quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os Manos e as Minas: 14) Esse cara é o Paulo Cesar de Araújo

Existe no mundo todo tipo de leitor, desde aqueles com gosto mais apurado, até os consumidores de autoajuda, passando pelas moçoilas que preferem tons mais acinzentados ou vampiros românticos, pelos aficionados por ficção científica, ou filosofia, ou religião... Sem falar em leitoras de revistas de fofocas ou aqueles camaradas que abrem o jornal só na página de esportes... Pra mim, pra ser sincero, creio que o ato de ler, por si só, deve ser aplaudido e incentivado. Ler é como subir uma longa escadaria: começa-se pelo degrau mais baixo e vai-se galgando degrau a degrau até a chegada ao topo. É verdade que de vez em quando bate o cansaço, daí alguns estacionam, ou mesmo retrocedem um pouco, mas tudo é válido. O mais triste é não ler. O "cara" que não lê é sempre mais facilmente manipulado... nem que seja apenas por sua própria ignorância.

No parágrafo anterior citei vários estilos de leitores (e leituras), e, não por acaso, deixei por último aqueles que adoram biografias, entre os quais me encontro. Claro, leio um pouco de tudo (dentro do que considero leitura que vale a pena ser lida), mas procuro sempre ter uma biografia à mão. Até porque as histórias reais em nada devem às inventadas. Se bem que há quem considere toda biografia uma espécie de ficção, pois cada biógrafo lança um olhar diferente sobre seu biografado. Mas aqui entramos em caso semelhante, o dos livros de História – com H maiúsculo. De tempos em tempos, deparamo-nos com novos autores que desmentem "verdades" que por anos (às vezes, séculos) haviam sido tidas como absolutas. Sem falar que dizem que a História é escrita por povos que subjugaram outros...

Verdades, mentiras e versões à parte, trouxe à baila o tema de livros históricos porque estes podem ser entendidos também como biografias. Cada um deles foi fruto de pesquisas a respeito de determinados lugar e época; e os indivíduos que fizeram – ou ajudaram a fazer – a história de uma época e de um povo (ou, em caso de falecimento, seus descendentes) não podem se tornar eles próprios empecilhos pra que tal história seja contada e, assim, permaneça sempre acessível, não só como parte da memória de um povo, mas também pra que as gerações futuras, por meio desses livros, conheçam seu passado. Da mesma forma, creio, as biografias devem ser encaradas. É claro que há biógrafos (e historiadores) mal-intencionados, mas pra estes existe a Lei. E, convenhamos, tais sujeitos são minoria. Até porque quem escreve a história de um terceiro quase sempre o faz por admiração.

É o caso de Paulo Cesar de Araújo, o biógrafo que vem causando uma revolução na história da literatura biográfica brasileira. Nunca, antes dele, houve tanta mobilização em torno do assunto, seja por parte da mídia, das editoras, dos leitores ou, e principalmente, da Justiça. E a revolução é ainda maior se levarmos em conta que no outro lado dessa balança há um cantor popular, Roberto Carlos, que, apesar de ter sido carinhosamente alcunhado de rei por seus fãs, nunca usufruiu de tal realeza no que se refere à chamada imprensa séria. Dupla vitória de Paulo Cesar, esse cara a quem, num pequeno espaço de tempo, aprendi a admirar e respeitar, por um punhado de qualidades raras de serem encontradas numa só pessoa: talento, competência, teimosia, superação e, sobretudo, humildade.

Li há alguns anos Roberto Carlos em detalhes, essa excelente biografia varrida das livrarias e bibliotecas brasileiras. Agora acabo de ler O réu e o rei, oportuna saída que Paulo Cesar encontrou pra contar, em detalhes, como foi vítima de uma "real" ignorância. E Paulo Cesar, discreta e inteligentemente, conta também nas entrelinhas desse livro sua própria biografia. E eu, que já gostava dele, pelo livro anterior e por uma ou outra entrevista, passei a gostar ainda mais, após conhecer um pouco de sua história de vida, principalmente ao perceber como tivemos trajetórias parecidas. E pude notar também que a melhor maneira de conhecer um grande homem é sabendo como este reage às adversidades, às dificuldades. Penso mesmo que, às vezes, estas são fundamentais pro crescimento de um indivíduo. 

