quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Notícias de Sampa: 13) Vasco Debritto: fênix ou Sísifo?

Segundo a lei da gravidade, cair é fácil, subir é que são elas. Não à toa, existe até aquele ditado que diz que na descida todo santo ajuda. Há uns que até descem na banguela. Só que, quando o assunto é show business, aí a lógica se inverte. Sucesso e fracasso, ascensão e queda, são dois lados de uma mesma moeda que costuma cair sempre com a cara pra baixo. Assim, quando um artista está em evidência, sua subida é tão fácil, que às vezes parece que fulano é uma espécie de Super-Homem, basta socar o céu com o punho fechado e gritar "para o alto e avante!" pra sair por aí voando. Já quando a derrocada começa, aí a queda vem aos trancos e barrancos. Se bem que, se pensarmos na existência em termos de vida e morte, a descida é natural, tanto pra Frank Sinatra quanto pr'aquele anônimo cantor de barzinho.

No fundo, no fundo, somos todos Sísifos, e viver nada mais é que o eterno ato de empurrar a pedra até o topo da montanha, vê-la cair lá de cima e recomeçar o ato, até o ato final, quando o que cai não é mais a pedra, mas o pano. Por essas e outras, bater um bolão no primeiro tempo é fichinha, já manter a dignidade no segundo tempo, com a língua batendo no joelho e o placar adverso, não é pra qualquer um. Por isso que muitos pedem pra sair, jogam a toalha e ficam vendo o resto da partida do banco. Estes continuam vivos, mas não estão mais no jogo. Lembrei-me dos versos da clássica Volta por Cima, do saudoso Paulo Vanzolini, que dizia que "Chorei/ Não procurei esconder,/ Todos viram/ Fingiram/ Pena de mim, não precisava/ Ali onde eu chorei/ Qualquer um chorava/ Dar a volta por cima que eu dei/ Quero ver quem dava [...]".

E é assim, com essa dignidade que só os poetas possuem, que reaparece em cena, renascido das cinzas, 
Vasco Debritto, uma fênix cujas asas são de pura lira. Aliás, falar em Vasco é falar em lirismo. Suas melodias, seus versos e seus acordes são ouro do mais alto quilate; a oficina onde ele trabalha em sua obra alquímica é a mesma onde tempos atrás seu mestre Jobim lhe ensinava o caminho das pedras... preciosas. A arte de Vasco (assim, pelo nome, pros íntimos) vem desse tempo bom de banquinhos e violões, tempo em que ele brincava de ser feliz, inventava amores e canções, voava pra Paris ao mesmo tempo que acreditava em seu país grande, sem medo, onde os guris nas ruas jogavam seus jogos infantis... É, Vasco é pura bossa nova. Mas sua voz... sua voz... cá pra nós, é puro rock'n'roll!

É, meus caros, a personalidade de um cantor exala não pelos poros, mas por sua voz. Quando um cantor abre a boca, sua alma por ela escapa e ganha os ares... e os ouvidos de quem tem ouvidos pra ouvir. A voz de um cantor não finge, por mais firulas que seu dono possa lhe impor; sua verdade está ali, nua e crua, revelando os anos de estrada, as noitadas, os excessos... E a voz de 
Vasco traz tudo isso, é uma voz repleta de nicotina, de malte, uma voz sem esmalte, sem Melodyne, uma voz que, como na canção, é o que soa e não doura a pílula. Ouvir Vasco cantar é ter acesso a sua biografia; está tudo ali, quando ela fraqueja, quando ela trasteja, quando ela sussurra, quando ela berra... e até quando erra. A voz de Vasco conta uma história de vida, a história de um cara que viveu, amou, extrapolou todos os limites de velocidade...

... e ainda assim sobreviveu pra nos dizer, "Meninos, eu vi!". E o que 
Vasco viu, meus caros, não foi pra olhos quaisquer. Um camarada que veio lá de uma tal de Santa Cruz do Raio... digo, Rio Pardo, foi bater no Ridijanêro e de lá, via Galeão, foi pro mundo, pras Zoropas, pros Isteites, um dia fez escala no Japão e demorou 25 anos pra voltar! Haja história! Esse Debritto é da Gama! Eu, fosse ele, escreveria um livro. Mira, rapá, que o cara foi sucesso lá na Terra do Sol Nascente... e cantando na língua de Camões, veja você. Ganhou grana, virou dono de gravadora, levou gente boa pra dedéu pra cantar lá na terra de Kurosawa, sem falar nos que espalhou pelas generosas prateleiras dedicadas à música brasileira em tantas lojas japas. Seus serviços prestados a nossa música ali, tanto no gargalo quanto na Koala (sua gravadora), são dignos de prêmios!

