositores donos de canções, digamos, "lado B", que vão nos pegando aos poucos.

Claro que em sua voz há ecos de seu contemporâneo uruguaio Jorge Drexler e mesmo de nosso Caetano Veloso. Aliás, nota-se pelos arranjos e pelas melodias que Pedro bebe muito da fonte brasileira. Já foi gravado por Maria Bethânia, é parceiro de Lenine na canção Miedo e já andou às voltas com Chico César, pra não dizer mais. Contudo, por mais que seu timbre possa lembrar os dos dois supracitados, a doçura dele em suas canções causa nos ouvintes uma viagem única (e sem volta). Como na canção em dueto com Daniela, El Encantador de Serpientes, quando alguma de suas canções te pega desprevenido, "tú no sabes cómo escapar/ tú no sabes si hay que escapar/ ¿quién dijo que quiera escapar?"... Eu caio rendido.

E, por incrível que pareça, com toda essa musicalidade mais voltada pro introspectivo, um dos maiores sucessos de Pedro (não só) na Espanha é justamente uma parceria (ao que me parece meio renegada por ele) com... Tchan tchan tchan tchan! Joaquín Sabina! Chama-se Ruido, e tem uma história interessantíssima, que foi contada por Pancho Varona (músico de Sabina e parceiro de ambos na canção) em seu desatualizado blog http://panchovarona.blogspot.com.br. Façamos assim: digamos que o texto acabou, que o rapaz vale a pena ser ouvido etc. e ponto final. Daí, daqui pra frente, a tradução resumida que vem a seguir (minha, por supuesto) é uma espécie de bônus. ¿Vale?



2) Cuando Pedro Llegó (Pedro Guerra)

***

Um dia Pedro Guerra apareceu em minha antiga e bela casa alugada de La Moraleja. Trazia algumas letras pra que trabalhássemos nelas juntos. Bem, melhor dizendo trazia algumas letras pra que eu as musicasse. Nessa época Pedro Guerra ainda não era Pedro Guerra, mas estava perto de sê-lo. Deixou-me três ou quatro e nesse momento me deu a impressão de que eram letras que lhe estavam sobrando então.

Quero dizer que nessa época Pedro já tinha prestígio no mundinho da música e era um tipo capaz de fazer canções e mais canções. Canções a toque de caixa, aos montes, às dezenas. A maioria de nível. E me deu a impressão de que as que me trazia eram aquelas em que não desejava trabalhar só, por alguma razão que desconheço. Mas era somente uma impressão, podia ser que eu estivesse equivocado.

Li-as avidamente, na certeza de que havia alguma pérola. De repente eu fiquei pasmado. Aí estava a joia. Como era possível que Pedro não tivesse reparado na maravilha que me trazia? Supus que se ele tivesse consciência de ter entre suas mãos uma letra maravilhosa teria ficado com ela, pra ele mesmo a musicar. Faltava algo, mas isso era outra história. A letra estava em meu poder e eu tinha a possibilidade de musicá-la: "Ella le pidió que la llevara al fin del mundo/ Él pudo alcanzarla solo al límite del mar/ Y al final llegaron juntos/ A un final de tantos rumbos..."

Que linda era, por Deus! Não me lembro do tempo que demorei pra fazê-la, mas me lembro de que poucos dias depois liguei pra Pedro e lhe disse: "Já tenho algo!". Pedro veio a minha casa e lhe cantei Ruido com a letra original feita por ele. Quando estava a ponto de acabar o refrão parei e lhe disse a verdade com desespero: "Parei aqui porque não sei como continuar"... Tinha feito a melodia da canção inteira menos um verso. Nem sequer me lembro de qual verso era. Ou seja, tinha feito uma bela melodia pra uma bela letra e me faltavam quatro segundos de canção pra resolver e eu não sabia como fazer. Pedro me tirou desse imbróglio e o que propôs valeu.

Poucos dias depois fui aos velhos estúdios do CES, na rua Aravaca, 20, em Madri. Naquela época fazíamos canções a três por quatro. Eu, quando tinha um bocado delas, ia ao estúdio de meu amigo Francisco gravar umas demos, porque ele me fazia um ótimo preço. Ali gravávamos a demo em um ou dois dias e eu voltava pra casa contentíssimo com minha DAT, ou minha fita, ou meu CD.

Dessa vez fui com José Romero, pra que me ajudasse com as guitarras de Ruido. José teve a ideia dessa linda introdução de guitarra e eu a cantei com razoável sorte. O caso é que voltei pra casa com minha fitinha muito emocionado. Além de Ruido gravamos outras duas ou três canções que passaram sem pena nem glória, pelo que me lembro.

