sexta-feira, 12 de abril de 2013

Crônicas Desclassificadas: 82) Saudade das cartas

Sou do tempo das cartas. Quando penso nelas a primeira recordação que me vem à mente é a de ver meus pais felizes por lhes ter o carteiro trazido uma lá do Km 29, Senador Pompeu-CE. Parecia uma coisa quase religiosa: o cuidado no abrir o envelope, pra não rasgar o conteúdo; a leitura da carta, às vezes em voz alta, às vezes não; seu passar de mão em mão e o respectivo apuro do olfato, como se estivéssemos sentindo o cheiro do lugar de onde ela tinha vindo; o capricho da letra; o esmero na resposta; a espera pela carta seguinte... Tudo o que girava ao redor dessa correspondência era encarado com a maior seriedade, apesar da alegria que era sua leitura. Às vezes havia lágrimas pela notícia da morte de algum parente (na época não tínhamos telefone em casa), às vezes um sorriso por saber do nascimento de outro...

Eram tempos mais lentos, e gozávamos todos essa lentidão. Há certo prazer na espera, que vem de esperar, que resulta em esperança. Afinal, passamos a vida esperando o acontecimento de coisas boas, e esse tempo é bem maior do que o de sua realização. Às vezes o que esperamos nem mesmo chega a se realizar... E era assim que o prazer dava lugar à angústia quando uma carta demorava... ou não vinha. Porque então não sabíamos se se havia extraviado ou se a pessoa com quem nos correspondíamos havia ficado ofendida com algo que escrevêramos e preferira o silêncio. Daí esse caráter quase religioso que citei acima, esse respeito pela palavra escrita. Muitas vezes rasgávamos uma carta que havíamos demorado horas pra escrever só por causa de um erro gramatical ou de uma palavra malposta.

Na literatura temos vasto material resultante de correspondência trocada entre pessoas importantes. Há mesmo romances escritos em forma de troca de cartas, como o ótimo As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos. Mas entre anônimos também há muita coisa interessante, muita poesia escrita em forma de prosa. As cartas despertavam talentos. Eu mesmo me correspondi bastante por cartas com uma namoradinha de adolescência que morava em Belém do Pará e vinha a São Paulo nas férias escolares, quando visitava sua irmã, que era minha vizinha. Quando chegava uma carta dela eu era acometido por uma felicidade quase infantil. Cheirava, beijava, demorava à beça antes de começar a ler, valorizando ao máximo o conteúdo da missiva. Ah, só de lembrar sinto uma nostalgia, uma pontada de boa dor no peito...

Curiosamente, sempre preferimos escrever a mão, mesmo tendo comprado uma máquina de escrever. Parecia falta de respeito, demonstração de impessoalidade. Além do que havia o formato único que cada um impunha às palavras que escrevia. Uns praticamente desenhavam, outros faziam uns garranchos que sofríamos pra decifrar, mas não havia duas pessoas com a mesma letra. A personalidade de cada um estava ali, eternizada numa folha de caderno ou de bloco. Sem falar nos bilhetinhos, parentes mais novos das cartas. Na escola fazíamos a festa com eles. Alguns eram de amor, alguns anônimos, outros de fofoca, outros dedurando alguém pra professora... Enfim, o hábito de escrever a mão estava em nós, conhecíamos a pessoa pela letra, por isso alguns, quando não queriam ser descobertos, se esforçavam pra camuflá-la, ou mesmo escreviam com a mão trocada...

Hoje, isso faz parte do passado. O progresso trouxe o computador, a internet, a notícia em tempo real, a velocidade nas correspondências, com o advento dos e-mails e das mensagens via celular... e a natural vulgarização da palavra escrita. E, como somos animais adaptáveis ao meio e à época, mesmo que no começo teimemos em não adotar tais avanços, no fim acabamos cedendo e nos rendendo a uma realidade que veio pra ficar. Claro que ninguém é idiota de dizer que hoje está pior que antes. Num caso de acidente na estrada, temos o celular à mão; numa urgência, podemos falar com alguém do outro lado do país, ou mesmo do exterior, via celular, ou pelo computador, e com câmera e tudo! Um verdadeiro conforto! Sem falar nos escritores, jornalistas e quetais, que apagam, ops, deletam um erro num único toque.

Contudo, quando dois turrões se encontram, mesmo a tecnologia vem com cheiro de naftalina. Foi o caso de minha longa correspondência com meu amigo Sérgio-Veleiro. Ele lá em Fortaleza e eu aqui em Sampa. Foram anos usando a tela do computador como folha de caderno, o teclado como caneta e o e-mail como carteiro. Tudo o que escrevemos daria um belo livro, tenho certeza. Já falei pra ele que o autorizo a publicar, mas só depois de minha morte. Afinal, há nelas muitas revelações, muitos pensamentos íntimos, muitas coisas que poderiam ofender terceiros, e mesmo opiniões que não temos mais. Só que um belo dia os e-mails começaram a rarear, até que por fim cessaram. Sem motivos, sem mágoas, sem causar danos à amizade; tratava-se apenas da época, que se impunha a dois velhinhos menos turrões que ela.

Mas eu e Veleiro somos exceções. Somos dois livros empoeirados numa estante cheia de bugigangas eletrônicas, dois radinhos de pilha numa loja de iPods, iPads, iFodes... Talvez por isso, por ser quem sou, tenha pensado em escrever estas linhas por causa de uma insignificância que notei estar se tornando hábito entre a maioria de meus amigos: o descaso com as respostas. Não que eles não prezem nossa amizade, nada disso, é apenas o corre-corre, a brutal falta de tempo que nos transforma em escravos do relógio, sempre correndo na direção contrária a nossos sonhos, pois é de lá que sai a grana pra pagar as contas. Daí que lemos o que o amigo escreveu e delegamos a resposta ao amanhã, que chega com outras urgências, e a resposta vai ficando pra trás até ser esquecida (ou caducar). São essas as relações que cultivamos (?) hoje em dia. Ontem a mancha de lágrima ficava impressa na carta, hoje o computador, impermeável, a deleta. Amanhã nem choraremos mais.

A meus amigos, com amor.

***



CARTAS DE AMOR
Por Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.) 

Álvaro de Campos, 21/10/1935.

***

4 comentários:

  1. Ah Léo, e eu nem havia lido esse texto quando publiquei o meu...que coisa incrivel!
    Falamos das mesmas coisas, por caminhos diferentes, vc certamente com mais competência, porque seu texto é rico nos detalhes e isso faz toda a diferença.

    Mas o Pessoa está ali, nos dois escritos, não é mesmo? Que bacana!

    Eu guardo todas as cartas que recebei na minha vida, na infância, na adolescência. Não consigo jogar nada fora, pq são relíquias pra mim.
    E agora estou organizando as cartas da minha mãe. Ai, ai eu devia mesmo era cuidar de um museu, de uma biblioteca, penso muito nisso!!! :-)

    Beijos, Léo, adorei a sintonia!

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    1. Poxa, Mari, te invejo. Minhas cartas do passado se perderam nas gavetas do tempo. A gente acha que nunca vão acabar, daí param de chegar... e never more... Hoje, os e-mails são tão desimportantes, que as pessoas às vezes nem se dão ao trabalho de responder...

      Mas estamos em sintonia mesmo, né não?

      Beijão,
      Léo.

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  2. Belíssimo texto, Léo! Ah...dei uma volta ao passado, mas não fiquei lá rsrs.
    Parabéns e grande abaço!

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  3. Oi, Hilda! Que bom que você achou essa "carta".

    Abração,
    Léo.

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