terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Trinca de Ouro: 10) Marcela Viciano, Marcio Policastro e Zeca Baleiro (com Dois Africanos)

1) DIA DE SÃO NUNCA

E eis que chegou da fábrica há alguns dias o primeiro (e maravilhoso) CD de meu mano Marcio Policastro, em minha humilde opinião um dos melhores compositores em atividade. Como Poli demorou anos entre a concepção e o acabamento desse seu primeiro rebento, o resultado final ficou parecendo uma espécie de the best of Policastro, ou seja, só petardo! Já escrevi a respeito desse CD em minha coluna Grafite na Agulha (num texto que foi uma dobradinha, no qual tratei também do novo de outro mano, Gabriel de Almeida Prado, que também acaba de lançar seu não menos belo primeiro disco – leia sobre ambos aqui), e enfatizo: o CD é altamente recomendável! Inclusive, a pedido dele, às vésperas de um show de pré-lançamento que ocorreu há alguns dias, escrevi o seguinte:

"O Pequeno Estudo sobre o Karma, finalmente, está às vésperas (e às vísceras) de aportar por estas plagas. Cuidado, você pode ser irremediavelmente atingido por ele! Trata-se de um disco nervoso, roquenrol, que vem com um 'cata-piolho' em riste em forma de 'tudo joia' só pra em seguida metê-lo em nossas feridas, como quem implacavelmente gira a chave da mais improvável porta. Mas ele chega também com um fino senso de humor que faz amor (aos tapas) com a ironia. Chega, inclusive, cheio de autocrítica (autoanálise, psicanalítica etc.), que é por onde abrem sendas os grandes trabalhos. Seu autor, Marcio Policastro, não se constrange ao se despir publicamente nesse Pequeno Estudo, metralhadora giratória que por vezes mira no próprio espelho. Tanto, que, se ele resolve cometer um pré-lançamento no 17 corrente, não é por ser bonzinho ou pra poder dizer que 'quem avisa amigo é'. Muito pelo contrário. É simplesmente porque a sanha sagitária não pode mais esperar pra começar já a lançar sua seta indecente (e incandescente) mundo afora. Falta de calma? Não, eu diria que é sobra de karma (... 'de dharma', me corrige ele)."

Pois bem, propaganda feita, chega a hora de deixar registrada por aqui uma história que já contei um milhão de vezes ao vivo, a de como nasceu Dia de São Nunca: há alguns anos, após um período de crise matrimonial duradoura, eis que o letrista dessa canção levou um belo de um pé na bunda de sua esposa e sua única alternativa foi baixar as orelhas, enfiar o rabo entre as pernas e voltar pra casa de seus pais. Naquela ocasião, primeiro veio a frustração, depois o desespero, em seguida a raiva. Jurou então aos quatro ventos que jamais voltaria praquela ingrata, respirou fundo e resolveu recomeçar sua vida. E eis que, quando já estava se acostumando, a ingrata em questão achou que o castigo já havia sido suficiente e o chamou de volta. Entre feliz e vexado, já de volta ao lar, doce lar, o letrista concebeu a supracitada letra, que virou esta pérola após ser musicada por Policastro. Ser compositor tem suas vantagens, uma delas é economizar em terapia. Ah, o fato de o letrista em questão ser este que lhes escreve agora não foi só um mero detalhe. A ela, pois:

DIA DE SÃO NUNCA

No dia de São Nunca eu voltei pra ela 
Com o rabo entre as pernas, sem dar nem um pio 
Me lembro que era fevereiro, dia 30 
Chovia canivete e a vaca tossiu

Naquele dia a porca até torceu o rabo 
Eu mordi a língua, fui à Penha a pé 
Também bebi da água que não beberia 
E eis que a montanha foi a Maomé

Um raio caiu sobre minha cabeça 
Um rico entrou lá no reino de Deus 
E o padre não soube nem da missa um terço 
Eu degenerei quando puxei aos meus

No dia em que voltei, o mar virou sertão 
E dei pra sobejar o prato em que cuspi 
Pra meio entendedor uma palavra é vasta 
O rei voltou atrás e olha eu aqui
Olha eu aqui

Todo dia é de São Nunca
Olha eu aqui 
Sempre é dia de São Nunca
Olha eu aqui 
Hoje é de São Nunca 
Olha eu aqui


PS1: Baixe o CD de Marcio Policastro na íntegra aqui.
  
***

2) MANO CIDADÃO

Há alguns meses, estava eu descansando a cabeça e a carcaça no litoral cearense quando recebi, por e-mail se não me engano, uma proposta do mano Zeca Baleiro: dizia-me ele que havia sido convidado pela Rede Globo pra compor uma canção de fim de ano e, como se via muito atarefado (como sempre; ele é um verdadeiro exemplo de workaholic!), teve a ideia de me chamar pra ajudá-lo na empreitada. Sua proposta era que eu fizesse a letra e lha enviasse pra musicar. Obviamente que topei. Inclusive, naquela mesma noite, com um tinto à mão, esbocei o rascunho da letra, que lhe mandei já madrugada alta. Depois de uma pequena troca de e-mails com considerações de lá e de cá, ele me mandou uma primeira gravação da que viria a ser nossa Mano Cidadão.

Aqui, faz-se necessário deixar registrado um comentário: pô, pensem em quantos compositores bons pra caramba o mano das balas conhece... Pensaram? Então, não é pra um cara como eu, semianônimo, compositor da turma dos "sem-mídia", ficar superenvaidecido com tal convite? Minha intenção não é escrever isso pra me gabar, pelo contrário, fi-lo apenas pra dar um exemplo de como esse tal de Zeca Baleiro é um cara especial. Claro, ele me conhece e sei que aprecia meu trabalho, mas tenho certeza de que 90% dos artistas famosos, estando em seu lugar, ou fariam a canção sozinhos ou convidariam pra parceria outro compositor conhecido. É ou não é? Já o mano Bala tem outros critérios de escolha, que não passam necessariamente pelos holofotes. Por essas e (muuuuitas) outras, considero pra caramba esse cara. Queria só dizer isso.

