terça-feira, 9 de junho de 2020

Eu Não Vi, Mas me Contaram...: 11) Marx e o vírus

Antes de sair de casa, além de me lembrar de pegar a necessária máscara que jazia sobre a escrivaninha, meio escondida entre vários livros, também optei por resgatar de uma gaveta minha velha camiseta vermelha que tem um desenho central de Karl Marx chutando uma bola, do lado esquerdo superior um emblema da CPF (Comuna Proletária de Futebol) e do lado oposto o tão intimidador símbolo comunista da foice fazendo um xis com o martelo. Em tempos de pandemia, todo cuidado é pouco e manter afastados os indesejáveis é salutar. A cada vampiro, seu merecido alho.

A recomendação é pra que fiquemos em casa, mas a geladeira e a despensa vazias me obrigaram a sair e enfrentar nessa surreal guerra os inimigos ocultos — e tão ocultos que às vezes usam a mesma farda que nós. Sorte que o mercado não fica tão longe assim. Durante o caminho, fui driblando transeuntes como um enlouquecido Garrincha que dominasse uma bola imaginária. E, embora agnóstico, fui rezando ao deus dos descrentes pra que não cruzasse com nenhum velho amigo, pois poderíamos cair na tentação de querer exercer a desobediência e ir a algum bar molhar a palavra e falar mal do governo e dos que não respeitam a quarentena.

Ao entrar no mercado, mais rápido que um pistoleiro de filmes de bangue-bangue saquei de meu álcool gel, espargi-o sobre as mãos, e, qual um Pilatos moderno, lavei-as. Na sequência, peguei um carrinho e fui novamente dar meus dribles, agora enfrentando assustados consumidores. Nunca pensei que a ida ao mercado um dia se assemelhasse a uma cena de filme de ficção científica na qual veria cada semelhante como uma ameaça. A prévia listinha que dormia num bolso traseiro de minha surrada calça jeans era vez em quando consultada, no intuito de tornar a via-crúcis menos penosa e larga.

A escolha dos artigos/alimentos/bebidas de primeira necessidade foi sucedida por longa espera numa fila quilométrica. Nem tanto pelo número de pessoas, mas pela distância que cada um de nós mantinha do seguinte e do anterior, obedecendo aos avisos fixados no chão. Um tanto ofegante pela dificuldade de respiração causada pelo uso da máscara, de repente notei que o casal a minha frente cochichava e vez em quando o homem se virava e me lançava um olhar indignado que ora me feria os olhos e ora repousava em minha camiseta. Invadiu-me um súbito mal-estar e me senti como se fosse um leproso. 

A esposa do sujeito então o agarrou pelo braço e lhe disse, quase áspera:

— Para com isso, Adolfo! Você não quer causar um escândalo aqui, né?

— Eu não suporto esses idiotas, Eva! Por que não vão pra Cuba? — respondeu em desabafo Adolfinho à mui paciente consorte.

Ao ouvir o batido lugar-comum, não consegui conter o riso, que foi logo percebido pelo sujeito, que se virou novamente e, dirigindo-se a mim, puxou sua máscara até o queixo antes de indagar:

— Tá rindo do quê, imbecil? Se tem algum palhaço aqui, não sou eu. Você não tem vergonha de sair do seu cortiço usando uma porra de camisa dessas?

Adolfo, pelo amor de Deus, olha o escândalo! — Estas foram as sábias, e ignoradas, palavras de Eva.

Naquele instante, mil coisas passaram por minha cabeça e, pra abusar da sinceridade, a vontade que tive foi de dar dois passos em direção ao Adolfinho e esganá-lo, mas refleti e preferi mudar de tática. Até porque, ao contrário do que ele disse, não sou imbecil o suficiente a ponto de não perceber que esse bípede gado que sai às ruas mugindo merdas só o faz porque se espelha em seu líder, que, pra tristeza dos demais, é hoje o chefe da nação. Restou-me, portanto, olhá-lo longa e fixamente nos olhos, sem agressividade, mas sem medo, com estudada frieza, e igualmente puxar minha máscara até o queixo pra melhor lhe regalar um sorriso maroto de canto de boca acompanhado do olhar mais blasé de que dispunha.

Obviamente, meu comportamento pareceu agredi-lo mais que qualquer porrada nas fuças e o transformou num cão raivoso, espumando pela boca. Seus olhos, subitamente tingidos de 50 tons de escarlate, flamejavam. Adolfinho também piscava tanto como se tivesse sido acometido por uma espécie de taquicardia ocular, e tive que conter o riso ao reparar em seu cacoete de lamber os beiços com a língua, que tentava em vão, como um para-brisa bucal, limpar o acúmulo de baba que, já branca e seca, desenhava um repulsivo filete vertical em cada canto de sua boca.

Foi quando tive a certeza de que ele iria me agredir fisicamente e, em vez de dar um passo pra trás, dei um pra frente e, na falta de arma, semicerrei os olhos e fiz uma cara de mau que é minha especialidade e vez em quando assusta até a mim mesmo quando a fito no espelho. Pareceu fazer efeito, pois ele congelou os passos por um instante, e sua mulher, que durante esse meio tempo já pagara e embalara as compras, aproveitou pra pôr ordem no galinheiro:

Adolfo, se você der mais um passo, entro no carro, me mando e te deixo aqui!

Ele olhou pra ela com cara de paspalho, como se acabasse de despertar de um transe. Eu ria amarelo e balançava a cabeça negativamente olhando pros demais clientes, tentando encontrar neles algum apoio, no que me enganei redondamente, pois, pra meu espanto, recebi de volta apenas olhares recriminadores que tacitamente me julgavam, como se eu tivesse iniciado a confusão. 

Um segurança do mercado se aproximou e abordou o bom Adolfo, guardião da moral e dos bons costumes; achei que o fosse recriminar, mas o que o sujeito fez foi lhe dar um amistoso tapinha nas costas e se oferecer pra ajudar a levar as sacolas até a saída, a caminho da qual o acompanhou sorridente e falastrão, como a pedir desculpas.

Comigo ninguém se desculpou; ganhei somente um olhar entre constrangido e condescendente da moça do caixa. Paguei a compra, apanhei minhas sacolas e voltei pra casa com um gosto amargo na boca que por longos minutos me pareceu mais letal que o próprio vírus do qual todos fugíamos.

***

O conto acima é livremente inspirado em fatos reais protagonizados por meu amigo e editor Marcelo Nocelli, que os relatou no fb (mais especificamente aqui).

***

6 comentários:

  1. Pois é! Os vermelhos sofrem.
    Muito bom, Léo. Deu todo brilho e clímax de duelo pra estória como só um escritor estupendo como você faria.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vanessinha Curci, agradeço pelos elogios, mas tenho que dividi-los com o Marcelo, pois o conto em questão foi praticamente surrupiado do relato dele (não à toa, em espanhol "relato" e "cuento" são sinônimos). Mas é sempre bom ouvir/ler palavras carinhosas. Valeu! 😘

      Excluir
  2. Adolfo e sua "conge", dois cidadãos de bem! Ao menos Eva manteve a civilidade. Ótimo conto, Léo-San!

    ResponderExcluir