sábado, 24 de outubro de 2015

Grafite na Agulha: 36) Os santos e as flores de Vanusa

Acho muito difícil que haja algum brasileiro que viveu a década de 1970 e não tenha se encantado/emocionado com a voz de Vanusa e as canções interpretadas por ela. Sem falar que era uma gata (e ainda é, hoje, do alto – não de altura, claro – de seus 68 anos)! Sim, o país vivia tempos funestos, mas a música brasileira ia bem, obrigado. Pode-se dizer também que ia bem obrigada. Pensando nisso, tenho até a impressão de que, quanto mais amordaçam um compositor, mais ele descobre artifícios pra que sua arte não se cale (Cálice, por exemplo). Atualmente, apesar dessa liberdade toda, deparamo-nos com tantos compositores sem nada pra dizer... Até a outrora tão criativa MPB agora agoniza vítima de sua própria empáfia.

Claro, quem procura bem sempre acaba achando, mas, ao passo que a democracia tomou as ruas, a ditadura tomou emissoras de rádio e TV, tornando os ouvidos (pra não dizer ouvintes) acomodados em sua preguiça. Já disse isso aqui antes, mas sempre vale repetir: em minha época de moleque, ainda em tempos anteriores à FM, em casa costumávamos ouvir muito rádio, e eu hoje lembro que a programação não era segmentada como a da atualidade. Acabava de tocar uma canção de, por exemplo, Amado Batista, a seguinte era de Chico Buarque. Assim, eu ouvia de tudo: Antônio MarcosRoberto CarlosRaul SeixasMartinho da VilaLuiz GonzagaElis Regina... e Vanusa, obviamente, entre tantos outros estilos e vozes; e pude aprimorar meu gosto musical tendo um leque de opções muito mais rico que o do ouvinte de rádio de hoje.

Mas deixemos de chororô, porque quem sabe, e é do ramo, não se deixa apequenar nem corromper por equívocos alheios. E o papo aqui é Vanusa, que acaba de lançar seu mais novo trabalho, simples e lindamente batizado de Vanusa Santos Flores, com direção artística do polivalente Zeca Baleiro, que, não bastasse o talento que tem pra dar e vender, ainda acha tempo pra chamar pra si a responsabilidade de preencher lacunas deixadas pela agonizante indústria fonográfica brasuca. Nem vou me estender muito, senão precisaria de outro texto; basta dizer que Zeca, além de produzir artistas outrora consagrados e hoje um tanto distantes da grande mídia (fora os novos... e os nunca lembrados) e lhes regalar espaço em seu Baile do Baleiro, ainda tem um selo próprio chamado Saravá Discos, que é verdadeiro biscoito fino (sem trocadilhos).

E foi justamente pelo Saravá Discos que veio à luz (e pra dar mais luz) o supracitado disco de Vanusa. Estive recentemente na Livraria Cultura pra prestigiar a noite de autógrafos (conforme vocês podem conferir na foto ao final do texto) e voltei pra casa com um exemplar debaixo do braço. E vou confessar uma coisa: tô há dias escutando o danado direto... e reto! Admito, se comparado aos ouvintes do século XXI, tenho um distúrbio sério: adoro ouvir música nova! Se fosse uma coletânea dela, ou um ao vivo do ao vivo, eu nem tchuns, nem me abalava a sair de casa, era só visitar nosso tubo e matar as saudades. Mas disco de canções novas? Opa! Lá tô eu! É que, ao contrário do ouvinte de hoje, lobotomizado pela repetição da repetição da imitação da mesmice, quando é pra me surpreender sou todo ouvidos.

Além de preguiçoso, venho notando que o ouvinte atual é dado a crueldades e ultrajes (com rigor). Nos países de gente mais culta e educada, há respeito e gratidão por artistas que, por meio de sua obra, enriqueceram a cultura local. Já no Brasil tem ocorrido justamente o contrário. Um público raivoso e frustrado, quando o fracasso lhe sobe à cabeça, costuma, na falta de terapia, enxovalhar artistas com farto histórico de serviços prestados à nação. Talvez o maior exemplo de nossos tempos seja o outrora unânime Chico Buarque, que, por não temer esconder suas preferências políticas, vem sendo malhado qual Judas pelas redes (anti)sociais afora. Outro exemplo foi Vanusa, que, por causa de seu lapso quando da interpretação do Hino Nacional, viu que não faltaram cidadãos imaculados pra lhe atirar pedras.