Voltando, na sequência ele mandou uma gravação pra Globo, e, alguns dias depois, veio o sinal verde da emissora, com uma sugestão de que ele a gravasse com a banda Dois Africanos, que, segundo soube, destacara-se em reality show recente do Plim Plim. Eu não conhecia os caras, mas depois tive que reconhecer que são feras... pra sorte nossa. Resumindo, a gravação foi feita e acabou entrando numa coletânea natalina chamada Presente de Natal, que foi às lojas este mês. E, pra coroar o trabalho, Zeca, junto com os Dois Africanos, gravou participação no especial de mesmo nome que irá ao ar na noite do dia 24 do mês corrente. Evidentemente, não deve ser difícil pra vocês imaginar como tô me sentindo. Detalhe: em bicudos tempos de intolerância, acho que nossa canção, que prega o oposto, tolerância e bom convívio, chega em boa hora. Sem contar as mensagens subliminares das entrelinhas. Atestem:

MANO CIDADÃO
Zeca Baleiro – Léo Nogueira

O Brasil só é cheio de graça
Porque é fogo de mais de um braseiro
Belo caldeirão de raças
Praça por onde passeia o mundo inteiro

Japonês, judeu, muçulmano,
Africano, italiano, alemão
Todo mundo é nosso mano
Todo humano é cidadão

Quero prato na mesa
Quero arte e beleza
Saciar essa fome
Que quem come tem

Quero tempo, tempero,
Riso, música, esmero
Ter o básico, é claro,
E o raro também

***



3) RÍO ARRIBA

Eu tava há tempos devendo falar desse disco e, sobretudo, desta canção. Marcela Viciano é uma querida amiga argentina que conheci já há vários anos graças ao universo virtual. Embora não tenha sido minha primeira parceira na língua de Cervantes, tem sido, ao longo desses anos, a mais constante (embora faça um tempinho que não emplacamos uma nova). Marcela é apaixonada pelo Brasil talvez na mesma proporção em que amo a Argentina, daí nossa empatia. A diferença é que ela tem mais coragem que eu pra meter uma mochila nas costas e sair desbravando as terras do país que ama. Claro que o fato de não estar casada a deixa em vantagem pra realização de tal empreita. Em meu caso, o que dá pra fazer é passar uma semaninha em Buenos Aires vez em quando.

Mas tratemos da canção: adoro um compositor uruguaio bastante conhecido dos brasileiros, Jorge Drexler. Confesso que ouvir o cara me inspira. Só que minha ironia e minha queda por polêmicas às vezes se manifestam me fazendo tomar o rumo oposto mesmo de canções que admiro, como foi o caso de uma dele chamada Río abajo. Vale colar a letra aqui: "Río abajo corre el agua/ río abajo, rumbo al mar/ desde el puente veo el agua del río pasar y pasar/ miro abajo y río de verme pensar/ que yo soy el agua y tu la ley de gravedad/ la vida es larga y yo voy a seguir/ camino de tus brazos/ si el río corre, no puede más que ir/ río abajo./ Río abajo, y vamos,/ que la vida es un tobogán/ duele menos soltar la baranda y dejarse llevar/ como el agua del río camino del mar/ y es que yo soy de hierro cuando tu eres un imán/ el agua da rodeos y al fin termina/ siempre por abrirse paso/ vendrás tarde o temprano hasta mí,/ yo sé,/ yo soy tu mar y tú vas río abajo."

Não é que eu discorde da canção; é linda, e sua poesia é magnífica. O que sucede é que um criador, quando é inquieto como eu, às vezes vê que de uma ideia ainda há outros pontos a extrair que não foram aproveitados. E foi isso o que fiz. A letra de Drexler é romântica e dentro desse romantismo se justifica; já a minha seria mais, digamos, filosófica. Claro que vez em quando é bom aproveitar uma boa onda e se deixar levar pela vida como se ela fosse um tobogã; só que em momentos mais difíceis (que costumam ser a maioria), creio que vale mais imitar os peixes e ir rio acima. É essa a ideia cujo resultado mandei pra Marcela, que a musicou lindamente e anos depois a incluiu, pra gáudio meu, em seu belo Amalgama (nele, há outras duas parcerias nossas). Ouçam-na e tirem suas próprias conclusões:

RÍO ARRIBA
Marcela Viciano  Léo Nogueira

Yo sueño despierta mientras
La gente sigue evasiva
El mar que mi pecho encuentra
Va río arriba

Sin viento a favor, sin vela
Mi materia prima es viva
El agua es mi escuela
Y yo voy río arriba

Es mi corazón quien rema
Su lema es contra corrientes
No voy nunca a la deriva
La ley de la gravedad miente
Los peces van río arriba

De noche, no me confundo
Un imán me reaviva
El mar que envuelve mi mundo
Es río arriba

Llegar no es lo importante
Y ni volver me cautiva
La ida es mi acompañante
Voy río arriba

Es mi corazón quien rema
Su lema es contra corrientes
No voy nunca a la deriva
La ley de la gravedad miente
Los peces van río arriba

***

PS: Aproxima-se o Natal e, como não poderia deixar de ser, desejo a todos que o desfrutem bem e que a ocasião sirva pra repensarmos em que ponto está nosso grau de humanidade, pra que possamos adentrar os portões de 2016 mais tolerantes e gentis, sabedores de que somos todos manos e cidadãos.

***


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