quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Grafite na Agulha: 33) Noel Rosa

Estivesse vivo, Noel Rosa comemoraria hoje 104 anos. Quer dizer, esse "estivesse vivo" é força de expressão, pois, levando a vida que levou, mesmo que tivesse escapado da tuberculose, teria morrido de cirrose no máximo dez anos depois. Azar o nosso, que deixamos de ganhar possíveis outras centenas de obras-primas, pois Noel, com seus pouco mais de 26 anos, deixou-nos 300 e tantas canções, a maioria de qualidade indiscutível. Meu parceiro Ayrton Mugnaini Jr. escreveu sobre como a descoberta de Noel influenciou em sua obra. O paulistano Ayrton, pra quem não conhece, é jornalista, compositor, escritor, pesquisador de música popular e tradutor; tem cerca de 20 livros publicados; foi integrante dos grupos Língua de Trapo e Magazine; e é um dos produtores do programa Rádio Matraca, que passa todos os sábados na USP FM. É pouco ou quer mais? Manda bala, Ayrton!

Noel Rosa

Se 1973 foi “o ano que reinventou a MPB”, 1970 foi o ano em que eu me inventei para ela – e para o mundo. Em 1968 eu já havia composto dois ou três amontoados de palavras e notas a que se poderia chamar de versos e canções, mas faltava algo para me impulsionar de vez – e o então recém-lançado fascículo e disco da Editora Abril sobre Noel Rosa foi esse “algo”.

Eu já era fã e colecionador dos fascículos da Abril, como ConhecerBom Apetite e a primeira série com LPs de música erudita; e de repente uma tia que sabia que eu gostava de música resolveu me presentear com esse fascículo sobre Noel – primeiro volume da excelente e importante coleção História da MPB de discos e fascículos. Foi naquela noite de domingo que fiquei sabendo que Noel existia, e ouvi tanto o disco que, 44 anos depois e após 25 anos sem ouvi-lo, ainda lembro os títulos, intérpretes e ordem das faixas.

Eu já conhecia artistas como ChicoCaetanoRoberto e outros da televisão; e GordurinhaMoacyr FrancoInezita e outros da discoteca familiar. Para ser mais estrito, nessa mesma época, um pouco antes ou depois de conhecer esse fascículo de Noel, eu havia conhecido um álbum de 78 RPM de Aracy de Almeida interpretando o vate da Vila, mas só fui prestar atenção no compositor com esse fascículo mesmo. Falei em 78 RPM? Sim, sempre gostei deles e ainda gosto, inclusive minha geração foi a última a comprá-los novos em lojas, e esse fascículo foi um dos últimos representantes de um formato muito popular, mas que estava começando a dar suas últimas voltas: o LP de 10 polegadas, geralmente com apenas oito ou dez faixas.

Sim, esse meu primeiro disco de Noel foi minha primeira coletânea dele. Por sinal, não tem grandes hits como Feitiço Da Vila, Gago Apaixonado ou Feitio de Oração, mas a obra de Noel é tão organicamente coesa e copiosa que as oito faixas deste LP bastavam como uma boa introdução à obra do Poeta da Vila – se tivesse sido lançada em 1966, poderia bem ter sido o “bom disco de Noel” que a Rita levou.

Este foi o primeiro disco de música popular que vi a trazer não só as letras das canções, mas também fartas informações sobre como foram escritas, as gravações, datas de lançamento e um belo estudo sobre o artista que, mesmo com alguns erros (como dizer que Noel ficava triste ao ser chamado de “Queixinho”, apelido que, comprovou-se mais tarde, nem existiu), ainda sobrevive como uma boa apresentação à obra e também ao próprio artista. Foi também onde conheci Orlando SilvaAlmirante Marília Baptista e Vadico. E realmente a seleção musical ficou redonda, privilegiando grandes sucessos e também canções que merecem ser mais lembradas. Não faltam o Noel intérprete, uma parceria com Vadico, interpretações de Aracy (que Noel considerava sua melhor intérprete) e releituras por artistas mais novos e em evidência (no caso, Maria Bethânia e Martinho da Vila).

