Recentemente, Kana, minha parceira músico-matrimonial, fez um belíssimo show (sou suspeito, claro) no aconchegante Espaço Parlapatões, bem em frente à paulistana e boêmia Pça. Franklin Roosevelt. Pois bem, a entrada era gratuita, mas a casa permitia que a produção do evento passasse um chapéu pedindo ao público que contribuísse com o que quisesse. Kana levou ao parlapatônico palco oito músicos, sendo quatro saxofonistas, e gastou muito tempo pra fazer os arranjos pra essa banda. Até aí, tudo bem, toda profissão tem seus riscos (e enroscos); o detalhe que gerou este texto foi que bem em frente ao palco havia uma mesa de jovens que bebiam alegremente e, nos intervalos de seu êxtase, assistiam ao show. Já na segunda canção, eu, que estava logo atrás, ouvi de uma garota dessa mesa um "Não tem nenhuma música conhecida!". Duas canções depois, porém, todos eles estavam mexendo seus respectivos esqueletos ao som das tais canções desconhecidas.
Porém, no momento em que Solange, nossa produtora, com seu charme ímpar, passou pela mesa deles com o chapéu em mãos lhes pedindo contribuição, notei que todos fizeram cara de nojo, como se tivessem sido abordados por um inconveniente mendigo que lhes vinha atrapalhar o lazer. Solange, com grande jogo de cintura, venceu a indignação, sorriu e insistiu (eu vi!), e conseguiu que um deles, não sei se constrangido pela atitude dos demais ou simplesmente aborrecido, sacasse de sua carteira algo que me pareceu ser... dois reais(!). Aqui vale, antes de que continuemos, um raciocínio: ali havia vários bares SEM música ao vivo. Aqueles jovens podiam ter escolhido outro estabelecimento sem o inconveniente da música pra que conversassem – e bebessem – sem maiores incômodos. Eu mesmo, quando quero beber e conversar, evito os bares com música ao vivo.
Mas o fato foi que eles JUSTAMENTE optaram por aquele. E mais: sentaram-se em frente a um palco onde oito músicos e uma cantora apresentavam o resultado de seu trabalho. E nem assim se dignaram (exceptuando-se o rapaz dos dois merréis) a meter a mão na carteira e jogar pelo menos umas moedas no pobre do chapéu. Ponto. As demais pessoas do público (que não era pouco) contribuíram como puderam/quiseram, uns mais, uns menos, e notei que todos (pagantes ou não) estavam se divertindo MUITO. Inclusive, vários deles dançavam no fundo do bar. Eu, como marido da cantora, tinha tudo pra estar feliz – e estava. Contudo, a atitude dos jovens daquela mesa não me passou despercebida, assim que, após o show, comentei o fato com meu amigo Adolar (marido da produtora Solange), e, entre um e outro copo de cerveja, pusemo-nos a filosofar sobre a questão, tendo o amigo Acir como fiel da balança.
Nesse ponto, chegamos ao âmago do tema. Adolar, com sua vasta experiência de artista que já tocou nos mais variados estabelecimentos, tentou me explicar, pelo viés do micro, que aqueles eram imbecis que haviam caído ali de paraquedas e que a maioria do público era constituída de gente, digamos, "fina, elegante e sincera". E, como eu, no macro, lhe rebatesse, argumentou que eu devia estar feliz por ser aquela mesa uma minoria. Foi quando eu lhe disse que, sim, estava feliz por ter percebido que a maioria absoluta do público gostara do show, mas que o que me havia chateado na atitude dos rapazes daquela mesa ia muito além deles, a quem eu julgava, mais que tudo, vítimas de uma sociedade que considera a arte algo menor, que acha natural que nove artistas, depois de muito ensaio, de muito arranjo etc., não mereçam sequer centavos de quem está ali gastando uma grana com sua cerveja e suas porções.
E lhe perguntei: "Quantos jovens desses que estiveram aqui hoje curtindo e aplaudindo o som você imagina que sejam filhos de garçons, pedreiros, cobradores de ônibus etc.?" Mais que ser retórica ou mesmo preconceituosa, a pergunta que eu formulei queria fazer pensar nessa engrenagem que está aí fora dizimando nossa cultura, transformando seus profissionais da arte em seres invisíveis. E dei o exemplo do que havia visto um dia antes ao passar pela estação Clínicas do metrô. Pra quem não mora em Sampa, conto-lhes que essa estação tem um grande corredor que leva até o Hospital das Clínicas e que tal corredor sempre serviu como uma espécie de museu gratuito onde se expunham fotos, desenhos e muitas outras manifestações culturais. Só que, no dia em questão, ao passar por esse charmoso corredor me deparei com várias caricaturas de cantores sertanejos(!).
