domingo, 25 de novembro de 2018

Crônicas Classificadas: 47) A física de Chico Buarque

A vida em sociedade é um ato político. Assim, todo ser humano, em contato com o meio, acaba se transformando num ser político. Inclusive os alienados o são, embora não saibam disso. A política permeia nossas relações, sejam elas profissionais ou afetivas. Quando saímos de casa, independente de pra onde estejamos indo, levamos conosco nossa bagagem política. Assim também o faz um professor. Não existe neutralidade. Claro, existem as ocasiões que se nos apresentam; há os momentos propícios pra algo e os que não o são. O bom senso é primordial. Especificamente falando sobre essa suposta "escola sem partido", considero-a, mais que uma grande bobagem, algo difícil (pra não dizer impossível) de se pôr em prática.

A não ser que o professor deixe a si próprio fora da sala de aula ao entrar; caso contrário, suas convicções entrarão com ele e, como disse, aproveitarão algum momento propício pra dar as caras. Leio nas entrelinhas desse projeto não uma escola sem partido, mas uma escola sem esquerda; porque os que o promovem procuram simplesmente doutrinar os alunos pelo viés da direita. O problema não está em estudar Marx. Os alunos devem ter o direito de ter acesso ao maior leque possível de informações, sejam elas de esquerda, direita, centro... e só depois, tendo aprendido a pensar por si próprios, podem pôr na balança todo o conteúdo apreendido e devolver à sociedade algo que seja seu realmente, e não apenas a reverberação do que ouviram em sala de aula.

Hoje em dia, fala-se de política em todos os lugares, até (e sobretudo) nas igrejas e nos templos; então, por que não nas escolas? Quanto mais nos politizamos, menos somos vítimas de franco-atiradores como Collor, Doria... Bolsonaro. Entre tantos outros que se vendem mais como personagens do que como pessoas de carne e osso. São, como dizem, os que jogam pra plateia e dizem só o que esta quer ouvir. Não à toa, no momento em que tratamos sobre sala de aula, deparamo-nos com a vitória pra presidente da República de um ex-militar sobre um professor. São momentos em que vemos a educação perder pra belicosidade. E os livros perderem pras armas.

Tenho andado sem muita disposição pra escrever; minhas palavras (e meus pensamentos) me parecem, não diria inúteis, mas inaptos a atingir corações e mentes. Estes mesmos que andam enceguecidos por discursos simplistas e (falsamente) moralizantes. Contudo, como devemos seguir em frente e continuar a fazer o que é nosso ofício, vim aqui por meio desta prefaciar uma linda crônica do sempre brilhante Sérgio-Veleiro, que há algum tempo publicou no Facebook uma história que cai como uma luva nesse tema, e que prova como é belo por parte de um professor saber aproveitar as ocasiões e fugir do roteiro. Deixo-os, pois, em mãos melhores que as minhas. Por falar em mestre...



A física de Chico Buarque*

Era começo dos anos (19)90 e eu lá fazendo cursinho pro vestibular. Assistia à aula de física tenso, reparando em todos os movimentos do professor. Nada poderia escapar, eu era péssimo em física e ótimo em matemática; nunca vou entender essa contradição. A aula já no meio e eu concentrado anotando tudo. De repente, um cochicho no ouvido: "Tu sabia que o professor é doido pelo Chico Buarque? Dizem que ele tem tudo dele, todos os discos." Olhei de novo pro professor e não vi mais nada do movimento retilíneo uniforme.

Velocidade era igual a espaço sobre o tempo. Não era mais. Era só eu e o professor. Espaço zero. Tempo indefinido. Movimento nenhum. Mas, contrariando a lei da inércia, no meio da aula, sala lotada de alunos medrosos de vestibular e sedentos de cálculos, eu levanto o braço. "Alguma dúvida? Sim, você que levantou o braço, diga lá." Gráficos na lousa, vetores disparando para todos os lados e eu precisando fazer a pergunta mais importante da minha vida. "Professor, qual é a música do Chico Buarque de que o senhor mais gosta?" Susto geral. A classe se vira toda para ver a cara do doido que, no meio da aula de física, às vésperas do vestibular, quer falar de música.


O professor ficou lá me olhando, olhando… Eu, que sempre fui envergonhado, não sabia o que tinha acabado de fazer, foi um impulso, desses incontroláveis, que a gente só percebe depois. Fui ficando ruborizado, mas a curiosidade era grande, aquilo para mim era tão importante que não virei a cabeça um segundo sequer. Segurei no olhar. Convenhamos, era um ato de coragem. Nesse dia, entendi que a coragem é uma espécie de rebeldia ainda não maculada pelo medo. O professor veio em minha direção, silêncio sepulcral na sala, todo mundo ansioso pra ouvir o tamanho da bronca que eu iria levar. Chegou do meu lado, botou a mão no meu ombro e ficou me olhando, olhando profundamente. Não tive mais medo, qualquer coisa que ele falasse eu entenderia. Mas ele não disse nada. Voltou pra frente da sala de aula e ficou um tempo parado olhando pra turma. Finalmente, respondeu: "Essa é, sem sombra de dúvida, a pergunta mais difícil que um aluno me fez numa sala de aula. Sérgio, eu não sei. Eu não sei."

