segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Crônicas Desclassificadas: 156) A questão não é ser ou não ser Charlie

Por Mario Alberto
Eu escrevo. Escrever é minha arma. Ou pode ser meu carma. Quem sabe, meu trevo. O fato é que escrever me dá prazer. Claro, às vezes masoquista. Mas quem não é, sendo artista? Escrevo o que quero, o que me á na telha; às vezes lero-lero, às vezes só groselha. Mas vez em quando desando, e a centelha incendeia, veia adentro, verbo afora. Nessa hora, periferia vira centro, e o que me feria... unguento. E posso ir mais longe, aguento. Só estou em paz quando me atormento. É por isso que escrevo. Porque devo, e é assim que pago: causando estrago, entre um e outro trago. Sem dar trégua, pra mais de légua! A inspiração é fértil, farta. Pode ser em rima, pode ser em carta. Pode ser em cima, embaixo, até sem clima me encaixo, caibo. A palavra é meu caibro, minha clave. Escrever: eis minha palavra-chave.

Eu também componho. Compor me recompõe. Às vezes em sonho, às vezes em orações. Aliás, é compondo que eu oro, coro e crio, choro e rio, me sinto um rio virando mar, e, antes que eu possa imaginar, já sou um oceano. E, ao mesmo tempo, tão pequeno. Compor me faz mais humano, e é meu veneno. Palavras fazendo amor com melodias, pode ser meio-dia ou a hora que for. Pode ser flor, pode ser espinho; pode ser com carinho, pode ser por rancor. Compor me arranca do ostracismo, me tira a carranca, me afasta do abismo... só pra me atirar no centro do sismo. Aí paro, penso e cismo. Compor é meu catecismo, meu cataclismo. Meu prisma. A marcha fúnebre de meu aneurisma. É a bússola pela qual me perco. Porque, compondo, não tenho cerco, nem muro. Compondo estou seguro. E eternamente em risco. É assim que rabisco meu futuro.

E é assim que me realizo, porque, embora sem saber onde piso, sei que faço parte, um pouco, do que chamam arte. Serei um louco? Um malas-artes? Um mala de Marte? Acho que sou mais é um arteiro, um besta que mete a mão em vespeiro. Um cara que, insone na cama e sem travesseiro, em vez de contar carneirinhos, tece tramas e vai por tortos caminhos, por portos... Quase que em parto... quase que infarto. Mas nunca em oferta. É árdua a busca pela palavra certa (pra doutor não reclamar). Rimar a sílaba tônica na escala pentatônica. Versar sobre o amor platônico, quase agônico; meio anêmico, meio anímico. Até irônico, mas nunca cínico. Pescando tema pra crônica. Metendo rima na prosa. É por aí que vou, que voo. Nessa viagem perigosa, miragem de quem não dosa. 

Porque criar é preciso, é presságio. É porta pro riso, a força do frágil. Quem não cria atrofia a mente, tem quase que uma dor de dente permanente. Criar é calmante, é tirar palavras da estante e levá-las pra rua, pra lua. E a estrada continua. Criar é encher o nada de poesia, encher o dia de verso, pintar um novo universo, dar ao povo o que assoviar. Mesmo um simples laiá-laiá já dá motivo pra alegria entrar, e o mal-estar vai pras cucuias. Aleluia! E viva a criação! Ai da nação onde ninguém cria. Lá a tristeza põe mesa e reina com tirania. Eu sei, criar não enche barriga, mas, me diga: não enche a alma? Supera o trauma. É o bumbo que grita em anos de chumbo. É a visita que alivia o doente. Criar é eternizar a beleza do sol poente num quadro na parede do coração da gente.

A arte é a mais poderosa arma. É quem dá o alarma que nos desperta e nos põe em estado de alerta quando os intolerantes ficam mais intransigentes que antes. Quem cria é insurgente quando a tirania crava os dentes na carne de nossa mente. Por isso os que criam são temidos (e, em alguns lugares, tratados como bandidos). Palavras voam pelos ares, explodem os edifícios de ignorância, com artifício, com elegância. A arte é lâmina afiada no ventre da barbárie, arranca a dentadas a cárie do dente do siso. Na marra, se for preciso. Com cara e com coragem. Quem leva a arte na bagagem parte pra outra viagem. Chega mais longe que os pensamentos de um monge. E mais rápido que o vento, mais lépido que um raio riscando a lousa do firmamento. 

Quem cria ousa, cria asas, pisa em brasas como quem pousa, como se decolasse. Como se fácil fosse. Com classe. E agridoce. Quem cria sabe que está no caminho certo mesmo que à deriva. Sabe que o longe é perto pra quem tem a iniciativa de entrar na locomotiva da vida e dar partida. E tem fé, mesmo quando duvida. Sabe que o mundo é cruel, mas que só ultrapassando o fel se chega à felicidade. Afinal, nada acontece com facilidade. Não basta a prece. Não adianta a pressa. Quando a hora não é essa, há que regar a flor da demora pra ver crescer a árvore do futuro. Sim, é duro, mas duradouro. E brilhante como o ouro. O ourives sabe que pro que é bruto há o lapidar. E é assim que é criar. Usa-se o mesmo raciocínio. É um longo aprendizado até chegar ao domínio. Ontem um símio, amanhã um exímio.

É por isso que sou contra todo tipo de mordaça. O homem só se encontra se for livre pra ser pedra e vidraça. Um cara pode falar merda; o outro, fazer graça. O que o mundo herda é o que não cala. Quem cala consente. Quem fala conserta. Mesmo quando discordo, estou a bordo. É pela porta entreaberta que entra o conhecimento. A liberdade de errar traz o amadurecimento. Antes o barro, depois o cimento. Agora, quando se proíbe, a vida não vale um quibe; o homem não vale a veste. A censura é a pior peste, e, pra boi dormir, é pasto. Pro ignorante, um grão é vasto. Já pra um ser pensante, o mundo é um grão. Como é patética a civilização. Em desordem alfabética, caótica destruição. Se um pensa diferente, tá sujeito a punição. Como é desafinado esse coro dos intransigentes. E que triste canção...

