sábado, 4 de julho de 2015

A Palavra É: 8) Dezesseis

O sumido Belchior costumava cantar "Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado: Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado". Eu, apesar de não ser mais tão moço assim, poderia ter escrito esses versos, pois me considero um sujeito de sorte. Mais, considero-me mesmo um vencedor. Vindo de onde vim, passando pelos becos e presepadas por que já passei, tô no lucro. Sem falar que, salvo alguma marmelada extracampo, ainda vejo longe o fim do tempo regulamentar das batidas del mio cuore. E, assim como disse Belchior, "já não posso sofrer no ano passado".

E sobretudo sou sortudo por, apesar de viver numa grande cidade de um país tão violento, raras vezes me encontrei em situação de risco real. Às vezes, quando ouço depoimentos de pessoas que não tiveram a mesma sorte, penso que, se eu estivesse no lugar delas, provavelmente sentiria o mesmo ódio, a mesma raiva, e me perguntaria "por que eu?". É muito fácil você sentir raiva de um cara que aponta um cano em sua direção. A primeira coisa que vem à cabeça é tentar alguma bobagem, dar uma de herói americano e render o sujeito. Afinal, é o que mais vemos ao ligarmos a tevê. O mundo está cheio de ódio, e o cinema de entretenimento e as redes sociais só nos induzem mais e mais a que sejamos caixas de ressonância dessa violência.

O que escrevi acima foi só pra frisar que, como obviamente sou humano, me sentiria danado da vida ao perder pra um pirralho qualquer (ou pra um adulto...) algo que me tivesse custado muito suor. O problema é que sempre pensamos em nosso umbigo, em nossas perdas; nunca mudamos o foco pra pensar, um pouquinho que seja, em quem já nasceu perdendo. As desigualdades também promovem o ódio. Existem leis no Brasil – como o Estatuto da Criança e do Adolescente – que tratam do bem-estar e da proteção de toda e qualquer pessoa com menos de 18 anos. O artigo 4º, por exemplo, diz que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária."

Taí, as leis existem, mas existirem só não é suficiente. Precisam ser aplicadas, obedecidas. Você, que sempre viveu no conforto, imagine-se por um minuto apenas tendo nascido na rua e morando embaixo de uma ponte. Imaginou? Vendo passar a seu redor um sem-número de crianças achando natural gozar de privilégios que você provavelmente jamais terá. E aí? O que deve passar pela cabeça de um moleque que se vê obrigado a vender bala num semáforo ou num trem sabendo que, enquanto isso, outro, limpo e bem-alimentado, está numa sala de aula numa escola cara? Não quero justificar o ódio, são apenas reflexões... Esse moleque já está preso. Daí, atender aos apelos e às facilidades da droga e do roubo é um pulinho, um atalho pra que ele possa (ou imagine poder) ter o mesmo que você...

Há algum tempo, dando uma aula particular de reforço a uma adolescente (filha de um casal de amigos) que não sabia que Brasília é a capital do Brasil(!), tentei fazê-la perceber que devia se esforçar muito mais pra fazer jus ao quão felizarda era por ter pais que lhe podiam pagar uma mensalidade mais cara do que o salário de muito trabalhador por aí. Assustei-a, dizendo que, se chegasse aos 18 sem ter absorvido nada do que estudava e seu pai lhe cortasse a verba, poderia acabar trabalhando limpando latrina por aí. Ela esbugalhou os olhos, petrificada. Talvez, pela primeira vez, tenha pensado que não ia à escola apenas pra passar o tempo e que saber qual é a capital do Brasil era o mínimo que devia aprender em retribuição à grana investida nela por seus pais.

Cá pra nós, isso é algo que vou morrer sem aceitar: tente fazer o difícil exercício de se colocar no lugar de um pai de família que todos os dias, durante toda a sua vida, acorda cedo, trabalha de sol a sol... e ganha um salário menor do que custa a mensalidade de muita escola particular por aí. Por acaso, o valor desse funcionário é menor do que o desse estudante adolescente? E se for? Nesse caso, os filhos desse trabalhador porventura valem menos do que os tais adolescentes que estudam em escolas particulares? Se alguém souber, faça-me o favor de explicar essa equação, pois eu, sinceramente, não consigo entender... E ela fecha assim: esses garotos que sempre estudaram em escolas particulares acabam se formando em universidades públicas, ao passo que os outros têm que se virar pra pagar as particulares...

Mas, além do dezesseis, há a altivez, os bebês, os clichês, a desfaçatez, a estupidez, a fetidez, a gravidez, a honradez, a invalidez, o japonês, as leis, a morbidez, a nudez, o oporeis, a pequenez, o quereis, os reis, a sordidez, o talvez, o urdireis, os que não têm vez, o xadrez e os zés, que, como eu, não acham correto que ladrões travestidos de parlamentares decidam sobre o futuro de jovens que nunca tiveram futuro. E, assim, os ladrões pobres, pés de chinelo, irão pra cadeia mais cedo, aprender a se profissionalizar com os adultos, ao passo que os ladrões de colarinho sempre terão bons advogados à mão pra protegê-los e a seus filhos que, eventualmente, deem um mau passo. Sim, porque o jovem pobre que erre é ladrão, já aquele moço educado, coitado... Cometeu um deslize só... Não merece ir parar atrás das grades...

Li em algum lugar que 87% da população é favorável à redução da maioridade penal. Achei estranho, principalmente sabendo que nós não somos exatamente a Suíça. O que me fez pensar que os meios de comunicação conseguiram engabelar o pobre e fazê-lo temer o jovem infrator sem pensar que há uma possibilidade muito grande de que seu filho possa ser vitimado por essa nova lei. Em contrapartida, duvide-o-dó que o filho do rico pego em semelhantes circunstâncias sofra as mesmas penalidades. Nosso histórico corrobora minhas palavras. E o pior é que as pesquisas comprovam que a quantidade de crimes cometidos por menores é ínfima. Ou seja, ser votada uma questão dessas interessa a quem? Entendi; na falta de escolas, cadeia neles! Parabéns pra você! Quero só ver sua cara daqui a dez anos, quando o preso de hoje for solto... Ah, mas, até lá, quem sabe já tenhamos aprovado a pena de morte, né?


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PS1: Desta vez, quem escolheu a palavra fui eu mesmo.

PS2: Trilha sonora — Engenheiros do Hawaii, Muros & Grades (Humberto GessingerAugusto Licks)



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4 comentários:

  1. La influencia de los medios de comunicación en gral y de los noticieros en particular en la opinión pública es nefasta....mas para quien no puede o no quiere parar a pensar con mas profundidad...

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    1. Sí, Marce, yo opino igual que vos, pero en cuanto a las personas que tuvieron acceso a una buena educación y que, aún así, se equivocan. Pero en cuanto al pueblo la cosa es más compleja, verdad?

      Besos,
      Léo.

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  2. Boa escolha!
    Absurda a redução de maioridade penal, o que vulnerabiliza ainda mais os jovens, e expõe ainda mais a população a agressão.
    Absurdo os 87%.
    Que dificuldade argumentar com essas pessoa.
    Não enxergo uma preocupação, com o jovem ou mesmo com a redução de violência, o discurso é de vingança, mesmo.

    Beijo e sucesso Léo!

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    1. Enquanto o povão discute sobre o sexo dos anjos, as raposas de Brasília deitam e rolam, né não?

      Beijos,
      Léo.

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