domingo, 9 de fevereiro de 2014

Grafite na Agulha: 19) Circense

Recuso-me a apresentar o colaborador desta semana. Acho quase um desaforo ter que o fazer, visto que se trata de um dos melhores e mais completos compositores... aliás, se eu disser só "compositores", fico a dever, pois ele é bem mais. Digamos que é um dos melhores e mais completos artistas brasileiros da atualidade. Toca e canta pra caramba, compõe melodias absurdas, sempre com uma harmonia inteligente e criativa... enfim, acabei já meio que o apresentando, né? O que quis dizer é que, se você nos está aqui lendo e não o conhece, ponha a culpa nesse nosso Brasilzão que produz a melhor música do mundo, mas fica com vergonha (complexo de vira-lata nelson-rodrigueano?), acha que o povão não vai entender, e acaba divulgando só a shit music. Se quiser saber mais sobre ele, clique em Adolar Marin. Por ora basta dizer que Dodô trouxe mais uma novidade pra esta coluna: a sempre tão desprezada música instrumental. Com vocês: 

Circense

Quando recebi o recado via e-mail do meu parceiro Léo Nogueira, pedindo pra falar sobre um disco/LP/CD importante para mim, pensei: bem, escrever sobre um disco que tenha me marcado é fácil. O difícil é saber sobre qual. Posta a questão, concluí que deveria falar sobre um que tivesse marcado minha vida, não apenas como artista, como músico, mas como pessoa. Também complicado. São dezenas de sons que mexeram comigo durante a vida toda; sou um compulsivo ouvinte de música. Daí que imaginei escrever várias colunas pro Grafite na Agulha e que esta aqui seria apenas a primeira. Fechou! Melhorou muito! Vamos lá? Escolhi um gênio e um disco genial: Egberto Gismonti e o Circense, LP lançado em 1980 e relançado em CD em 1988. Tenho os dois, claro!

Desde menino, aprendendo violão, lá pelos sete anos, costumei ouvir música instrumental. Dilermando Reis, um violonista fantástico, era um dos que eu ouvia. Com repertório popular e técnica de violão clássico, muito bom! Tinha muitos outros, tinha o Canhoto, tinha chorinho, me lembro de um vinil de capa toda vermelha, com um punhal e uma rosa (!!) e o título: Tango! Eu curtia isso tudo na minha vitrolinha do tamanho de uma caixa de sapatos. Bacana me lembrar disso. Daí que são uma constante em minha vida os sons sem palavras. Nunca deixei de ouvir música instrumental, erudita ou popular. Ao que respondo a quem, vez ou outra, pergunta o que é: 

— É música só tocada! 

Só? Só nada! Acho muito, um som sem limites. De uma certa forma, há mais possibilidades de ‘leitura’ do som quando não há letra. Leitura sem letra? Paradoxal? Não, pensem, podemos rir ou chorar dependendo do som instrumental que ouvimos, prescindindo de letra! Podemos mais que rir ou chorar ouvindo sons. É introspectivo, um sobe-e-desce danado na alma, nas emoções. Um exemplo claro disso é a música no cinema, que faz isso conosco o tempo todo. E maravilhosamente mexe com os nossos sentidos e sentimentos. Marca as nossas vidas até. 

Bem, o Circense, do Egberto! Esse disco, que conheci um pouco depois de seu lançamento (1980), na década de 1980, é emblemático pra mim, do começo ao fim. Uma obra-prima que se baseia nos signos do circo, se utiliza desse tema para ‘falar’ da alma brasileira através da linguagem musical brasileira. Estão ali o baião, a viola nordestina, o São João, as flautas, os flautins evocando os pífanos dos coretos e praças, Villa-Lobos — violão e violoncelo —, os arranjos de cordas, a percussão, o samba, a cuíca, claro! Estão ali também o frevo, a ciranda, a viola caipira, além da cítara, o saxofone, a pitada da linguagem musical universal. E há, claro, o piano, os violões, a viola, as flautas e todas as composições de Egberto Gismonti, um gigante artista brasileiro, esse cara que já disse ter visto um músico na Índia levitar alguns metros do chão, na sua frente, durante uma jam da qual participava. Será que seu som vem disso também? Uma vez eu o ouvi responder a essa pergunta, numa entrevista, mais ou menos assim: 

Adolar
— Já que a humanidade sempre se perguntou, de quando em quando: de onde viemos? Para onde vamos? Por que aqui estamos? Esse mistério, esse espaço que há entre nós e ‘esse lugar’ para onde possamos estar indo, no éter/passado/futuro, esse vazio, esse vácuo, eu tento preencher, tento chegar com minha música. 

Absolutamente verdade! E, particularmente, o Circense consegue isso! Ouvindo o disco, as músicas referentes ao tema circo: Mágico, Equilibrista, Palhaço (essa, um capítulo à parte), Ciranda, Tá Boa, Santa?, Karatê, Cego Aderaldo e Mais Que a Paixão, somos enviados para ‘esse’ lugar que não sabemos onde é e ficamos ali por um tempo. Pelo menos em dois momentos: em Palhaço, o capítulo à parte que citei acima. Lindíssima canção, que evoca o seu tema/título de maneira única, completa, talvez música-síntese do Circense. Muitos artistas tocam esse som (eu sou um!), outros regravaram (o próprio Egberto em vários outros discos) e até já tinha letra, feita por Geraldo Carneiro, mas que só foi gravada depois, por outros intérpretes. Sempre a ouvi, e sempre me é nova a sensação. Já chorei, já ri, fiz gente chorar a ouvindo, e quando a executo em shows ao vivo, a mesma coisa: todos vamos pra esse lugar indescritível.

O outro momento é Mais Que a Paixão, canção com letra de João Carlos Pádua (sim, tem uma no disco, pra ser exceção à regra dita por mim no começo do texto!), cantada pelo próprio Egberto e que finaliza o disco. Detalhes: um solo magistral de piano de Egberto em que se pode ouvir ao fundo, em uníssono, sua voz; e um arranjo de cordas (dele também), regido por Benito Juarez. Os músicos da base sonora, também chamada de cozinha no jargão musical, aparecem na parte central do encarte ao lado de vários artistas conhecidos de várias áreas, como Lídia Brondi, Ferreira Gullar, Simone, Ivan Lins ... são eles: Robertinho Silva na bateria e percussão, Luiz Alves no contrabaixo acústico e Mauro Senise no saxofone. E p(r)onto.

Pra finalizar, o trabalho gráfico, a capa, que no LP é bem mais bacana, completa essa obra-prima gismontiana: simulando ser uma lona de circo, traz na frente o desenho de um palhaço, que, abrindo uma brecha, apresenta o rosto de um Egberto sorridente e, atrás, os três músicos citados acima. E dentro, o espetáculo, o vinil, o som do circo, além da ficha técnica e das fotos. Lembro bem minha alegria ao tirar o vinil de dentro a cada audição. Tudo perfeito. Marcante em minha vida.


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Egberto Gismonti – Circense (1979 – EMI)

Lado A
1. Karatê

    (Egberto Gismonti)
2. Cego Aderaldo
    (Egberto Gismonti)
3. Mágico
    (Egberto Gismonti)
4. Palhaço

    (Egberto Gismonti  Geraldo E. Carneiro)
Lado B
1. Tá Boa, Santa?

    (Egberto Gismonti)
2. Equilibrista

    (Egberto Gismonti)
3. Ciranda

    (Egberto Gismonti)
4. Mais Que a Paixão

    (Egberto Gismonti  João Carlos Pádua)


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Ouça o LP na íntegra aqui:


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