Esse é um motivo a mais pra admirar as escolhas de Zeca Baleiro. Outro em seu lugar temeria o risco de investir na carreira de uma artista vítima de tal, digamos, propaganda negativa. Já ele se lixou pro fato (afinal, já teve seus dias de Madalena também) e se jogou de corpo e alma num trabalho ao qual o que não falta é justamente alma. E sobretudo porque Vanusa soube imprimir nele sua digital. Se sua voz, com o passar dos anos, não possui mais o fôlego de outrora, sua interpretação doída e sincera – e por vezes tempestuosa – vem equilibrar a balança. Como não sou crítico, não vou tomar o tempo do leitor com detalhes técnicos. Basta dizer que é um disco que sabe emocionar quem ainda não perdeu de todo o senso e a sensibilidade.

Abro um parêntese: há alguns anos, li numa entrevista o desabafo de Erasmo Carlos, que se dizia cansado de só ser convidado pelas gravadoras pra realizar discos de regravações. Acrescentava ele que andava com o baú cheio de novas canções que esperavam pra vir a público. Anos depois, conseguiu uma brecha e de lá pra cá vem sapecando ótimos discos um atrás do outro. Veja você, caro leitor: se até pro Tremendão a coisa tava ruça, imagine quanta gente boa anda por aí – hoje, sim – amordaçada... E lamento dizer que, em parte, a culpa é sua. É muito fácil crucificar a indústria, a crise e o carvalho a quatro e ficar aí vivendo de flashback, requentando emoções... A música não morreu, e há uma infinidade de artistas, novos e nem tão novos assim, esperando ansiosamente que você tire a cera do ouvido. Caso contrário, a seu filho só restará o olvido... Fecha parêntese.

Acredito em trabalhos confessionais. E a escolha do repertório do disco foi das mais acertadas pra que Vanusa deixasse o ar respirá-la. São canções que fazem seu animal ser gente, pulsam seu sangue quente e lhe possibilitam abrir feliz o peito, com todo o direito. Nessa toada, ela segue em linha torta, sem pressa, sabendo que não vai passar em branco e que, quanto mais ousa, mais está iluminada, ouvindo o som do próprio grito e rasgando o direito de doer na alma e sangrar o coração. É disso que ela tá falando, de procurar o caminho que sempre existiu dentro dela, enquanto, olhando a própria solidão, constata que, se não tem mais 17 anos, ao menos sabe que, haja o que houver, o amor volta no vento, porque, se não houvesse lágrimas e sonhos, ela não existiria. E é por isso que ainda ousa cantar no meio do povo: pra salvar o que resta de sua juventude. Tudo o mais são mistérios.

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Vanusa Santos Flores (2015 – Saravá Discos)

1. Compasso
    (Angela Ro RoRicardo MacCord)
2. Abre Aspas 
    (Nô StopaMarcelo Bucoff)
3. O Silêncio dos Inocentes
    (Zé Ramalho)
4. Esperando Aviões
    (Vander Lee)
5. Traição
    (Vanusa)
6. Era Disso que Eu Tava Falando
    (Renata FaustiMário Marcos)
7. Tapete da Sala
    (Luis Vagner Antonio Luís Vanusa)
8. Haja o que Houver
    (Pedro Ayres de Magalhães)
9. Tudo Aurora Vanusa e Zeca Baleiro
    (Zeca Baleiro Vanusa)
10. Mistérios
    (Zé Geraldo Mário Marcos)

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Ouça o CD na íntegra aqui:



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Eu, Vanusa e Kana

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4 comentários:

  1. viva Vanusa. bela resenha, meu caro. ouvi o disco tb. maravilhoso. abraço

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    1. Salve, Xico!

      Sempre bom receber sua visita. Valeu!

      Abração,
      Léo.

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  2. Tô ouvindo o disco, agora!
    Eu concordo: Viva a Vanusa!
    Eu gosto muito do velho, mas sou abertíssima ao novo. Adoro conhecer gente nova, artistas novos, música nova, arte nova, e assim segue.
    Mais que isso, ainda, sou amantíssima da convivência do velho com o novo...dá um movimento bom, isso aí!
    O texto tá ótimo, mas nem é novidade, né? Já sabe que sou tua fã!

    Sucesso e Beijíssimo! Leozíssimo!

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    1. Oi, Curcinha!

      Grato pela visita e pelas palavras. No mais, fecho contigo: a coexistência do velho e do novo é que equilibra a balança da vida.

      Beijos,
      Léo.

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