quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Crônicas Desclassificadas: 164) O problema não é o sotaque de Wagner Moura

Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que considero Wagner Moura um dos mais fantásticos atores que surgiram na cena brasileira nas últimas décadas. Seu poder de transformação de personagem pra personagem é assombroso, e, mesmo sem dizer uma só palavra, simplesmente num close, mirando a câmera, ele é capaz de arrebatar, emocionar, enfim, penetrar em nossos corações. Em segundo lugar, sua caracterização de Pablo Escobar na série Narcos é digna dos grandes monstros da interpretação, não apenas por sua transfiguração física, mas sobretudo pela psicológica. Sem falar em sua dedicação, a pesquisa sobre a personagem, o estudo não só da língua espanhola, mas também do acento local etc.

Isto posto, queria meter minha colher também nesse assunto do sotaque dele, mas sob outro viés. Não quero criticá-lo, sei que fez o humanamente possível dentro do tempo que teve. Estudei espanhol há anos e até hoje, quando preciso conversar nessa língua, ainda titubeio, mando na trave, vez por outra tasco uma palavra alienígena... Não, não é fácil. Principalmente, se pensarmos nos inúmeros acentos locais que existem na língua de García Márquez, nas gírias, na musicalidade. O espanhol de Buenos Aires é completamente diferente do de Santiago, que é diferente do de Bogotá, que é diferente do de Havana, que é diferente do da Cidade do México, que é diferente do de Madri, e assim sucessivamente. Isso sem contar que dentro de cada país há as variantes locais...

Se eu fosse Wagner Moura, também teria aceitado o convite. Um bom profissional não deve ter medo dos desafios. Pelo contrário, deve se alimentar deles. Ainda mais, como no caso, quando se trata de personagem tão complexa, tão cheia de possibilidades interpretativas. Tenho certeza de que ele enriqueceu pra caramba sua bagagem. A questão pra mim é outra, e não o envolve diretamente – é preciso deixar isso claro. Acho que sou um romântico. Gosto das coisas feitas com paixão, mas com capricho, respeitando a naturalidade delas. E, após o advento da globalização, venho notando uma pasteurização geral. O intuito de aproximação das distâncias tem ocorrido mais focando em sua generalização que em seu aprofundamento.

Nesse quesito, o padrão hollywoodiano de qualidade – infelizmente – vem fazendo escola há anos. Claro, em qualquer trabalho em que há muita grana investida, há mais qualidade técnica, melhores profissionais envolvidos etc., mas não devemos nos esquecer da beleza do lado artesanal de certos trabalhos. Numa produção como a de Narcos, por exemplo, entendo que se procurou trabalhar com os mais capacitados profissionais em todas as áreas que englobam o projeto. Assim, obviamente, também foram escolhidos a dedo grandes atores de toda a América, sobretudo a hispânica, obviamente por se tratar de uma história passada quase que em sua totalidade na Colômbia. 

Contudo, esse desejo de oferecer o melhor em nível global acaba quase sempre não levando em consideração o aspecto local. Como se trata de uma produção estadunidense, vemos, como de costume, o capricho técnico se sobrepor ao respeito à cultura local. Segundo a mentalidade deles, imagino que tenham pensado que pra qualquer telespectador de língua não hispânica tanto faz ter um argentino, um chileno, um mexicano ou mesmo um brasileiro interpretando o papel de um colombiano... mas não pensaram que não só pra um colombiano faz diferença, mas pra toda a comunidade hispânica. Principalmente, em se tratando de personagens tão peculiares. É mais ou menos como ver em novelas da Globo atores do sudeste interpretando personagens nordestinas. Tirante uma ou outra louvável exceção, a bola costuma ir na trave...