Afinal, quanto menos sofremos, menos temos oportunidade de nos pôr à prova. Por isso vemos por aí muitas pessoas fracas, tão acostumadas a ser paparicadas, que, quando finalmente se deparam com o pior, desabam. Este não foi o caso de Paulo Cesar. Ainda menino, na baiana Vitória da Conquista, depois de ter visto o pai abandonar sua família, meteu as caras e foi ganhar a vida (e as ruas) como engraxate. Anos depois, após muitas tentativas frustradas, entrou, de uma vez só, em duas faculdades, das quais saiu formado em história e jornalismo. Paralelamente a isso, foi mapeando a história da música brasileira por meio de entrevistas feitas por ele e de matérias extraídas de jornais e revistas que colecionava.

Comentei que nossas trajetórias foram parecidas porque ambos deixamos o Nordeste em busca de melhores condições de vida no Sudeste, ralamos desde cedo, estudamos e nos formamos a duras penas e tivemos sempre canções de Roberto Carlos servindo de trilha sonora de nossas vidas. Além da timidez e do gosto pela escrita. Contudo, a similaridade acaba aí. Eu nunca precisei trabalhar como engraxate, e meu pai nunca nos abandonou. Apesar de ter morado sempre na periferia e estudado em escolas públicas, creio que tive uma vida mais fácil que a dele. E creio também que talvez por isso ele tenha ido mais longe. A necessidade nos torna corajosos. E eu, como nunca passei por privações reais, acabei me acomodando. Paulo Cesar é hoje também professor, já eu fujo das salas de aula como o diabo, da cruz. 

Mas não vim aqui falar de mim (não hoje), perdoem, mas é que me fez bem pro espírito traçar esse paralelo. Voltando a Paulo Cesar, queria acrescentar que achei seu novo livro, O réu e o rei, ainda melhor que o anterior. E o moço de Vitória da Conquista possui, além de tudo o que já citei acima, uma escrita deliciosa e envolvente, simples, mas elegante. Própria de quem nunca teve tempo pra gastar com firulas e retóricas vãs. Mesmo nas partes de seu livro que podiam ser mais chatas, aquelas em que ele tratou dos autos de seu processo, não fugiu do desafio de contar tudo, e fê-lo admiravelmente. Recebi dele, por exemplo, nessas páginas, uma bela aula sobre as diferenças entre injúria, difamação e calúnia. E de um modo tão "mastigado", que creio que até uma criança, ao ler, pode entender.

Espero, do fundo do coração, que Paulo Cesar consiga vencer essa briga (e tenho certeza de que irá) e, assim, levar novamente a todas as livrarias do Brasil seu Roberto Carlos em detalhes. Não só porque ele merece, mas porque o Brasil também merece e porque, no dia em que ele o tiver conseguido, os muitos biógrafos brasileiros que estão por aí, e que hoje não se arriscam mais a exercer esse ofício de esquadrinhar a(s) história(s) do Brasil, ver-se-ão livres pra se dedicar àquilo que sabem fazer de melhor. E nesse dia nós também estaremos livres de ter de conhecer somente as versões "oficiais" e autorizadas. Afinal, a história de Roberto Carlos pode até pertencer a ele, mas o olhar que cada um lança sobre sua história pertence ao dono do olhar. Pra terminar, preciso salientar ainda que, mesmo depois de todas as injustiças que o biografado cometeu com o biógrafo, Paulo Cesar não deixou que o homem Roberto lhe maculasse o amor que sente pelo artista homônimo.

Por essas e outras, Roberto Carlos pode até ser considerado um rei, mas Paulo Cesar de Araújo é que é o cara. Mora?

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PS: Presentinho:



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4 comentários:

  1. Beleza de crônica, Léo. Ainda não li o Rei e o Réu mas acabei de colocar na lista das futuras leituras.

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    1. Salve, Di!

      Pode comprar sem medo. É leitura relevante mesmo pra quem não gosta do Rei.

      Abração,
      Léo.

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  2. Gostei! Deu vontade de ler Paulo Cesar. :)

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