terça-feira, 11 de abril de 2017

Esquerda, Volver: 16) "Garota, eu vou pra Califórnia..."


O assunto do momento são as reformas do presidente biônico, e me lembrei delas em certa passagem do livro que estou lendo no momento, o romance As vinhas da ira, do maravilhoso John Steinbeck. A passagem, pra ser mais específico, é o capítulo 19 inteiro, e fiquei com uma vontade danada de trazê-lo pra cá; contudo, pra não cansar a beleza dos leitores (sobretudo a de meu amigo Paulinho das Frases, que é chegado em microcontos) tentei fazer uma edição caprichada do capítulo, pois, embora o livro seja de 1939, Steinbeck consegue explicar de forma didática e resumida como se constrói uma sociedade injusta, como a nossa, e, de quebra, dá também a fórmula de como reverter o processo e "vencer o monstro". Recomendo o livro (e o filme homônimo – igualmente recomendável –, dirigido por John Ford) tanto pra petralhas e coxinhas quanto pra quem não tem nada a ver com isso, como nosso querido professor Leandro Karnal. É ler pra crer!


Fragmento de As vinhas da ira
Por John Steinbeck

A Califórnia já pertenceu ao México, e suas terras aos mexicanos; então uma horda de americanos esfarrapados e loucos a inundou. E tal era sua fome de terra que eles tomaram, roubaram as terras dos Guerrero, dos Sutter, roubaram e destruíram os respectivos documentos de posse e brigaram entre eles sobre a presa, esses homens esfomeados, raivosos; e guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. E isso era apropriação, e apropriação era propriedade. Os mexicanos eram fracos e esquivos. Não puderam resistir, porque nada no mundo desejavam com o frenesi com que os americanos desejavam aquelas terras. Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante, pela terra, por água e um céu azul sobre elas, pela verde relva exuberante, pelas raízes tumescentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nada mais desejavam. Não mais ambicionavam um hectare produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em torno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. 

Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas em capital mais juros, e as colheitas eram compradas e vendidas antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então, as colheitas fracassavam, secas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia, até que finalmente nem mais eram fazendeiros os meeiros, apenas homens de negócios, pequenos industriais, que tinham de vender antes de ter produzido qualquer coisa. E os fazendeiros que não eram bons negociantes perdiam suas terras para os que eram bons negociantes. Não importavam quão trabalhador e diligente um homem era e o quanto amava a terra e tudo o que nela crescia, desde que não fosse também um bom negociante. E com o tempo os bons negociantes se apropriavam de todas as terras, e as fazendas foram aumentando de tamanho ao mesmo tempo que diminuíam em quantidade. Já aí a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto não o soubessem. Importavam escravos, embora não os chamassem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Ora, veja como eles vivem. E, se se tornarem exigentes, a gente os expulsa do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia poucos fazendeiros pobres nas terras. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados e se sentiam apavorados, e alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo, e outros rebelavam-se e eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade de proprietários. E as colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de grãos, e legumes destinados a alimentar o mundo espraiavam-se pelo chão: alface, couve-flor, alcachofra, batatas – colheitas humilhantes, inferiores. Um homem pode ficar de pé quando trabalha com a foice, o arado, o forcado; mas tem que rastejar por entre os canteiros de alface, tem que se curvar e arrastar o enorme balaio por entre os algodoeiros, e tem que vergar os joelhos como um penitente para tratar da couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários não mais trabalhavam em suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras, o cheiro da terra e a satisfação de cultivá-la; lembravam-se apenas de que elas lhes pertenciam quando calculavam quanto ganhavam ou perdiam nelas. E algumas das propriedades cresciam a ponto de um só homem nem mais poder imaginar seu tamanho; eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e torná-las mais produtivas; capatazes cuja missão consistia em fazer que os homens que trabalhavam nas terras o fizessem até o último resquício de sua força física. Então, esses proprietários assim se transformavam em autênticos donos de armazéns. Pagavam aos homens e vendiam-lhes gêneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E após algum tempo deixavam absolutamente de pagar aos homens e economizavam a escrituração, os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia desse jeito trabalhar e comer; e quando terminava o trabalho verificava simplesmente que ainda devia ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas propriedades, como havia muitos que jamais as tinham visto.

[...] porque um homem esfomeado tem que trabalhar e, quando precisa trabalhar e não tem onde trabalhar, automaticamente trabalha por um salário menor, e aí todos têm que trabalhar por salários menores. [...] Os grandes proprietários que têm acesso à história, têm olhos para ler a história, deviam saber do grande fato: a propriedade, quando acumulada em muito poucas mãos, está destinada a ser espoliada. E do fato complementar também: quando uma maioria passa fome e frio, tomará à força aquilo de que necessita. E também o fato gritante, que ecoa por toda a história: a repressão só conduz ao fortalecimento e à união dos oprimidos. Os grandes proprietários ignoraram os três grandes gritos da história. A terra acumulou-se em poucas mãos, o número dos espoliados cresceu, e todos os esforços dos grandes proprietários orientavam-se no sentido da repressão. O dinheiro era gasto em armas e gases para proteção das grandes propriedades; espiões eram enviados com a missão de descobrir insurreições latentes, que precisavam ser abafadas antes que nascessem. A transformação econômica era ignorada, planos para a transformação não eram tomados em consideração; apenas os meios de destruir as revoltas eram levados em conta, enquanto as causas das revoltas permaneciam.

Os tratores que expulsavam os lavradores de seu trabalho, as esteiras rolantes que transportavam as cargas, as máquinas que produziam, tudo isso foi melhorado, e um número cada vez maior de famílias perambulava pelas estradas, à procura de migalhas que caíssem das grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendiam às margens das estradas. Os grandes proprietários formavam associações de proteção e se reuniam para discutir o meio de intimidar, de matar com gases... E se sentiam diante de um pavor permanente: 300 mil... se um dia esses 300 mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se algum dia eles descobrirem sua própria força, nesse dia as terras lhes pertencerão, e não haverá gás nem haverá quantidade suficiente de armas para detê-los. E os grandes proprietários, que por intermédio de suas empresas tornavam-se ao mesmo tempo mais e menos que seres humanos, corriam para sua destruição, e usavam todas as armas que concorriam para sua própria destruição. Todos os pequenos meios, toda a violência, todas as investidas policiais [...], todos os agentes da polícia que, ventre saliente, vagueavam por entre os acampamentos dos esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do dia da destruição e contribuíam para a infalibilidade da chegada desse dia. [...] Então seria o fim.

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