quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Palavra É: 33) Cabral

Desde tempos imemorias, de guerra ou de paz (tanto faz), o concreto fato (do índio ao sem-teto) é que o pobre paga o pato; mas tenho cá pra mim que não foi sempre assim. No princípio (muito antes de protesto e comício), o índio, mais que cidadão, era tratado como pessoa, vivia numa boa e era levado em consideração. Claro, havia uma hierarquia, mas o da alta extremidade não tinha a leviandade de não dar bom-dia a quem quer que fosse, não fazia cu-doce nem se achava the best — e isso era inconteste. Todos eram iguais perante a lei — que, aliás, como direi? ... não havia. Mas uns não ficavam de barriga vazia nem outros tinham demais. O sexo não era tabu e até o nudismo era valorizado pra chuchu. Não havia catecismo e muito menos ateus — até porque, deuses, eles tinham os seus.

Até que uns piratas em suas caravelas infestaram as matas sem pagar por elas... Ops!, quer dizer, deram um espelho pra mim, outro pra você, e está feito o trato — foi a primeira vez que o índio pagou o pato! E tudo sem contrato, sem escritura. Afinal, os habitantes de antes tinham a alma pura. E eram analfabetos, não conheciam letras. E assim, tornaram-se escravos dos penetras. Que desconheciam do local a grandeza (eram de outra natureza). Embasbacados com toda essa maravilha, perguntavam-se: "Será isto uma ilha?" E, ignorando o lar continental dos habitantes nus, deram ao local o nome de Ilha de Santa Cruz. E de lá pra cá não foram poucas as cruzes; acostumou-se a ver a escuridão apagar as luzes e foi feita muita ode e muita prece ao "quem manda pode, quem não pode obedece".

E eis que os invasores, andando milhas e milhas — com os pés cheios de calos e os falos cheios de icores, —, viram que não se tratava de uma simples ilha, mas de quase um continente. Foi assim que um impertinente deu ao local um nome de pau: Brasil, pra louvar a senhora puta que o pariu. E continuou vindo de lá pra cá a escória, pra fazer jus (e encher de pus) a nossa história, feita de estupros e incestos — e debaixo de muito cabresto. Quem fugia ou morria de morte matada ou, com melhor sorte, só entrava na chibatada. Fosse o fugitivo nativo ou os recém-chegados escravos. O chicote assoviava bravo pra todo lado, deixando em escuras costas feridas expostas pra servir de lição ao fujão e de exemplo pra que outros não tivessem a mesma má ideia. É assim no mundo inteiro, quando o galinheiro é tomado pela alcateia.

E, por falar em obediência, essa tem sido uma ciência inata de nossos naturais. Obedecer, aliás, sempre foi uma de nossas habilidades capitais. E mais: obedecer calados, com o rabo entre as pernas, desunidos lado a lado no escuro da caverna. Claro, vira e mexe aparece uma exceção, mas só pra que um ciclo se feche e outro não — pra que surja uma ditadura e meta corpos e mentes numa viatura... e de lá pra uma sepultura, não raro clandestina, que é pra onde se destina a carcaça dos desobedientes, os que desafinam do coro dos contentes. Afinal, nosso modo servil já serviu muito ao país e ao capital estrangeiro — que adora o brasileiro. Esse modus operandi de obedecer a quem quer que mande é que faz o patrão condecorar o funcionário-padrão. Onde a alma é pequena, um Senna desaparece e um Barrichello enriquece.

Lugar de gênio é no exterior, faça-me o favor! Gênio não gosta de obedecer ordem, melhor ficar com os que concordem. Gênio é meio bad boy, anti-herói, corrói a sociedade e põe em xeque a normalidade. Melhor ficar com um beque e dispensar o centro-avante. Quem sabe lá adiante o gênio cante de galo num time da Espanha ou num laboratório da Alemanha. Nós não queremos gênios, preferimos o oxigênio poluído, o ignorante arrogante e empedernido, o eleitor feijão com arroz, a mão de obra barata, que assim depois a economia desempata. Um país que vai pra frente é cheio de gente cordata. São os cordatos também que elegem os homens de bem, que respeitam os costumes e a família. Claro, se um ou outro nos pilha são ossos do ofício. E, se depois vira um vício e generaliza, a gente fecha os olhos e veste a camisa... amarela.

