Rashomon, hoje considerado um clássico do cinema mundial, é um filme japonês de 1950 escrito e dirigido por Akira Kurosawa que conta a história de um estupro e um assassinato vistos pela ótica de várias testemunhas. Pesquisando a respeito, descobri que existe na psicologia o chamado Efeito Rashomon, nome que é dado a determinada situação de difícil compreensão (ou esclarecimento) por ter conflitantes julgamentos daqueles que a presenciaram. Pois bem, dia desses um amigo escreveu no facebook um fato que ele protagonizou quando de uma visita ao salão de cabeleireiros; achei interessante a história, contada sob sua ótica, e lhe pedi permissão pra transformá-la livremente num conto que ora compartilho com vocês e pro qual me utilizei, meio que enviesadamente, desse tal Efeito Rashomon. Contudo, quero crer que todos me irão compreender. A ele, pois:
Lá vem Epaminondas com sua pele bronzeada de caiçara, rato de praia; seus bem-torneados músculos; seu metro e 80; mais gingando que caminhando; mascando um chiclete que já deve ter perdido o açúcar há uma meia hora. Traz um corte de cabelo novo – do cabelo, raspado dos lados, resta um tufo no cocuruto, lambuzado de gel, com as pontas espetando o ar. O velho sorriso malandro, de canto de boca, acentua-se ao ver que na mesa de sempre já esperam por ele dois velhos amigos. Saúda-os com um cumprimento novo, só pra inteirados, senta-se de pernas abertas e com a cadeira ao contrário ao mesmo tempo que berra pro garçom: "Zé, um chope trincando e urgente, que minha garganta tá mais seca que o sertão do seu Ceará!"
Mesquita, um gordinho satírico que de nerd só tem a cara, dispara por trás dos óculos: "E aí, Epa, quem fez isso com você?" Epa é como os amigos o chamam. Petróleo, o outro amigo, um albino com cara de personagem de filme de aventura, gargalha alto. Epa não perde o rebolado e, enfático, lança: "Vocês não sabiam que a inveja mata? Ficam assim porque não têm meu bom gosto, meu estilo. Se aparecesse na frente de vocês o Brad Pitt em pessoa, era capaz de vocês dizerem 'Quem é esse mané?'. Agora, falando sério, quem fez essa obra de arte na extremidade superior de minha elegância foi uma cabeleireira top, além disso loiraça fenomenal que, de quebra, se insinuou pra cima de muá e me deu seu cartão. Resumo da ópera: vou sair com ela amanhã e encaçapar. Durmam com essa!" Petróleo sussurra no ouvido de Mesquita: "Aí mente!"
Cena II
Epaminondas, cabisbaixo, triste e pensativo, adentra o local, passa por Zé, o garçom cearense, e nem o cumprimenta. Tampouco vê Mesquita e Petróleo, que o esperam na mesa de sempre. Eles fazem cara de "ué" ao vê-lo passar batido e se dirigir direto pro banheiro, de onde volta uns dez minutos depois, com uma palidez mortal na face bronzeada. Só então cumprimenta os amigos frouxamente, senta-se e quase sussurrando pede pro Zé um guaraná. "Porra, meu irmão, guaraná? Que bicho foi que te mordeu?" Essa foi a voz de Mesquita, que nunca antes na vida vira o amigo beber algo não alcoólico. Petróleo, mudo, nem pisca. A tensão está no ar. Parece que todo o bar silencia à espera do que Epa dirá.
Ele, com bom domínio de cena, faz suspense, suspira e por fim solta as seguintes palavras: "Não viram que cortei o cabelo?" Mesquita: "É, vimos, mas não ficou tão ruim assim pra você chegar com essa cara. Claro, o rosto, só com plástica, mas o cabelo até que ficou jeitoso." Agora, sim, Petróleo cai na gargalhada, mas para no meio ante a ferocidade do olhar de Epa, que diz: "Vou me redimir. Tive uma prova hoje. Foi a moça que cortou meu cabelo. Pensem numa fulana fora de esquadro. Não é nem porque era gorda, que eu até que sou chegado numas carnes, é que a coitada era feia MESMO! Parecia uma trombada de ônibus com caminhão. Mas o foda foi que ela me paquerou na cara larga, e eu, orgulhosão, mandei um 'Você não se enxerga, não?'. Daí, a moça correu pro banheiro e desandou a chorar. Me arrependi na hora, paguei meio vexado e saí de lá destruído; daí vim pra cá caminhando e pensando na vida. E decidi: vou aceitar Jesus." Petróleo sentencia: "Ainda bem que você esculhambou ela só depois do corte."
