sexta-feira, 5 de abril de 2013

Crônicas Desclassificadas: 81) Empregadas domesticadas

O hábito de ler jornais é também o hábito de ler ideias. Eu queria ter o tempo e a disposição que tem, por exemplo, Caetano Veloso, que já disse numa entrevista que lê vários jornais no café da manhã (e depois volta a dormir). Minha realidade é distinta, quando muito leio mal e porcamente a Folha de São Paulo velha de guerra, hábito que, com um ou outro escorregão, tenho mantido há longos anos. Um amigo certa vez me criticou, dizendo que a Folha é de direita e blá-blá-blá. Procuro não entrar nessa paranoia, pois daí teria que procurar um jornal "de esquerda", o que seria decisão igualmente equivocada, visto que um bom jornal deveria ser neutro, pra que pudesse dar as notícias sem parecer tendencioso.
Se a Folha em seus editorias por vezes esbarra em ideias da Veja, por outro lado possui uma gama admirável de colunistas com liberdade pra explorar os temas mais espinhosos. Mesmo alguns declaradamente direitistas (como João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé) possuem o raro talento da clareza de pensamento expressa pela via da escrita, o que sei, por experiência própria, não ser um dom a se menosprezar. No mais, é sempre bom saber como defende sua opinião aquele que discorda da nossa. Claro, há um ou outro que não vale uma olhadela, mas a Folha não tem exclusividade nisso. Depois, basta virar a página pra encontrar Carlos Heitor Cony, Ruy Castro, Xico Sá, Marcelo Coelho, Tostão, Clóvis Rossi, José Simão, Barbara Gancia, Danuza Leão (das duas últimas discordo vez por outra, mas admito que me prendem)... E há algum tempo vem me chamando a atenção um tal de Antonio Prata!

O jovem Prata (sim, jovem, pois veio ao mundo apenas cinco anos depois de mim) possui características que prezo num texto: bom humor, pena afiada, o acerto na escolha dos temas, entre outras coisas. Sobretudo sabe navegar pelas turbulentas águas da emotividade com sensibilidade cirúrgica pra não descambar no piegas. Foi assim seu mais recente texto, PEC & Pague (leia aqui), no qual tratou de algumas reminiscências motivadas pelo reencontro com uma senhora que fora empregada doméstica em sua casa quando ele era garoto. Curiosamente acabei de compor com Marcio Policastro uma canção cuja protagonista é uma doméstica, e Poli sugeriu que mudássemos sua profissão, pra evitar polêmicas. Não só argumentei no intuito de mantê-la, como, incentivado por Prata, resolvi falar um pouco dessas senhoras.

A empregada doméstica de minha casa sempre foi minha mãe. O salário de meu pai não dava pra esses luxos. Cresci, casei-me e continuei sem saber o que é dividir a intimidade do lar com tão imprescindíveis heroínas. Claro, sempre há aqueles momentos em que, depois de uma festa, quando bato o olho na pia repleta, ou quando tenho que me deparar com meias e cuecas em precário estado de manutenção, adoraria estalar os dedos e ver se materializar ante mim um desses exemplares de "pau pra toda obra". Porém, tampouco meu salário me dá essas folgas. Até poderia contratar uma pra vir uma vez por semana, mas nessa hora entro em choque com meus princípios, tapo o nariz e profiro aquela frase que sabe caber tão bem nessas situações: "se não tem tu, vai tu mesmo!"

O ser humano aprende com as adversidades. Eu, por exemplo, desenvolvi a técnica de compor lavando louça. Recomendo aos colegas compositores. Quando venço a última e engordurada panela chego até a sentir saudades dessa força motriz inspiradora. Por outro lado, concordo com o Prata quando diz que tratando de sua relação com a ex-empregada se sentiu como que se recordando da infância de um menino de engenho do século 19. Há dignidade em todas as profissões, e todas merecem nosso respeito, mas algumas são herdeiras da escravidão. Tenho certeza absoluta de que nenhuma criança jamais em sã consciência respondeu, quando indagada sobre o que queria ser quando crescesse, "eu quero ser empregada doméstica". Você, estimada leitora de unhas reluzentes, alguma vez, quando brincava com sua boneca, acalentou-a como se fosse a filha da patroa?

Não! Nenhuma criança jamais sonhou com tal profissão. E considero crime inafiançável preparar crianças a terem sonhos tão pequenos. Aliás, ser empregada doméstica não é sonho, é resignação. É como garçom. Quando vou a um desses restaurantes italianos tradicionais e vejo o olhar de respeitabilidade daqueles senhores de cabelos grisalhos que me servem com técnica apurada forjada em décadas de experiência no serviço do servir, por vezes meu coração fica parecendo feto dando chute na barriga da mãe. Tento penetrar naqueles olhos pra ver se descubro quando o garoto largou a bola e agarrou um guardanapo e uma bandeja... Certas profissões me deprimem. Eu, que, em períodos de vacas magras, já trabalhei em obras como servente de pedreiro, até hoje sou traumatizado. Não posso passar em frente a um prédio em construção, que me embrulham o estômago os cheiros, a visão dos capacetes, o ar empoeirado, os olhares perdidos noutro lugar...

