terça-feira, 26 de abril de 2016

Esquerda, Volver: 5) Em defesa do cuspe

Chegou o momento de o cuspe ter seus 15 minutos de fama. É um tal de cospe pra lá, cospe pra cá; e, como tudo o que tá na moda, o cuspe tem suscitado muita polêmica. Já há a turminha do pró-cuspe e a outra do contra cuspe. E eu, que nunca gostei de ficar em cima do muro e sempre procurei não passar ao largo do clamor dos mais fracos e oprimidos cuspidores, venho por esta me posicionar (salivar?) ao lado da galera da cusparada. Sim, porque o cuspe é a arma da impotência, é o digno desprezo da vítima ante um algoz mais poderoso e, não raro, injusto. O cuspe é o três-oitão do lutador pacífico, daquele que sabe que não pode contra o adversário, mas nem por isso se deixa subjugar por este. Não à toa, em espanhol cuspir significa escupir; porque cuspir não deixa de ser uma forma de esculpir.

Façamos uma pequena regressão de idade e pensemos em quando o cuspe surgiu em nossa vida. Lembraram? Na infância, não é mesmo? Uma criança que por vez primeira se vê tiranizada por seus pais não pensa duas vezes... Mete nas fuças do(a) progenitor(a) – entre grossas lágrimas, acrescentemos – um sincero cuspe, muitas vezes cheirando a leite materno, outras vezes a papa de sabe-lá-o-quê ou qualquer outra dessas coisas intragáveis que os pais obrigam o filho a ingerir... E, a partir daí, não para nunca mais! Vai, Carlos (Careqa?), ser cuspidor na vida! Claro, se o fedelho tem sangue azul e entrada vip em todas as portas, não necessitará gastar saliva (bastará um crachá), mas, na maioria dos casos, e em se tratando da maioria dos rebentos, só o cuspe (n)os libertará!

Quem, como eu, cresceu assistindo a filmes hollywoodianos viu centenas de vezes aquela famosa cena em que o(a) mocinho(a), amarrado(a) em uma cadeira e se vendo à mercê de uma provável tortura (né, Bolsonazi?), junta todo o líquido salival de seu interior e expele na cara do vilão aquele jorro libertador (temporariamente libertador), aquele orgasmo salivante que, pra bom entendedor, quer dizer "não tenho medo de você!". Obviamente, a cena seguinte demonstra fria e calculistamente que quem cuspiu não sabia o que dizia, aliás, cuspia, mas, nem por isso, deixou de cuspir. E tanto é verdade que, mais de um século depois de os irmãos Lumière terem feito em Paris a primeira apresentação pública de seu invento chamado cinematógrafo, o cuspe continua a fazer sucesso na telona (e fora dela, como vemos).

O ato de cuspir é o mais novo de três irmãos, sendo que o do meio é o ato de mostrar a língua e o mais velho é o ato de apontar o dedo médio. Os atos seguintes, como xingar a mãe de outrem, apelar pra violência e usar armas letais já pertencem a outra família. Cuspir é um ato moleque, subversivo, anárquico. E, por isso mesmo, catártico. Quem nunca participou de campeonato de cuspe a distância? Quem nunca brincou de cuspir da janela nos passantes da calçada? Quem nunca cuspiu (ou quis cuspir) em alguém que atire a primeira catarrada. E não estou me referindo a certos povos asiáticos que (como alguns brasucas) têm o hábito de cuspir no chão. Não, falo daquele cuspe que lava a alma, que humilha o oponente armado até os dentes... É desse cuspe que falo.

Como o cuspe do deputado Jean Wyllys em direção a seu colega (colega?) Jair Bolsonaro... E, realmente, não entendo esse escarcéu todo nascido de um cuspezinho à toa que, de mais a mais, nem atingiu o alvo. Acho engraçado as pessoas ficarem abismadas com o cuspe cívico do primeiro deputado federal declaradamente gay no congresso e fingirem indiferença ao ouvirem Bolsonaro parabenizar o capo dei capi Eduardo Pulha e, de bônus, acrescentar: "Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff'." Lembrando que esse "brilhante" Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador durante a ditadura e foi quem, como diria Lobão, "arrancou umas unhazinhas" de Dilma... E sabe Deus o que mais deve ter feito com ela...

Percebem a diferença? Como disse acima, cuspir é uma arma da impotência ante uma opressão contra a qual não podemos lutar. Soube que há alguns dias um grupo de artistas ligados à USP (que rima com cuspe), no vão do Masp (que, de certa forma, também rima com cuspe) desempenhou uma performance de duas horas que consistia de cuspir e vomitar em fotos de 38 políticos. Segundo li, o critério da escolha desses 38 deputados federais foi que fossem "ficha suja" e tivessem votado a favor do impeachment da presidente Dilma. Não vi a tal performance, e admito que deve ter tido um quê de escatologia, mas duvido que tenha sido mais absurda que a performance da maioria dos deputados federais em Brasília no dia da votação do impeachment. Cuspe por voto, fico com o cuspe.

Pra terminar, queria tratar rapidamente de outro cuspe, este desferido pelo ator global José de Abreu. Como a maioria de vocês deve estar a par do ocorrido, vou contar de um modo hipotético: imagine que você é uma pessoa pública, mais, um artista, só que ligado à esquerda. Você está com sua esposa num restaurante desfrutando tranquilamente de deliciosos pratos da culinária japonesa e tomando um bom saquê. De repente, percebe que um casal na mesa ao lado começa e te ofender e a sua esposa. Você se contém, tenta abstrair, fingir que não é com você, mas o casal se exalta e apela pra xingar também sua mãe. Não tendo paz pra continuar seu jantar, você se levanta e tenta dialogar com o hipotético casal, que, na falta de argumentos, passa a proferir xingamentos cada vez de mais baixo calão. 

Seu sangue sobe; eles te chamam de vagabundo, o que você sabe que não é. Nessa hora, qualquer um que não tenha nas veias sangue de barata pensa na possibilidade de dar uns tabefes no almofadinha, só que você pensa que, como pessoa pública, tem mais a perder que os franco-atiradores a sua frente. Então, o que você faz? Dá-lhes uma bela cusparada. No dia seguinte, você é o grande vilão dos meios de comunicação. Essa é uma questão não de julgamento (brasileiro adora julgar), mas de se colocar no lugar do outro. Agora, deixemos José de Abreu em paz e nos coloquemos no lugar do casal. Você acha sinceramente que mexer com quem tá quieto é uma atitude digna de quem quer um Brasil melhor? Independente de ideologia (se é que esse casal tinha alguma), eu acho que quem faz isso merece, no mínimo, um bom e suculento cuspe. Portanto, faço minha a salivada de José de Abreu. E tenho cuspido, digo, dito!

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