Vejamos pelo seguinte enfoque: há a galera do samba, há a galera do rock. Há o que crê em Buda, há o que crê em Deus. Há quem lê autoajuda, há os que são ateus. Os direitos meus terminam onde começam os alheios. Por exemplo, a Veja. Não leio. Me dá brotoeja. Mas se sua existência for o preço de minha independência... ok, paciência. É barato. Não leio, mas não mato. Página virada. A liberdade pra discordar é melhor que nada. Mesmo quando é ruim, não censuro a piada. Melhor que viver no escuro e achar que a luz ofusca. Há o que vai de trem, há o que vai de Fusca. Tudo bem, o importante é aproveitar a paisagem. O pior cego é o que só crê em miragem. A questão não é ser ou não ser Charlie. Lá ou aqui, todos são iguais, com direito a lutar pela paz. A questão é ser contra os que tocam o terror. Inadmissível é morrer de humor!


***

24 comentários:

  1. "Inadmissível é morrer de humor". Matou a pau, parceiro! Muito bom! Seu texto quase que dá pra ler cantando. Daria, se compositora eu fosse! rs
    Beijos,
    Danny.

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    1. Valeu, Dannoca! Na pior das hipóteses, dá um rapzinho, né? rs

      Beijos,
      Léo.

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    1. Valeu, Ricardim! Tendo em conta que isso foi um elogio. rs

      Abraço,
      Léo.

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  3. Parceiro! Sei que é dificil, mas sintetiza esta obra prima. Merece uma melodia. Eu podia arriscar, fazer como ja fizemos outras vezes, mas era vc na escrita, por isso nao me arrisco, nao corro o risco. Abraçao

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    1. Será, Pedrão? Não sei se eu conseguiria resumi-la e deixá-la numa métrica musical. me ajuda aí, vai! Por exemplo: escolhe umas partes de que você mais gostou, daí tento focar nelas.

      Abraços,
      Léo.

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  4. Comentei e não apareceu... Dizia que era incrível tudo isso o que escreveu!
    Beijo e Luz! SUCESSO SEMPRE
    Gracias! Arigatô!

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  5. Puta texto, "métrica, rima e nunca dor". Letra de música ainda maior que Bye Bye Brazil sem edição. E você, um caso à parte, um ser que se alimenta de arte!

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    1. Salve, Dimi, parceirão! Tá me devendo umas gravinas, hem? rs

      Valeu, queridão!

      Abraços,
      Léo.

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  6. Esta tudo no lugar, fica dificil a escolha. Tentarei. Abraçao

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    1. Pedrão, na pior das hipóteses é um bom exercício, não? rs

      Se não conseguir, esperemos sua volta, daí tentamos fazer juntos.

      Abração,
      Léo.

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  7. Li e reli, buscando discordar, não achei uma palavra que me levasse, a esse intento, enveredar. Pior! teve a audácia de me inspirar, logo eu, que sou tão dada a contestar. Não sou chacota, não sou "ismos" ou fobia, nem metralhadora, me livro de endoidar. Quem sabe um dia, todo humor, da estupidez, também venha se livrar. Conheço sensatos que deveriam se engajar. Falei muito, já estou começando a delirar. De toda forma, pelo texto, o autor só posso parabenizar.

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    1. Oi, Vanessa! Tudo bem?

      Queridona, adorei seu comentário e fico satisfeito em saber que minha escrevinhação te inspirou. Entrando no espírito – e a título de exercício –, te convido a continuar no clima em posterior comentário, mas dessa vez alternando a classe gramatical das rimas. Topa?

      Beijos,
      Léo.

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    2. Que isso Léo? Você quer meus comentários poetizados, kkkkk...
      Olha que eu topo, heim.

      Só me permito poemar livremente
      Pois que há pouco fugi do cativeiro
      E toda algema me lesa literalmente

      beijo
      challenge accepted

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    3. Olha aí, Vanessa! Nada como um bom desafio! Isso aí já é o começo de uma letra. A gente pode trocar o "poemar" por "amar" e já dá uma canção de amor(-livre). Ó só:

      Só me permito amar se livremente
      Há pouco escapuli do cativeiro
      E toda algema lesa minha mente
      Meu coração tem pés de aventureiro

      Continua?

      Beijos,
      Léo.

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    4. Só me permito amar se livremente
      Há pouco escapuli do cativeiro
      E toda algema lesa minha mente
      Meu coração tem pés de aventureiro

      Quando o sentido se espalha pelo o horizonte
      A vontade se enrosca no seu rastro
      Procuro uma via que me leve à tua fonte
      Me esquivo do desvio que me sugue para o claustro

      kkkkkkk
      Que legal!
      Até hoje só tinha brincado disso, sozinha!
      Você é Phoda, né Léo!?

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    5. Oi, Vanessa!

      Brincar a dois é (quase) sempre melhor que brincar sozinho, né? rs

      Tô gostando dessa brincadeira também, mas acho melhor passarmos pro âmbito privado (mensagem do face? ... e-mail?). A comunicação fica mais rápida e as negociações, mais certeiras. rs

      Bora?

      Beijos,
      Léo.

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    6. Vamos.
      É só chamar, que eu já estou lá!
      Digo isso porque o meu tempo é mais flexível que o teu.
      Então.
      Quem se adapta sou eu.
      :)

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