E enfatizo isso, reitero: a ideia não é entrar no mérito do talento de Wagner Moura nem do de todos os atores envolvidos na produção de Narcos. Afinal, trabalho é trabalho, e quem tem a interpretação como ganha-pão sabe quantas portas podem se abrir após participação em tal projeto. Minha birra é com essa cultura reducionista. Vejamos alguns exemplos: no filme Memórias de uma Gueixa – que trata da adaptação pro cinema de um romance ambientado no Japão – além de todos falarem em inglês, a personagem principal, a tal da gueixa, é interpretada por uma chinesa(!). E por quê? Porque os produtores alegaram que nos testes feitos não encontraram nenhuma atriz japonesa que interpretasse com convicção em inglês. Não foram às aulas de história e ignoraram problemas delicados da relação entre japoneses e chineses...

Um exemplo brasuca é o filme Olga (inspirado em fatos reais), cuja personagem principal é a judia alemã homônima, que foi interpretada por uma brasileira, falando português sem sotaque. Aliás, no filme todos falam lindamente o português brasileiro, seja na Rússia comunista, seja num transatlântico cheio de passageiros de várias nacionalidades. Um primor! Ao ver o filme, senti-me um cidadão do primeiro mundo! Mas há muitos exemplos de tal padrão de qualidade. Cada leitor deve se recordar de vários outros. Se bem que, nos tempos atuais, de pouca leitura e pencas de filmes/séries dublados/as, deve ser ranzinzice minha apontar detalhes tão pequenos de nosotros. Afinal, em tempos de globalização, pra ser universal, o importante é que hablem mal, mas parlem de nossa aldeia. Is not true?

***

POEMA XX
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

***

6 comentários:

  1. Muito bom... sobre tudo esta ligação "demolidora" com o Pessoa/Caeiro! :-) :-)

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    1. Salve, Samuel! Quanto tempo!

      Bom receber essa visita vinda de tão longe!

      Abração,
      Léo.

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  2. E aí querido Leo? Quanto tempo...

    Sua questão linguística é simples de resolver: a conta não fecha.
    Um investimento desse tamanho (tanto pra "Narcos", quanto "Memórias de uma Gueixa") tem que vingar no mundo inteiro, do contrário não há retorno financeiro e o estúdio fica no vermelho.
    Sendo assim não interessa a populacão Colombiana que se incomoda com sotaques não Colombianos. Assim como não interessa os Japoneses que se ofenderam.

    Interessa ser uma super produção que empregue os melhores profissionais e traga retorno para que outras tais quais essa aconteçam.

    O resto é cinema independente e festival do minuto :)

    Bjs

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    1. Salve, Roney, queridão!

      Cara, entendo sua explicação e a aceito. Contudo, ela é reflexo de uma sociedade mercantil, na qual os interesses do capital falam mais alto que os culturais. Note que você disse que não interessa se a população colombiana se incomoda e se os japoneses se ofenderam. Não? Mas pra eles interessa, sim. Mas, como o que vale mais é "a força da grana que ergue e destrói coisas belas" – e ela pertence àqueles que universalizaram a língua inglesa –, tudo o mais vira chororô de ranzinzas como eu, que preferiria viver numa civilização mais plural, na qual todas as culturas e línguas tivessem o mesmo peso, independente do $$$. Mas, claro, sei que sou mais um discípulo de Quixote. rs

      Beijão,
      Léo.

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  3. Salve Leo,

    Kkk...é...sonhar com o mundo ideal é de graça, né?

    Pessoalmente, me emociono ao ver aquela lista enorme de nomes nos créditos de uma super produção e admirar a gestão coletiva daquilo, pensar quantos deles tiveram que abrir mão de seus desejos pessoais em relação a obra para que o filme se tornasse realidade. Penso que quando um grupo - que pode passar de mil pessoas - se organiza para um grande objetivo, nós, telespectadores, deveríamos enxergar isso sob esse ângulo positivo e tentar não nos incomodar tanto com esses melindres fronteiriços, afinal, essa lista de mil pessoas envolvidas com talentos do mundo inteiro já define um resultado mundial, globalizado, plural. Mas é apenas a opinião de outro ranzinza :)

    Beijão

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    1. Não deixa de ser uma maneira de enxergar também, Roney. É, além de tudo, geração de emprego. Mas, ó, claro que não é o caso de "Narcos", mas há muita porcaria por aí que gera emprego também, né? Hahaha!

      Beijão,
      Léo.

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