domingo, 29 de dezembro de 2019

Crônicas Desclassificadas: 196) As aventuras de um apátrida no Século 19

Depois de um par de anos morando no Século 22, um dos países mais avançados daquele pequeno e periférico planeta, o apátrida resolveu visitar sua ex-pátria, a colônia Século 19, que outrora fora um país conhecido pelo nome de um pau. Lá chegando, ainda no aeroporto, já ao passar pela polícia federal e soltar alegremente um "boa tarde", recebeu de volta um nada multiplicado ad infinitum. Ou seja, nem mesmo um olhar de reprovação ou um resmungo cansado. Nada! Aliás, uma mão que tinha vida própria se estendeu em sua direção e, por sua vez, dois dedos dela também adquiriram vida independente e lhe fizeram um movimento de vaivém que o fez perceber que devia entregar a eles seu passaporte. Welcome to Brazil, Mr. Apátrida.

Já instalado, banho tomado, vestido e perfumado, fome de leão, entrou de penetra no primeiro restaurante que viu aberto; que, diga-se, chamava-se o contrário de Limpinho. Satisfeita a gula primeira, passou os dias seguintes repetindo o processo, perambulando pelas ruas invadindo restaurantes e comendo praticamente com a mão suculentos e gordurosos pratos daquela deliciosa, exótica, estranha e nada saudável culinária. Pra ajudar na digestão, empanturrava-se de cerveja, MUITA cerveja! Uma pior que a outra. Notou que a melhorzinha era praticamente intragável. Restou-lhe optar por aquelas que em moeda local superavam a casa dos 20 dinheiros. Alguns dias — e 5 quilos — depois, só então conseguiu respirar, vencer a ressaca e a diarreia e fazer longos e contemplativos passeios.

Foi então que começou a enlouquecer. Com todas as pessoas com quem tentava travar um diálogo minimamente razoável, notava que havia perdido a capacidade de compreensão, pois seus patrícios quando lhe respondiam o faziam numa língua que ele apenas longinquamente percebia ter certo parentesco com o português de sua época. Às vezes, eram apenas monossílabos — e não raro grunhidos. Porém, o mais comum mesmo era o silêncio, que ele notava ter sido imposto pela incompreensão dos interlocutores. Sim, porque a babel era uma via de mão dupla; como ele não conseguia compreender, tampouco lograva ser compreendido. Foi assim que à margem do rio (Tietê) sentou e chorou.

Mas o pior estava por vir. Quando concluiu ser impossível a comunicação, passou a dar mais atenção a seu instinto animal, que, aguçado, apossou-se de seu corpo como uma espécie de Mr. Hyde tupiniquim — pra não dizer um exu mesmo. Por trás das grossas lentes, e com a baba a escorrer pelo canto da boca, passou a reparar que as nativas, embora desprovidas do dom da palavra, estavam cada vez mais apetitosas. Decotes de ousados designs menos escondiam que revelavam formas anatômicas que podiam até ter sido desenhadas pelo costureiro divino, mas na realidade pareciam mais ter saído da tecelagem do tinhoso estilista. Aliás, pensando bem, deviam mesmo era ser obra do deus Baco.

E lá se perdia nosso herói sonhando com bacanas bacanais, inebriado de imaginário vinho — o que mais de uma vez o levou a novamente invadir estabelecimentos, dessa feita à procura do di-vino líquido. Afinal, já diziam os latinos, "in vino veritas". E a verdade pode não estar no vinho, mas todos sabem que após duas ou três taças ela se revela com mais facilidade. Assim, embebido e embevecido, saía novamente às ruas nosso quixote em busca de novos tipos de moinhos onde meter sua flagelada lança. Claro que estamos filosofando, poetizando, sendo metafóricos — fora as bolas fora. Continuando, e resumindo, nosso herói gastava os olhos como havia muito não o fazia. Principalmente quando se deparava com a preferência nacional.

Um abundante — e absurdo — quadro se lhe deparava, ao mesmo tempo se negando e ofertando, num jogo de sedução e ondulantes quadris que mais o enfeitiçava quanto mais o fazia infeliz. Até que caiu prostrado, febril e enfermo, cansado de fazer justiça com as próprias mãos. Fazia já duas semanas que nem mesmo pudera ler uma única página dos tantos livros que levara na bagagem. Quando, por fim, abriu um, notou que não reconhecia mais as palavras — e mesmo sem óculos! Chorou novamente e tentou gritar impropérios, mas, pra desespero seu, constatou que só lograva emitir grunhidos. Ainda convalescente, conseguiu ajoelhar-se e, de mãos postas, moveu os lábios sussurrante, mas, pensando estar orando, rezou a letra de um funk.

Diziam as más línguas que o gerente-geral daquela colônia era um boçal que tinha o dom da hipnose e acabou por lobotomizar quase toda a população. Além disso, como uma espécie de Rei Lear dos trópicos, foi também despojado pela própria prole, que o fazia pensar que governava enquanto era por ela defraudado. Diz a lenda que ele também era como um Midas ao contrário, pois tudo o que tocava virava merda. Que, lendas à parte, era como estava se sentindo nosso herói, apesar de não ter sido tocado pelo midiático Midas. Seu tratamento durou umas semanas, mas, como era forte, conseguiu se restabelecer. Ficaram algumas sequelas, mas melhor elas que a morte.

Voltou pro Século 22 jurando nunca mais tornar a pisar os pés naquela selvática Sodoma. Nessa exata parte do relato, o papiro de onde o narrador tirou sua história tem um enorme rasgão, motivo pelo qual tanto ele quanto seus leitores ficaram sem saber se nossa dantesca personagem cumpriu o juramento.


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