Pois bem, faixa a faixa:

·         Último Desejo

Aqui presente na gravação original de Aracy de Almeida (feita em 1937, logo após a morte de Noel nesse mesmo ano), este samba é uma obra-prima de romantismo sob a óptica da ironia, o que é muito bom para ajudar a suportar o fim de um romance.

Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão

Perto de você me calo

Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Mas meu último desejo

Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação

Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim

·         Três Apitos

Composta em 1933 e lançada somente em 1951, bem após a morte de Noel, por Aracy de Almeida, numa boa gravação, mas já sob a influência amolengante e lugubremente abolerosa do samba-canção, esta canção ficou, penso eu, bem melhor na interpretação sóbria de Maria Bethania, acompanhada apenas pelo violão de Carlos Castilho, num compacto com seis canções noelinas lançado em 1965. E temos aqui mais romantismo livre de melosidade e pieguice graças à ironia; desta vez, a pessoa que canta banca a voyeur, impossibilitada de se aproximar da pessoa amada, mas observando-a de longe (Noel inspirou-se numa amada real que trabalhava numa fábrica de botões, mas compôs “fábrica de tecidos” por erro de informação).


Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro?

Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você

Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

Ayrton
·         Dama do Cabaré

Lançada por Orlando Silva em 1936, é uma das obras-primas de Noel esquecidas pelo tempo, e com mais romantismo irônico, mas desta vez em narrativa quase jornalística. Moral (ou amoral) da história: “quem é da boemia/usa e abusa da filosofia/mas não gosta de ninguém”, ou seja, na boemia o romantismo é existencialista, faz-se muito amor e ama-se pouco (e demorei mais um ano ou dois para saber que esta Lapa não era a paulistana e sim a carioca...).

Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée

Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá meia hora
Depois de descer a orquestra

Em frente à porta um bom carro nos esperava
Mas você se despediu e foi pra casa a pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da Dama do Cabaré

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que recebi, não me lembro de quem
Você nela me dizia que quem é da boemia
Usa e abusa da diplomacia
Mas não gosta de ninguém

·         Conversa de Botequim

Finalmente o Noel Rosa puramente humorístico, numa de suas mais famosas críticas de costumes desde seu lançamento pelo próprio Noel em 1935. Todos vocês já devem conhecer a letra – e a tão funcional quanto inventiva melodia de Vadico – , mas nem todos conhecem esta (muito boa) gravação, feita por Martinho da Vila em 1970, especialmente para este fascículo.

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa...

Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom, me empreste algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente

·         Palpite Infeliz

Mais escracho noelino, desta vez uma exaltação bem-humorada (e diplomática) à Vila Isabel, bairro natal do artista, como grande reduto do samba carioca, e na gravação original de 1936, por “Araca” (tendo o auxílio mais que luxuoso de Orlando Silva, não creditado, no refrão).

Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

·         Quem Ri Melhor

Única faixa desse disco cantada pelo próprio Noel (e em dueto com Marília Baptista) e outro belo exemplo de romantismo irônico, “a vingança é um prato que se serve frio”. Esta gravação de 1936, por sinal, foi a última de Noel – informação do livro Noel Rosa: uma biografia, mais um belo livro a ter sido proibido no país dos ex-degredados, ex-milicos e ex-direitistas e com um censor ou censora em cada lar.

Pobre de quem já sofreu nesse mundo 
A dor de um amor profundo 
Eu vivo bem sem amar a ninguém 
Ser infeliz é sofrer por alguém 
Zombo de quem sofre assim 
Quem me fez chorar 
Hoje chora por mim 
Quem ri melhor é quem ri no fim

Felicidade é o vil metal quem dá 
Honestidade ninguém sabe onde está 
Acaba mal quem é ruim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim 
Quem ri melhor é quem ri no fim

Pobre de quem já sofreu nesse mundo 
A dor de um amor profundo 
Eu vivo bem sem amar a ninguém 
Ser infeliz é sofrer por alguém 
Zombo de quem sofre assim 
Quem me fez chorar hoje chora por mim 
Quem ri melhor é quem ri no fim