Cena III
Bufando, Epaminondas entra no boteco. Tem os olhos injetados e parece um cão raivoso babando. Esbarra num sujeito que está de saída e incita: "Achou ruim? Cai pra cima!" O outro, parado, fita-o, até que Zé, com a mais perfeita atitude "deixa-disso", empurra educadamente o sujeito pra fora e Epa pra dentro. São mais de 15 anos de experiência botecal. Mesquita e Petróleo levantam-se e vão até o amigo, que está agora espumando pela boca. Mesquita: "Qualé, Epa? Dormiu com a bunda descoberta? E esse cabelinho de quem senta no quiabo?" Petróleo, pra não perder o costume, cai na gargalhada. Epa dá um violento safanão em Mesquita e solta um "Tá pensando o quê? Eu sou muito é macho, rapá, tá sabendo?" Zé, num passe de mágica, faz chegar um chope geladinho até o desaforado rapaz e, bom psicólogo, senta-o e diz: "Bebe, que passa!"
Epa, depois de um longo gole, pede desculpa aos amigos e relata: "Porra, velhos, fui cortar o cabelo, daí um tipo franzino me atendeu todo liso, cheio de papinho atravessado. E, enquanto lavava meu cabelo, saquei suas segundas intenções só pelo jeito como ele esfregava as mãos pela minha cabeça. Mas, vocês sabem, sou um sujeito educado, daí fingi que não era comigo, não dei trela e esperei que acabasse logo. O corte até ficou bom, não ficou?" Os dois ouvintes balançam a cabeça afirmativamente. Ele continua: "Quando o cara acabou, me entregou seu cartão, piscou um olho e disse: 'Se quiser serviço completo...'. Ah, rapá, não aguentei. Fui até a dona do salão, relatei o ocorrido e disse que não ia pagar. E ela que ficasse feliz por eu não chamar a polícia. Isso é assédio sexual, não é?" Petróleo, ao final do relato, manda um beijinho pra Epa e lhe dá uma piscada marota.
Cena IV
É ele, Epaminondas. O bar é o mesmo, ele é que está diferente. Tem os olhos vermelhos, nota-se que verteu lágrimas não poucas e não há muito tempo. Entra, procura os amigos, mas a mesa está vazia. Na hora em que a gente precisa... É segunda à tarde, o movimento é fraco. Ele se senta e fica olhando pela janela, mas sem fitar nada nem ninguém. Dir-se-ia que mira o vazio lá no horizonte, num ponto em que o azul do mar e o do céu se encontram. Chega o Zé e, com toda a psicologia que lhe é peculiar, senta-se tranquilamente como se fosse dono do estabelecimento e, com certa ironia disfarçada de gentileza, diz: "Abre o teu coração, garoto!" Epa levanta o rosto, mas, como os olhos marejados não lhe permitem enxergar bem o interlocutor, esfrega-os bem antes de fitar o garçom e em seguida lhe matar a curiosidade.
"É, Zé, eu fiz merda... Fui cortar o cabelo e uma mulata federal me atendeu. Rapaz, que mulher linda! E toda gentil, toda meiguinha, me fez um monte de elogios, falou bem do meu cabelo, sugeriu até esse corte. Ó como ficou bom, não ficou? Então, a parada foi que eu confundi gentileza com flerte e, antes de ir embora, passei-lhe uma cantada besta, achando que ela já tinha caído na minha... E pra quê, rapá? A mulher me olhou com a maior dignidade, pôs a mão no meu ombro e disse: 'Garoto, eu trabalho porque preciso, tenho duas bocas pra alimentar, e sou gentil porque sou educada. Mas vou te contar uma coisa que talvez você são saiba: nem toda moça simpática é vadia, viu? Vê se cresce e aprende a ver o mundo não com os olhos do umbigo. O caixa é ali. Passar bem!' É mole?" E o Zé: "Ui, doeu em mim! Deixa comigo, que tenho um santo remédio: uma cachacinha lá da minha terra que é tiro e queda! E na conta da casa. A primeira; as outras você paga." Petróleo não está, mas Epa jura que acaba de ouvir a gargalhada do amigo ecoando pelo recinto.
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PS: Na falta de uma cachacinha cearense, deixo de presente outro santo remédio: o filme de Kurosawa. Vejam enquanto está disponível no youtube:
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Sensacional. Parabéns...
ResponderExcluirValeu, Reggaebelde Project!
ExcluirAbração,
Léo.