Pois é ela que nos representa. Não a do 7 a 1, do povão comum; mas a do Brasil penta, do Brasil que dá certo, que pra fazer sucesso precisa de otários e espertos, ou seja, a massa e o Congresso. O mesmo Congresso que absolve golpista e a mesma massa (de manobra) que esculhamba o artista e sua obra. Aí não dá samba! Onde Chicos são vilões e onde bandidos vencem eleições. Me responde: quem guia e quem vai na garupa onde a galera se preocupa com a Lei Rouanet e não tá nem aí pra bancada do BBB? Eu respondo: não, não é em Macondo. É onde uma cerveja aguada desce redondo e onde um povo insatisfeito vai às ruas exigindo a perda de direitos. Onde a massa clama pela volta da mordaça. E depois, quando uma reforma vira norma, grita: Bem feito!

O Brasil é assim, menos uma nação e mais um rincão chinfrim, um poço de contradições avançando de golpes em orações e que quanto mais se move mais volta pro 19, tropeçando de Cabral em Cabral e achando normal. Mas aqui, além de Cabrais, há tudo o mais que faz este país ser especial, como o arraial; o berimbau; o Carnaval; o fio dental; a morena escultural; a festa e o festival; a Gal; a coragem do homossexual; a canção Ilegal, Imoral (ou Engorda); o litoral; o Memorial (da América Latina); a beleza natural; o objeto oval (na testa do prefake); o Sítio do Picapau (Amarelo); o samba no quintal; a pluraridade racial; a sau(dade); o clima tropical; o uau(!); a vogal (anasalada); a graciosidade da palavra xibiu; e a letra z, que os gringos (e alguns neoliberais) inventam de enfiar no meio do BraSil.
***

PS1: Minha amiga Lúcia Maria, ao saber que Sérgio Cabral mudou de "residência", virou-se pra mim e tascou: "A palavra é Cabral! Tem coragem?" Tive.

PS2: Trilha sonora —  Adolar Marin, Carnaval na Tribo (Adolar MarinLéo Nogueira) — relevem a qualidade do áudio, pois se trata de uma gravação caseira. Em breve teremos a de estúdio, se Deus quiser... e ele há de querer.



Mais uma vez, posto a letra:



CARNAVAL NA TRIBO
Adolar MarinLéo Nogueira

Antes da invenção do flashback
Eu andava aqui fumando um beck
E brisando nu à beira-rio
Antes de Chuí e Oiapoque
Era só quarup feito rock
E o batuque cru no pau-brasil

Guaraná é que era Coca-cola
Guarani, de piercing e argola,
Era natural e de bom-tom
Tinha rave e carnaval na tribo
Sem ninguém dizer "eu te proíbo"
E o cacique até achava bom

Aimoré morava
Pataxó se achava
Carajá de boa
E xavante à toa


O amor-livre era a céu aberto
O horizonte, logo ali bem perto
E não tinha cerca no quintal
Eu de saia não pegava nada
Toda taba tava sossegada
E acabou que aí chegou Cabral

***

4 comentários:

  1. Sempre que o assunto é Expansão portuguesa apodera-se de mim uma vergonha imensa.Navio Negreiro de Castro Alves faz meus olhos nadarem. À luz da época foi "normal" permitindo um absurdo como o Tratado de Tordesilhas.Não desresponsabilizo meus ante-passados, nem que tenham usado a desculpa mais vil que era a evangelização, não não posso sequer aceitar que tenha acontecido. No entanto me perdoe Léo, mas os Cabrais portugueses comparados aos Cabrais de hoje eram Meninos de Coro . Neste momento aquilo que vemos é uma luta fratricida, e nem se trata de riqueza, porque o Brasil tem para dar e vender, mas sim a tentativa (tomara que aborte)da queima de arquivo "Quem não é por mim e contra mim" Adorei o que escreveu, como o fez, já lhe disso você é brilhante abraço para si Kana e Adolar.

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    1. Oi, Mi. Como escrevi no face, repito aqui: você não tem culpa do que fizeram seus antepassados, assim como os filhos não têm culpa dos erros dos pais. No mais, você não deixa de ter razão; o que acontece no Brasil hoje é, mais que vergonhoso, revoltante.

      Os abraços serão dados. Outro em você,
      Léo.

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