Tocou a sineta. Ele saiu da sala lentamente como se estivesse pensando ainda na pergunta. No último dia de aula, ele chegou estranhamente feliz. Trazia um gravador portátil. Não deu aula de física. Ficou 50 minutos falando sobre a pergunta que ele não havia respondido. Fez a turma ouvir várias vezes a canção, contou sua história de vida e quando ouviu aquela música pela primeira vez. Ele se emocionou várias vezes enquanto falava. Mas era duro na queda, segurava no olhar a emoção. A turma ficou hipnotizada. Naquele dia, houve uma espécie de catarse. E eu finalmente aprendi física. Passei no vestibular ao som de Retrato em Branco e Preto.

***

*Na falta de título, escolhi um. Leia o original aqui. Ah, e ouça a resposta do professor aqui (que, a título de informação, é uma parceria de Chico com Tom Jobim):


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6 comentários:

  1. Mais uma vez um belo texto com conteúdo atual e profundo, parceiro. Tristes dias onde artistas que produziram, no máximo, três obras relevantes são aplaudidos enquanto MESTRES são difamados e ofendidos, fruto de uma visão política que, obviamente, carece de mais AULAS antagônicas às propostas pelo "escola sem partido". Muito mais pelo espírito crítico do que pela doutrinação alegada pelos que defendem essa, que é realmente, como citado no texto, uma ideologia de direita travestida de "defesa ao livre pensar dos estudantes". É o contrário. É, isso sim, cercear o pensamento e, em consequência, o espírito crítico. Abraços!

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    1. É, Cláudio. Como disse recentemente a um amigo de direita que tá se deleitando com livros de direita: há que se informar também pelo viés dos que pensam diferente de nós; só assim poderemos ter uma visão de mundo mais abrangente. Contudo, em tempos de repressão as mentes costumam ficar mais aguçadas. Como diria Gonzaguinha, "eu acredito é na rapaziada".

      Abração,
      レオ。

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  2. Léo, adorei sua introdução à linda crônica do Veleiro. Pô, o cara é viajante messssmo! Fez toda uma maravilhosa viagem de "competências e incompetências" para dizer do que toca na alma daquele que tem que ser cartesiano, por normas. Minha surpresa é que em 1990 ele ainda estava no cursinho (ahahha) - eu que o conheço real, deparei-me com uma virtualidade (desconhecimento) de sua existência. E mandou ver poeticamente sobre o que rolava na alma de um professor de física, mostrando que o "branco e preto" - uma grande rebeldia frente aos fotógrafos e a linguagem - era o que dava a nuance das coisas da física, pelo menos de um professor que se deixou levar por um "garoto" que o confrontou com arte quando o assunto era ciência. Esta união é grata, este texto é emocionante como as coisas que Veleiro escreve.
    Quanto à "atual" má circunstância de um bando de garoto que pode pagar um cursinho e chegar a tentar maltratar a alma do nosso querido Chico, a vida tratará de repô-los em outro momento em que verão a necessidade de se perguntar a um professor de física, em meio à aula, qual a música preferida do Chico! Poética é precisa para se colocar frente à vida e dizer que ela não será um leão a ser morto a cada dia!
    Valeu, Leozim! Valeu, Veleiro! (Que massa, não havia lido esta sua crônica).

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    1. Erico, adoro também as "veleirices". E gosto (tanto lendo quanto escrevendo) de confrontar obviedades, ou seja, lançar um novo olhar sobre uma mesma coisa. Falando nisso, a prosa me lembrou um autor espanhol que adoro, Juan José Millás, craque nesse tipo de coisa, em mostrar a magia das coisas comuns. Recomendo, entre outros lindos romances, seu "O mundo". Fantástico!

      Voltando à prosa, como escrevi acima pro Cláudio, acredito que, em tempos de repressão, os jovens costumam abrir suas mentes, ficam mais inconformados que em tempos de calmaria, onde o egoísmo impera. Esperemos. E, enquanto isso, continuemos usando de nossa arma principal: a palavra.

      Abraçaço,
      レオ。

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  3. Olá, Léo. Não nos conhecemos, mas sou grande fã do seu blog e tenho acompanhado sua jornada no Nihon!
    Por uma enorme coincidência, seu post foi publicado proximamente aos dias em que foi divulgado o seguinte artigo científico, em que uma grande amiga minha é coautora (Camila Silveira):
    http://www.journals.ufrpe.br/index.php/REDEQUIM/article/view/1860
    O artigo é intitulado "As relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade na Arte de Chico Buarque" e já compartilhei seu post com os autores.
    Aproveito também para divulgar o blog que entra em operação nesta semana, o "365 canções brasileiras" (https://365cancoesbrasileiras.wordpress.com), que trará comentários diários sobre algumas obras interessantes do cancioneiro do Brasil. Eu ficaria honrado com eventuais visitas e comentários de sua parte!
    Finalmente, aproveito para desejar um ótimo 2019, e que O X do Poema permaneça firme e forte como uma fonte de divulgação cultural, reflexões e boas risadas (indispensáveis no momento que estamos vivendo!).
    Grande abraço!

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    1. Salve, Miyage san!

      Grato pela visita, pelas palavras e pelas recomendações de leituras. Vou visitar, sim.

      Mantenhamos o contato.

      Abraços,
      レオ。

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