Imagine você se ver obrigado pelas circunstâncias a passar uma vida inteeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeira trabalhando em algo que não escolheu. Use de empatia e tente, por exemplo, a título de exercício, pensar que está dormindo e é acordado por um despertador barulhento e se vê numa casa pequena que fica a, digamos, uma hora e meia daquela onde você passará o dia servindo, humildemente e com um forçado sorriso no rosto, pessoas que hierarquicamente lhe são superiores pelo simples fato de terem sido escolhidas pela sorte pra virem à luz expulsas da barriga certa. Pensaram? Não dá um pavor? Meio que como naqueles filmes em que o cara acorda num lugar estranho na pele de um estranho numa situação pra lá de estranha. Não, tsc tsc tsc... Como dizem por aí, "ninguém merece". Nem os que merecem!

Claro, você pode rebater e dizer que também acha seu emprego chato, seu patrão um mala, mas você estudou pra isso, escolheu. As empregadas domésticas não. Elas são empurradas pra isso. Você pode até achar um médico filho de doméstica, mas jamais encontrará uma doméstica filha de médico. Por que será? Hem? hem? Agora li que a vida das domésticas vai melhorar. Não discordo. Inclusive aplaudo a iniciativa (podiam aproveitar, passar aqui na editora e proibir a carga horária de 44 horas semanais). Quando não dá pra prevenir é louvável remediar. Tenho certeza quase absoluta (como assim?) de que o futuro delas será bem melhor. Mas nada vai trazer de volta o passado delas, quando brincavam de bonecas e sonhavam com várias profissões, mas nunca lhes passava pela cabeça se tornarem digníssimas e respeitáveis empregadas domésticas.

***

10 comentários:

  1. Léo, concordo em grande parte com você. O problema, no entanto, são os efeitos colaterais das mudanças que estão acontecendo: muitos patrões vão deixar de ter condições de contratar empregadas. Muitos, ainda, precisarão demitir suas empregadas atuais. O resultado? Demissão em massa.
    Minha irmã, por exemplo, estava quase contratando uma, mas desistiu.
    Beijos,
    Danny.

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    1. Danny, queridoca, só que meu enfoque foi outro, voltado a uma sociedade que precisa de vassalos. No Japão, por exemplo, não há empregadas domésticas. Em alguns países a profissão de garçom é ocupada por universitários que precisam pagar a faculdade. Aqui os caras envelhecem nessa profissão, sem expectativa de galgar nada além dela. Triste...

      Beijos,
      Léo.

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    2. Creio que tudo que é visto de fora da "carne" é um pouco certo e outro tanto equivocado. Eu tinha um amigo que dizia (meio cruel) que há os que nascem para serem "pregos" e os que nascem para serem "martelos". Isso não me soava bem.

      No mundo há que ter os que catam lixo, os que são obreiros, aqueles que se dedicam até a coisa nenhuma, vegetando ou polemizando mais o planeta.

      Havia as mulheres submissas aos maridos. As empregadas de gerações consecutivas...

      Não se tinha leis gerindo isso.

      Tudo é relativo!

      Não gosto dos sem-terras, pelas atitudes que lhes acabam sendo induzidas.

      ...enfim...

      As moças domésticas, que ainda existem por aqui (em muito menos quantidade), devem saber o que lhes é melhor à carne.

      abraço forrrrrrrrrrte!
      Prista

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    3. Salve, Prista!

      É, rapaz, são pensamentos como o de seu amigo que atrasam o mundo. Como dizia Caetano, "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Nem pra ser capacho de pés abusados.

      Abração,
      Léo.

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  2. Pois é... onde está a cruz, onde está a espada?

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  3. Hola Léo... qué tal todo ..
    me gustó mucho tu texto....

    es cierto, son terribles muchas veces las condiciones en las que están las empleadas domésticas... a veces son maltradas verbalmente por sus jefes, pero les toca quedarse trabajando porque necesitan dinero.... pero afortunadamente también hay jefes que son buenos con ellas.

    No lo había pensado tanto, pero me hiciste analizar, y es verdad que a veces no valoramos nuestros trabajos porque estamos aburridos, o cansados de los jefes, etc., pero esos trabajos corresponden con nuestras disciplinas escogidas como profesionales... y sí, qué diferencia con quienes trabajan en algo que no quisieron, ni siquiera en algo que estudiaron....

    agradezco mucho tu texto, porque me hizo reflexionar!
    Aquí en colombia, hay empleadas hasta de 60 años de edad. Es terrible !!!! y todo porque son personas que no tienen recursos y necesitan trabajar para poder vivir.... Me parece grandioso que haya culturas, países donde no existe ese rol, o bueno de esa forma... como en Japón.

    Gracias!!!!!
    estamos hablando.

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    1. Hola, Javier!

      Gracias por tu visita y tus comentarios.

      Sí yo creo que todo niño debería tener una educación que le posibilitara crecer libre para eligir su profesión y su futuro.

      Gran abrazo,
      Léo.

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  4. Você gostaria deter seu texto (poema, conto, prosa, ensaio, matérias de cultura em geral, biografias de bandas, artesanato, turismo, artes plásticas, saúde, vida, sociedade...etc) no blog FANZINE EPISÓDIO CULTURAL?
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    1. Valeu pela visita e pelo convite, Carlos. Vou dar uma passada lá.

      Abraço,
      Léo.

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