Sabendo disso eu não quero rir primeiro 
Pois o feitiço vira contra o feiticeiro 
Eu vivo bem pensando assim 
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim 
Quem ri melhor é quem ri no fim

·         O Orvalho Vem Caindo

Outra observação satírica do cotidiano na gravação original, lançada em 1933 por Almirante, grande cantor e também pesquisador de MPB. Noel assina este samba em parceria com Kid Pepe, ex-boxeador e, ao que consta, compositor cujas participações em parcerias não são com letra ou melodia e sim com os músculos.
O orvalho vem caindo
Vai molhar o meu chapéu
E também vão sumindo
As estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal
A minha cama é uma folha de jornal

Meu cortinado é um vasto céu de anil
E o meu despertador é o guarda civil
(Que o salário ainda não viu!) 

O orvalho vem caindo...

A minha terra dá banana e aipim
Meu trabalho é achar quem descasque por mim 
(Vivo triste mesmo assim!) 

O orvalho vem caindo...

A minha sopa não tem osso e nem tem sal
Se um dia passo bem, dois e três passo mal
(Isso é muito natural!)

·         Com Que Roupa?

Primeiro sucesso de Noel, lançado por ele mesmo em 1930, e um dos sambas mais revolucionários de todos os tempos em letra, melodia e crítica social. Neste LP, ele é novamente bem-interpretado pelo conterrâneo Martinho da Vila, comprovando que Noel continuava atual 40 anos depois.

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar

Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar

Eu já corri de vento em popa
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu

Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Seu português agora deu o fora,
Já foi-se embora e levou seu capital.
Esqueceu quem tanto amou outrora,
Foi no Adamastor pra Portugal,

Pra se casar com uma cachopa,
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

Para finalizar, direi que este fascículo e LP vendeu tão bem e foi tão bem divulgado que continua fácil de se encontrar a preço camarada mais de 40 anos depois. E, para justificar minha fama de autorreferente capaz de encarar Lennon Caetano, lembrarei que meu primeiro disco – um compacto simples em acetato, cópia única, gravado em 1971 – demonstra a forte influência que tive desse disco de Noel: um lado é Três Apitos, dele, e o outro é um samba meu, Vida de Desocupado, uma mistura de Com Que Roupa? com Calouro Teimoso, de Gordurinha. Os dois lados do disco são instrumentais tocados em cítara; para vocês conhecerem o jovem músico e poeta de 13 para 14 anos, aqui vão trechos das letras e gravações – apenas trechos, porque documento histórico tem limite.

VIDA DE DESOCUPADO
Ayrton Mugnaini Jr. 

Aos que falam mal da minha vida
Não tenho nenhum problema, não
Moro em qualquer avenida
Não tenho carro pra não ir na contramão

O barman do bar é meu amigo
Por isso ele me vende fiado
Mas o que o patrão diz eu não ligo
Porque iria ser censurado 

Hoje não vou trabalhar porque é domingo
Nos outros dias sempre tenho outra desculpa
De noite eu roubo algo pra comer
E é sempre o Zé quem leva a culpa

***

História da Música Popular Brasileira – Noel Rosa (1970 – Editora Abril)

Lado A
1. Último DesejoAracy de Almeida
    (Noel Rosa)
2. Três ApitosMaria Bethânia
    (Noel Rosa)
3. Dama do Cabaré Orlando Silva
    (Noel Rosa)
4. Conversa de Botequim Martinho da Vila
    (Vadico – Noel Rosa)
Lado B
1. Palpite InfelizAracy de Almeida
    (Noel Rosa)
2. Quem Rim Melhor Marília Batista
    (Noel Rosa)
3. O Orvalho Vem Caindo Almirante
    (Kid Pepe – Noel Rosa)
4. Com Que Roupa? Martinho da Vila
    (Noel Rosa)

Ouça o LP na íntegra:








Ouça a canção de Ayrton:

***

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