Mais uma vez, quero dizer que não pretendo com isso espinafrar cada um daqueles artistas ali expostos; não costumo criticar indivíduos, penso antes, no macro, num sistema que os transforma em novos Tons, Chicos, Miltons, Caetanos... Esses sertanejos em sua maioria são contratados por gravadoras que investem pesado neles, por isso sua música invade diariamente as emissoras de rádio e TV de uma forma (pra quem não gosta) quase insuportável, impondo-se como o que há hoje. Assim, durante aqueles poucos minutos em que passava por ali, perguntava-me por que mereceriam eles mais esse espaço, essa vitrine, já que já tinham tanto em troca da nulidade oferecida, ao passo que a tantos outros artistas dedicados à música brasileira – e com muito mais propriedade que estes – não lhes restava muito mais que migalhas – que por vezes o público ainda nega.
Os artistas, com o tempo, vão percebendo que não podem mudar o mundo, assim vão afastando o olhar da sociedade e passam a tratar cada vez mais do indivíduo em suas criações. Talvez esse seja o caso de Adolar, de cujo olhar, reitero, não discordei. Apenas quis mostrar outro panorama. Tenho sido ao longo dos anos sempre um retardatário (pra não dizer retardado), assim nunca deixei de pensar nos ignorantes (refiro-me aos que não tiveram muitas oportunidades de adquirir conhecimento), e me nego a pôr neles a culpa por seu comportamento tosco. Disse ainda a Adolar que em todas as épocas houve (não houveram, viu ministro?) idiotas que arrotavam erudição e que acho estes muito mais recrimináveis que os que simplesmente fazem eco ao que se lhes empurra goela abaixo. O que muda o futuro de um indivíduo que deixa de ser papagaio e passa a ter voz própria pode ser um feliz acaso, mas o que não muda a vida da maioria dos que repetem sem ao menos se ouvir é, sim, manipulado.
Resumindo: imbecis existem em todas as camadas sociais, portanto, obviamente, também dão o ar de sua (des)graça nas mais altas, mas há que se dar atenção especial aos das camadas mais baixas, pois, ao passo que aqueles são imbecis por escolha própria, estes infelizmente o são sem saber. E pra resumir ainda mais (e contemporizar): Adolar, no micro, tem carradas de razões; mas eu não me considero de todo equivocado no macro.
Para o amigo Adolar Marin.
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Para o amigo Adolar Marin.
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É mestre Léo Nogueira entendo perfeitamente os motivos das ervas daninas nos causarem mais incomodo que as flores no campo. Adolar que é "puta véia" no ramo bares da vida já é um Monge já não se deixar atingir pelos insetos no campo. Eu escrevi dois artigos para a www.ritmomelodia.mus.br, um tratando do Bar,um cemitério do músico e do couvert artístico, ajuda a refletir sobre o macro. A cultura musical com a avalanche de opções vindas da internet e as cartas marcadas das TVs fez os músicos serem vistos como uma nota qualquer pelo público que curte mais entretenimento que arte musical e não sabem fazer a diferença dos menus. Segue o enterro e sinto dizer que essas ervas daninas sempre nascerão. É ignorá-las e lançar as pérolas para almas apreciadoras da boa música.
ResponderExcluirMuito bom, AC. Só um detalhe: não creio que ervas daninhas são o público imbecilizado, mas sim quem os imbecilizou.
ExcluirAbração,
Léo.
É muito fácil ser levado.
ResponderExcluirOs que estão em situação de maior vulnerabilidade são levados com mais facilidade ainda.
Aliás isso vem sendo um projeto desse poder que vem tomando o mundo todo.
Exatamente, Curcinha. Pra que o poder seja absoluto, a ignorância também tem que ser. Por isso esse tratamento à cultura inversamente proporcional à criação de igrejas fundo de quintal...
ExcluirBeijos,
Léo.