terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crônicas Desclassificadas: 178) Os compradores de canções

Venho por esta publicamente afirmar que EU TAMBÉM compro canções! Sempre comprei desde meus primórdios de pastinha verde com letras batidas a máquina. A verdade é que eu tinha vergonha de dizer, pois tenho muitos fãs, mas meu ídolo maior, Chico Buarque, me deu coragem de dar esse grande passo. Adeus, insônia! Adeus, complexo de culpa! Adeus, análise! Adeus, confessionário! Agora, eu sou um homem livre! Eu compro canções! Aliás, falando nisso, agora que eu admiti fica muito mais fácil de conseguir vendedor; o que eu antes fazia na surdina, no câmbio negro, na calada da noite, agora posso fazer à luz do dia, sem o menor medo de ser flagrado. Posso encontrar um vendedor numa esquina e na caruda efetuar a transação sem medo de olhares de censura e reprovação. Obrigado, Chico!

Ah, você não está a par da novidade? Então, explico: Chico Buarque se deixou filmar abrindo o jogo, dizendo que ele nunca compôs, sempre comprou canções. Como diziam antigamente, é um comprositor (como Noel Rosa, que também era famoso em sua época por cometer tal delito). E deu até o nome de um de seus maiores fornecedores, um tal de Ahmed. Imaginem! Também, com esse nome, o cara jamais ia fazer sucesso, tinha mais era que vender mesmo. Mas eu, que já era fã do Chico por sua postura, seu posicionamento político e tal, e desde antes de saber que tínhamos isso em comum!, agora fiquei mais fã ainda. Reparem: desde que comecei no ramo, procuro fornecedores que imitem o estilo Chico de compor; agora que sei que ele também compra, fiquei numa felicidade maior, pois descobri que até nisso nos parecemos!

Há que se ter muita coragem pra nos dias de hoje, dias de ética e de ataques à corrupção, vir à público dizer que compra canções. O que, falando sério, não é nenhum crime. Business são business. Se eu quero comprar uma canção, tenho dinheiro pra tal, e encontro um sujeito bom poeta, melodista de talento, precisando de uma graninha pra pagar as contas e comprar o leite das crianças, por que não? Vejam meu caso: vivo de direitos autorais há anos, minhas canções tocam em programas de rádio e tevê, tô nadando em dinheiro e tal, comprei até uma fazendinha e reformei a casa na praia... em meu caso, comprar canções é um investimento. Com nota fiscal e tudo, declaro no imposto de renda etc., e ainda por cima ajudo muitos compositores pais de família a viverem com maior dignidade.

No mais, é um ato de desprendimento, de exercício de superar o ego. Chamar de sua uma canção que é de outro é um gesto de humildade! Sim, porque você sabe que não foi você quem fez! Entendem? É como assumir o filho de outra pessoa e dar seu sobrenome pra essa criança. Não dizem que pai é quem cria? Pois então? No caso da música, compositor é quem compra. E fica todo mundo feliz. Ninguém morre, ninguém sai perdendo, ninguém vai preso... Depois, quando a canção é gravada, o cara que vendeu ainda tem o orgulho de, numa roda de bar, dizer pros amigos que a canção que tá tocando no rádio é dele. Claro, se vão acreditar ou não já é outra história, mas o importante é o sujeito que vendeu saber que é dele.

No caso da literatura, pra dar outro exemplo, isso é supernatural. Existem ghost-writers aos milhares por aí. Por falar em ghost-writer, o próprio Chico já tinha tratado do assunto em seu romance Budapeste, que conta as desventuras de um profissional do ramo. Aliás, diga-se, Chico sabe bem do assunto, pois também comprou esse livro, que, obviamente, não foi ele quem escreveu. O cara não é gênio? Que senso de humor, que fineza! E que ideia essa de comprar um romance que trata de um ghost-writer! É praticamente um modo que Chico encontrou de, nas entrelinhas, agradecer a esses profissionais dos quais ele (além de mim, claro) sempre dependeu. Gênio! Muso! E agora é que o livro vai vender mais! Viver é saber rir de si mesmo!

Por falar niisso... Tá, tá... falo ou não falo? Falá-lo-ei (em homenagem ao presidente que não é presidente)! Sabe que eu fico assim meio constrangido, perdoem, porque pra mim esse negócio de ser verdadeiro ainda é novo; sempre encontrei amigos e familiares que me elogiavam e tal, e eu tinha que ficar quieto, angustiado, sem poder abrir o jogo... Nem pra minha mulher eu conseguia contar... mas agora, purificado por esse buarqueano depoimento de meu ídolo, desse gênio maior da comprosição, vou admitir: esperem, tô respirando fundo e contando até três. Agora vai! Agora vai! Meus fãs, esse meu premiado romance que tem andado em todas as listas dos mais vendidos, que tem recebido críticas espetaculares, o Filho da preta!, não é meu! Comprei-o!

Se o Chico pode, por que eu não posso? E, olhem, esse desabafo me fez um bem danado! Tô tão feliz que vou até cometer uma inconfidência, uma espécie de delação premiada. Nós, os compositores de esquerda, somos TODOS compradores de canções! Não vou citar nomes porque alguns de nós ainda são muito vaidosos e temem perder público dizendo a verdade única, absoluta e universal, que é esta: artista de esquerda nunca teve talento! Nem unzinho só! O que nos sobra é grana pra comprar nossa arte, essa é nossa sorte. E quando digo artista de esquerda falo de todos, sejam compositores, poetas, romancistas, dramaturgos, artistas plásticos, atores – aliás, no caso destes últimos é pior ainda, porque pagam pra alguém usar uma máscara com sua face. Não é fácil!

Pra finalizar, vou abrir meu fornecedor: Chico compra canções de Ahmed, já eu compro de um tal de Lobão.

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4 comentários:

  1. Rsrsrs
    Pertinente!
    E teve quem acreditasse.

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  2. Como alguém que acompanhou as cólicas e contrações durante o parto do "Filho da preta!", devo confessar que meu primoroso tem desenvolvido um aguçado senso de sarcasmo ultimamente... força nas tamancas, Léozito, o mérito é de quem o possui!

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    1. Pois é, primorosa! O aguçado senso vai menos sendo desenvolvido que descambado. rs

      Beijos,
      Léo.

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