quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Canções que Amo: 2) Álvaro Cueva; Juca Novaes + Eduardo Santhana; e Paulinho Moska + Chico César

1) BOSCONEANA

Canabi Emotiva (2005)
Existem canções que já nascem clássicas. Basta que nos deparemos com elas pela primeira vez e temos certeza de que as havíamos escutado antes, tão familiares nos soam. Parecem que sempre estiveram no ar, ao alcance da mão, em nosso imaginário; tanto que, quando um compositor invejoso as ouve pela primeira vez, se rói por não ter pensado nelas antes. Parecem simples, mas apenas depois de compostas; por isso, paradoxalmente, são as mais originais, pois podem ser até copiadas, mas não superadas. Nessa rara seleção de canções incluo o chiquérrimo bolero Bosconeana (de meu mano Álvaro Cueva), cujo lirismo da poesia baila harmonicamente com a beleza da melodia. Uma canção que, se já era irretocável quando executada em voz e violão, depois de arranjada (pelo irmão de Álvaro, Alê Cueva) virou uma obra de arte.

Daí, a gente ouve (a gente, no caso, é o tal compositor invejoso do parágrafo anterior) e fica com o cérebro em ebulição, querendo compor algo igual; mas cadê a fórmula pra repetir seu impacto? E tanto é verdade, que o próprio Álvaro nem sequer tentou compor uma Bosconeana 2 – a Revanche. Claro, compôs outras belas canções, mas nenhuma com essa mesma atmosfera. Contudo, pra não dizer que tudo são flores, vejo na canção um único defeito: seu título. Já comentei a respeito inclusive com o próprio autor, após ouvir de sua boca que ele pensara em Bosconeana como forma de homenagear João Bosco, compositor fera (não só) em boleros. Disse-lhe eu que o título não estava à altura da obra, mas, com o passar do tempo, já até me acostumei a ele. Ah, e esta é outra pra qual fiz uma versão em espanhol, única maneira de sossegar meu peito. A ela:


BOSCONEANA
Álvaro Cueva

A gaveta que abri
Me abriu a ferida
Restos guardados
Poeira da vida
Ah, é só isso que dá
Frequentar meu passado

Num papel de cigarro
A promessa indevida
Fica estranho pensar
Que hoje é o resto da vida
Ah, tua sombra lilás
Meu olhar desbotado

A foto apagada
A carta escondida
O ano na agenda
A flor esquecida
A caixa do nosso bombom
O velho cobertor

Uma concha vulgar
Lembra a praia perdida
O teu sabor de sal
Uma onda bem-vinda
Ah, ainda o gosto do mar
Ah, ainda gosto um bocado
Fecho a gaveta verdade
Tranco a dor que há em mim

Ah, ainda o gosto do mar
Ah, ainda gosto um bocado
Já que eu não mato a saudade
Vou fazê-la dormir



Aproveito o ensejo pra publicar abaixo minha versão:

BOSCONEANA*
Álvaro Cueva/versão: Léo Nogueira

El cajón que abrí
Me abrió la herida
Restos guardados 
Bazar de dos vidas
¡Ah!, resta siempre el ayer 
Si visito el pasado

En un papel cualquiera 
La promesa indebida
Es extraño pensar 
Que aún me resta la vida
Tu sombra lila no está
Y la miro encantado

La carta escondida 
La foto apagada
El año en la agenda
La flor olvidada
La caja de nuestro bombón 
El viejo cobertor 

Un vulgar cucharón 
Es la playa perdida
Y tu sabor de sal 
La ola bienvenida
¡Ah!, aún el gusto del mar 
¡Ah!, siento sin esperanza
Finjo olvidar la verdad 
Y en mi pecho el dolor

¡Ah!, aún el gusto del mar 
Ah, siento sin esperanza
Si no maté la añoranza 
Voy a hacerla dormir


*Se quiserem, ouçam a versão aqui. Na gravação, o cabrón do Álvaro encasquetou de cantar "gaveta" em vez de "cajón", então me eximo do erro. As demais dessemelhanças entre a letra acima e o que foi cantado fica por conta de posteriores sugestões de minha "assessora" Marcela Viciano, acatadas por mim, por supuesto.

***

2) SAMBA DAS ÍNDIAS

Goa (2010)
Minha memória não é fonte à qual eu possa dar crédito, portanto nem vou chutar qual foi o festival de que participei que me propiciou pela primeira vez ouvir (e assistir a) essa maravilhosa canção. Lembro apenas que na ocasião ela não ganhou nenhum prêmio, o que me deixou indignado (a minha também não, como sempre...). Mas as injustiças que ocorrem nos festivais dariam um belo (e grosso) livro, o melhor é nem entrar no assunto. O fato é que durante anos a canção não me saiu da cabeça. Ah, agora lembrei que ela entrou num CD desse festival e foi por isso que de tempos em tempos ia a ele pra matar as saudades (aliás, saudade, palavra portuguesa, tem tudo a ver com essa canção). Mas o que estou dizendo? Se tenho o CD, posso ir lá ver qual foi o festival, não? Um momento, vou lá ver e já volto...