Poucos dias depois Joaquín apareceu em casa. Não me lembro exatamente do motivo de sua visita, mas nessa época íamos mais de casa em casa à caça, à procura de canções. Nem bem entrou, disse-lhe, "Escuta isso e vê se curte"... E lhe toquei Ruido. Ele ficou de queixo caído. Lembro-me perfeitamente de que me disse: "Essa é minha! Dá pra mim!". E eu, morrendo de rir, contei-lhe que não podia lhe dar porque a letra era de Pedro e já estava pronta... Porém, Joaquín me respondeu que ia falar com Pedro pra que dividissem a autoria da letra, pois ia já meter mãos à obra. E não é que ele arredondou a belíssima canção? A verdade é que Joaquín a levou a um terreno maravilhoso e fez uma obra de arte... Claro que a original de Pedro também era muito boa, muito boa, muito boa... Mas a de Joaquín... Caramba!

A ladainha final que em minhas mãos e nas de Pedro era curta Joaquín a quis estendê-la ao infinito. Já na gravação do disco teve que pisar forte pra negociar um ou outro detalhe. Só pra dar um exemplo, Joaquín queria que depois de "se miraron un segundo como dos desconocidos" viesse "y hubo tanto ruido"... E eu insisti até dar nos nervos que depois desse verso viesse "todas las ciudades eran pocas a sus ojos". Parecia-me muitíssimo mais mágico que fosse assim. Por sorte, minha batalha foi dura, mas deu resultado. Com o passar do tempo, acho que eu tinha razão.

3) Miedo (Lenine - Pedro Guerra)
Lenine e Pedro Guerra

Também tivemos que negociar outras coisas. Joaquín queria uma ladainha cheia de vozes ciganas, e Antonio e eu as queríamos, mas não tão ciganas. Por fim, vencemos a pendenga. Ele também insistiu muitíssimo pra gravá-la como uma rumba, já que eu a fazia mais country, mais arpejada, mais campestre. Dessa vez ele tinha razão e a canção ficou melhor como rumba. Joaquín sempre definiu Ruido como a rumba com smoking, e eu acho que é uma maneira acertadíssima de chamá-la. A rumbinha elegante. A rumbinha tristíssima. Uma das canções que mais me deram satisfação. Uma letra que é poesia pura com grandes doses de mistério. Uma música mágica. E a voz de Joaquín.

Pancho Varona
8 de fevereiro de 2008.
(leia o texto original aqui)

***

Ufa! Acabei não resumindo nada... Verdadeiramente uma ladainha! Desculpe, heroico leitor, se me estendi demais (Paulinho das Frases, acorda!). Mas, veja, comecei falando que não é fácil ser letrista. Em seguida, tratei de um genial compositor que é um bom letrista. Por último, traduzi o relato de Pancho, que nos mostra como a genialidade de Sabina como letrista transformou uma bela canção numa obra-prima, um dos maiores sucessos desses dois cantautores, quer eles queiram, quer não. Abaixo, um vídeo dela, pra se acaso sobrarem dúvidas.

Ah, antes, o site de Pedro, aqui.

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6 comentários:

  1. Léo,
    sou fan do trabalho do Pedro Guerra, cunhado de um dos maiores compositores/interpretes da Espanha, Luis Pastor.(cujo útlimo disco é todo dedicado a poesia de Samamago, isto mesmo, Saramago poeta).
    Valeu pelo ótimo texto.
    Abraçao

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    1. Grande Pedro! Como vai a bela Madri?

      Escuta, você tem esse disco do Luis Pastor? Dá pra me mandar por mp3?

      Abração,
      Léo.

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  2. Há uns tempos, o Luis Pastor veio aqui. Cantámos juntos, em homenagem ao nosso "mestre", José Afonso, que soube fazer um bom grupo de amigos entre os melhores artistas espanhóis, da Galiza, Catalunha...
    Infelizmente... não trouxe com ele o genial cunhado Pedro Guerra. :-)
    Sou fan... desde "Ofrenda". Muito bom!

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    1. Salve, Samuel!

      Sim, Ofrenda me "iniciou" também em Pedro Guerra. Mas sua discografia é toda boa (pelo menos os discos que tenho).

      Grato pela visita e pelas informações.

      Abração do
      Léo.

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    2. Léo, nao tenho.
      Mas vou te enviar pelo correio. É um disco para tê-lo na estante. Só me (re)passe seu cep por e-mail, please.

      Abraçao

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    3. Te respondi no e-mail, Pedro.

      Abração do
      Léo.

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