sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Crônicas Classificadas: 35) Debaixo da ponte

O Carnaval vem chegando, e muita gente vai aproveitar pra pôr seu bloco na rua, como na canção do saudoso Sérgio Sampaio. Não lhes quero atrapalhar a alegria, a folia, o clima de vale-tudo; também eu estou contente pelos dias de descanso que vou ganhar. Só queria acrescentar à festa um prefácio: já havia lido a crônica abaixo, porém, esta semana me deparei com ela de novo, então, como fazia tempo que não publicava nada na coluna Crônicas Classificadas, resolvi abrigá-la neste espaço e trazer o grande Drummond pra junto do seleto time que aqui reside. No mais, um Drummond de que gosto muito, que é o cronista. Assim, despeço-me desejando-lhes um feliz Carnaval, e os deixo com esses tipos de debaixo da ponte, que não sofreram antes as consequências da carne que do Carnaval. Pra reflexão antes do "mamãe eu quero":


Debaixo da ponte
Por Carlos Drummond de Andrade


Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.

À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.


Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.

Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.


Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.

Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica.

Há duas vagas debaixo da ponte.

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Retirado de Obra Completa, José Aguilar Editora.


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