Mas 25 anos são uma vida! Ninguém passa tanto tempo assim longe das raízes impunemente. Foi então que 
Vasco resolveu que já era hora de voltar pra "selva". E voltou. Cheio de amor pra dar! E o amor era tanto, que quase não cabia na mala. Passou pela alfândega, canastrão, assoviando um samba, pra não chamar a atenção. Onde já se viu em tempos de ódio entrar num país numas de traficar amor? Mas, como de costume, fizeram vista grossa, e o velho moço de farta cabeleira grisalha pôde entrar, com amor e tudo. E foi justamente por amor que ele se enfurnou Brasil adentro, com uma cabrocha 20 anos mais nova a tiracolo, e foi tirar umas férias de dois anos (ou foram três?), a título de lua de mel, não só com a cabrocha, mas com o país.

Só que aqui, meu chapa, a chapa é quente, o buraco é mais embaixo... e o amor incondicional custa caro. Pra resumir a história, os dois anos de férias vieram cobrar a fartura (e a fatura); os ienes se desmilinguiram; o melhor amigo do homem engarrafado pegou pesado e, ao contrário do que dizem, cansou de ladrar e empeçou a morder; o coração num guentou; a poesia foi bater no pronto-socorro; a depressão chegou de mala e cuia; e faltou isso pro sujeito pôr o violão no prego! Ao que tudo indicava, aproximava-se o triste fim desse Policarpo do século XXI. Mas quem tem família tem tudo. Imaginem que esse marmanjão foi chorar no colo da mãe como nos tempos em que molhava a fronha (tenho cá comigo que ainda molha...), voltou perdulário pra seu Rio Pardo, respirou ar puro – e todo mundo sabe que são as raízes que recarregam o coração desses homens de ferro, não é ou né?

E eis que lá vem ele de novo, assoviando um samba novo, dez anos mais magro. Trocou o melhor amigo do homem engarrafado pela água mineral (não a da Cantareira, espero), resgatou o violão do quase prego, meteu novo Quixote nas ideias, trombou com meia dúzia de Sanchos Panças e resolveu que era hora de voltar pra alquimia, a despeito do prateado do cabelo. Ó como vem! Vem assim, meio de viés, sabedor de que o malandro e o otário são um só, e ambos dão música pra caramba! E é assim que ele disse que vai, violão em punho, bater lá no Ton Ton Jazz nessa quinta-feira cujo apelido é 4 de dezembro. Com o coração ainda arrebentando de amor (e outras bossas), a voz ainda mais reveladora (visto que sua biografia ganhou novas páginas), enfim, por inteiro, com os defeitos (que não são poucos) e as virtudes (idem) batidos nesse liquidificador chamado vida. 

Vai lá mais uma vez carregar pedra (do meio do caminho) montanha cima. Enquanto não cai o pano.


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Show: Amei
Artista: Vasco Debritto
Local: Ton Ton Jazz
Endereço: Alameda dos Pamaris, 55 – Moema, Sampa
Reservas: (11) 3804-0858  
Data: quinta-feira, 4 de dezembro
Hora: 21h

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2 comentários:

  1. Excelente post, Leo! E, no final, ver o Vasco cantando emocionou e confirmou o teu comentário de que, nessa nova fase, ele está menos para bossa e mais na direção rock and roll. Até imaginei a canção num arranjo hard blues, pesado, com guitarras estridentes e gritos zeppelianos! hehe. Mas, reparando bem, Vasco não rompe totalmente com sua biografia: percebi a intenção da citação jobiniana no solo de trumpete! Tem ou não tem ali umas gotas das Águas de Março? :)
    Desejo ao Vasco todo o sucesso possível, que ele bem merece!

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    1. Salve, Alan!

      É verdade, meu velho! Boa descrição. O Vasco tá com um pé no rock e o resto do corpo na bossa. Hahaha!

      Abração,
      Léo.

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