Achei! Foi o Femp (Festival de Música da Primavera, de São José do Rio Pardo-SP). E, já que dei nome a esse boi (com todo respeito ao Femp), nomeemos os autores da canção: Juca Novaes e um parceiro que já me esqueceu há anos, Eduardo Santhana. Pois bem, Juca, que como eu é sagitariano e apaixonado por Fernando Pessoa, segundo li em seu blogue (aqui) esteve em Portugal umas tantas vezes e trouxe de lá – além de algumas caixas do vinho Esporão Reserva – inspiração pra essa canção, que, pelo tudo leva a crer, tem letra dele e melodia de Edu (pros íntimos). Tudo nela é um primor, desde a letra, que não deve nada a Fernando Pessoa, até a melodia, bonita de levar às lágrimas; de quebra, é um fado que vira samba. Tempos depois, já de posse do belo CD Goa, de Juca, (em cujo repertório se encontra essa canção), pude saciar minha vontade de ouvi-la bem-arranjada. Mais que uma obra-prima, é uma encantadora homenagem à língua portuguesa. Acho que vou agora mesmo abrir um vinho enquanto a reouço.


SAMBA DAS ÍNDIAS

Meu coração de além-mar 
Se emociona, canta e voa 
Caminhando nos caminhos 
De Fernando Pessoa 

Meu coração lá das Índias 
Lá da terra da garoa 
Contempla o Tejo e entende 
As naus, as velas, a proa 

Meu coração degredado 
Feito de indígena canoa 
Quase compôs esse fado 
Quase que não te perdoa 

Mas ele reconhece seus caminhos 
E cá meu coração bate à toa 
Sorrindo embriagado do teu vinho 
Seguindo pelas ruas de Lisboa 

Meu coração de além-mar...

Meu coração corda bamba 
Te encontra e sente saudade 
Quem sabe fez esse samba 
No meio dessa cidade 

Mas ele reconhece seus caminhos 
E cá meu coração bate à toa 
Sorrindo embriagado do teu vinho
Seguindo pelas ruas de Lisboa

***

3) SAUDADE

Muito Pouco (2010)
E, por falar em saudade, lembrei-me de canção homônima que ouvi pela primeira vez num CD duplo de Paulinho, aliás, Moska, chamado Muito Pouco, sobre o qual um dia ainda quero escrever. Discaço! Altamente recomendável! Se bem que sou suspeito pra falar, já que sou um baita admirador da obra do "mosketeiro". Admiração à parte, considero esse, sem dúvida, seu melhor trabalho, o que mostra que ele se encontra ainda (e graças a Deus!) em escala ascendente. Além de tudo, é um disco corajoso, pois poucos hoje em dia têm ousadia suficiente pra lançar um disco duplo, visto que ninguém anda comprando nem os simples. E mais: é um disco conceitual. O primeiro se chama Muito, e é instrumentalmente mais complexo; o segundo, Pouco, é mais minimalista.

E não é que, ao final da audição dos dois discos, já tendo ficado encantado com várias faixas, deparo-me com essa bendita Saudade quase perdida no final do segundo disco? Não tive como não me lembrar de uma canção de Sérgio Sampaio, Faixa Seis, que diz assim: "Você hoje pra mim é a faixa seis/ Do lado B/ Do meu último LP/ Aquela que o programador do rádio nunca toca/ Aquela que o divulgador do disco evita/ Aquela que fica espremida entre a quinta/ A quinta faixa e o final da fita." A ironia é que tanto Faixa Seis quanto Saudade são altamente radiofônicas... isto é, deveriam ser, fossem as rádios de hoje minimamente escutáveis. Mas isso é outra história; o importante, pra finalizar, é acrescentar que se trata de uma parceria entre Moska e outro gigante de nossa música contemporânea, Chico César, que abrilhanta mais ainda a gravação participando dela como convidado. Ah, Saudade foi também gravada por Bethânia. Nada boba ela, não?

SAUDADE
Moska – Chico César 
(por Moska & Chico César)

Saudade a lua brilha na lagoa
Saudade a luz que sobra da pessoa
Saudade igual farol, engana o mar, imita o sol
Saudade sal e dor que o vento traz

Saudade o som do tempo que ressoa
Saudade o céu cinzento, a garoa
Saudade desigual, nunca termina no final
Saudade eterno filme em cartaz

A casa da saudade é o vazio
O acaso da saudade, fogo frio
Quem foge da saudade, preso por um fio,
Se afoga em outras águas, mas no mesmo rio

***


4 comentários:

  1. Irmão querido, a vida tem me dado a oportunidade de parceirar com as figuras humanas mais sensíveis que eu poderia encontrar. Gratidão! Abs;

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  2. Maravilhoso esse post, Léo! Adorei!
    Três canções que falam em saudade e que são verdadeiras pérolas! Bosconeana eu já conhecia há alguns anos (tenho o CD do Álvaro e adoro, além da saudosa Lucia Helena Correa, que a regravou lindamente), Samba das Índias (que é um fado) há menos tempo e agora fui "apresentada" à saudade do Moska e Chico César. Três pérolas musicais! Obrigada, viu?
    Um beijão!

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    1. Dannoca, eu que agradeço pela força de sempre!

      Beijão,
      Léo.

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