quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Crônicas Desclassificadas: 112) A arte de virar o pescoço

Mirada y Risas by Juan Castro
A ideia desta crônica nasceu semana passada, e, em princípio, eu tinha a intenção de chamá-la Em homenagem à moça que ri, mas hoje, reparando em alguns ilustres pedestres que reparavam numa não menos ilustre moçoila que, inadvertidamente (e literalmente), parava o trânsito, resolvi ser mais abrangente no tema, sem, contudo, abandonar a tal moça que ria. Diria mais, um assunto complementa o outro. Comecemos pelo começo, que isso não é enredo de romance pós-moderno. Pois bem, caminhava eu semana passada pela avenida Paulista, quando me chamou a atenção a expressão de felicidade de uma moça. Aliás, deixem-me consertar: felicidade não seria a palavra mais apropriada; talvez pudesse usar alegria... Não, tampouco seria alegria. Esperem, que já encontro... Hmm... Ah, achei! Cumplicidade! É isso.

Como poderia explicar tal cumplicidade, visto que ela estava só? Seria cúmplice de quem? É fácil, no reino da imaginação há explicação pra tudo, pois, se não a temos, inventamo-la. Assim que minha fértil imaginação me veio com esta: se você, perspicaz leitor, estiver algum dia caminhando sem pressa por uma dessas movimentadas avenidas que soem existir nas grandes cidades, notará que a maioria dos transeuntes passa apressadamente, alguns com cara de poucos amigos, outros gritando ao celular, algumas mães puxando seus pobres filhos pelo braço, um ou outro engravatado olhando de minuto em minuto os ponteiros de seu caro relógio; se for hora do almoço, alguns estarão correndo em direção ao banco, outros conversarão sobre futebol ou sobre as novidades noveleiras... mas bem poucos estamparão no rosto a expressão daquela jovem.

Sim, a jovem em questão sorria de si pra si, como se recordasse fatos íntimos vivenciados por ela num passado recente. E seu sorriso possuía um ar de brejeira malícia, aquele ar que desenha num rosto uma expressão que só possui quem a custo tenta guardar um segredo. Tanto que seu sorriso era quase uma revelação deste, pois praticamente o revelava sem revelar. Foi isso o que pensei. Na impossibilidade de conhecê-lo, adivinhei-o. Ou melhor, posso até ter errado nos detalhes do enredo, mas devo ter passado muito perto de acertar na dose. E é aí que reside o X, não do poema, mas da questão! Quem guarda um segredo, com raras exceções, guarda-o em cumplicidade com algum terceiro. 

Portanto, aquele sorriso era de quem não compartilhou algo no facebook, pelo contrário, compartilhou algo ao vivo e em cores com alguém que naquele momento, em outro lugar, devia estar portando um sorriso irmão deste. Agora passemos aos aspectos físicos: a tal moça não era nenhuma beldade, era baixinha, não escondia levar em seu diminuto porte alguns quilos sobressalentes, o rosto era comum, esquecível, e seu cabelo se encontrava em ligeiro desleixo, mas... mas aquele sorriso maroto de quem vivera uma experiência das mais prazerosas a transformava num ser iluminado. Tanto, que vi moças mais bonitas nessa ocasião, mas só esta me ficou na lembrança, pois era a única entre todas que parecia estar viva, na plenitude da palavra. E eu, cúmplice de seu segredo, fiquei feliz de tabela. E virei meu pescoço pra vê-la se afastar.

Passemos agora à segunda parte deste relato. A arte de virar o pescoço é uma arte metalinguística, pois rende loas a outra arte, a da beleza. Confesso que estou entre os que comungam de tal arte. Às vezes, contudo, a beleza é tanta, que fico perplexo, sem saber se olho pra ela ou pro efeito que causa nos passantes. Como foi o caso do que me ocorreu hoje (sejamos sinceros, o hoje de agora, quando escrevo, já é outro, mas não ponhamos emenda no soneto). A moça passou, e os marmanjos tiveram que se agachar pra pegar o queixo no chão. Alguns motoristas chegaram a, por uma fração de segundo, perder o controle da direção. Veja você como a arte tem o poder de até causar acidentes. E o pior, ou melhor, e o melhor é que a arte da beleza é gratuita e está ao alcance de todos. Quero dizer, se não a de tê-la, ao menos a de apreciá-la.

Contudo, a beleza é uma obra de arte independente. E tão independente, que chega a independer de si mesma. Eu poderia exemplificar da seguinte maneira: o mestre Zé Rodrix costumava dizer que mais importante que o compositor é sua obra. Ele queria dizer com isso que quem cria é falho, finito, sujeito às dores e delícias de se saber na condição de humano; já certas criações, de tão maravilhosas, chegam a atingir o nível de verdadeiras obras-primas. Assim é a beleza física de algumas donas que passam por nós. Não à toa Tom e Vinicius compuseram Garota de Ipanema, um dos maiores clássicos da canção popular mundial, justamente em homenagem à beleza que passava, que praticamente existia à parte de sua dona.

Frisei essa questão da independência porque certas belezas, ou melhor, certas passantes, julgando-se donas da beleza que possuem, sentem-se superiores aos meros mortais que as admiram e às vezes se ofendem com um inocente "psiu" ou um nem tão inocente "gostosa!". Ora, minha bela, se sua beleza é um poema, como bem o disse Vinicius, é, contudo, um poema passageiro. Assim sendo, você não tem direitos autorais sobre ele. Hoje o poema é seu, amanhã será de outra. Portanto, você, pessoa física, trate de encher seu interior de humildade (o que lhe proporcionará outra beleza), pois, com os anos, sua beleza exterior não passará de um poema arcaico, ou pior, da lembrança dele, e você sentirá saudades de quando os pobres mortais viravam o pescoço pra admirar sua arte, que, como você, era passageira.

***

2 comentários:

  1. Que os deuses nos conservem a capacidade de sorrir misteriosamente… e a vontade de virar o pescoço… :-)

    Off-topic… obrigado pelas palavras de "despedida"! Dentro de algum tempo, estou certo, aparecerá outro blog. Colectivo, com outras "defesas naturais"… e pronto para "luta" diária. :-)

    Abreijos.

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    1. Salve, Samuel!

      Torço pra que o surgimento desse novo blogue não demore. De minha parte, por ora, vou mantendo este aqui, enquanto não venham também me cobrar. rs

      Abração,
      Léo.

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