domingo, 8 de outubro de 2017

A Palavra É: 31) Paralelepípedo

Tenho absoluta certeza de que num belo e ensolarado domingo (ou quiçá numa segunda chuvosa) vocês ainda me verão caminhando por aí, com aquele sorrisão de orelha a orelha, de bem com a vida, assoviando um samba antigo (que eu provavelmente terei acabado de inventar) e ostentando uma camiseta (talvez roubada da lojinha de Vlado Lima) onde poderão facilmente reconhecer um "I" em inglês seguido de um enorme coração e finalizando com um charmosérrimo "paralelepípedo" tingido de arco-íris em letras garrafais. Yes, people! I love paralelepípedo! Claro, a menos que eu esteja subindo uma rua de paralelepípedos dirigindo um fusca ano ____ (preencha a lacuna) amparado por quatro pneus carecas... Como tantas vezes soeu (e doeu) acontecer em meu passado.

Mas não mais. Hoje, aquele velho fusca cor de burro quando foge vive apenas em minhas lembranças (e dentro de alguns traumas — como aquela ocasião em que o banco do motorista se soltou numa subida e tive que me agarrar ao volante com ambas mãos...). Contudo, o paralelepípedo sobrevive, sinto que está tão próximo de mim que basta esticar um pé pra poder alcançá-lo. Sim, irmãos e irmãs... o paralelepípedo! O cara que o inventou era realmente um gênio (só não devia concordar com essa afirmação o cara que inventou o pneu careca). O paralelepípedo subverte aquela afirmação que diz que "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". E sabem por quê? Porque o paralelepípedo é praticamente uma pedra porosa. Isso pede novo parágrafo.

Sim, asfáltico leitor! Sim, barrenta leitora! O paralelepípedo é uma pedra que respira. E tudo que respira — além de querer comer, como bem nos lembra Carlos Careqa — sabe receber (e devolver) água. Porque a água atravessa seu corpo pelos poros. E os poros do paralelepípedo são suas laterais. Claro, porque o paralelepípedo é praticamente uma flor de pedra plantada no solo. Agora, cubramos o paralelepípedo com asfalto, preparemos a pipoca e esperemos uma dessas tempestades januárias (de janeiro) sabendo que o bueiro estará entupido de lixo. E aí? Sim, queridos (e queridas)! A enchente rimará com a gente! Porque o asfalto é como certos corações: impermeável! O asfalto só sabe aceitar (e respeitar) aquele que o pisa com quatro patas.

A saber: os veículos motorizados. Sim, recebe sobre seu regaço também motos ou bicicletas, mas desde que o pisem forte, com macheza! Nada de pedestre descalço, com chinelinho de dedo ou, vá lá, tênis de corrida. Nã-nã-ni-nã-não! O asfalto é dos carros como o céu é dos (g)aviões. Mas... e quanto a essa galera toda que não bebe gasolina? O pedestre, o transeunte, o caminhante ("no hay camino, se hace camino al andar"), o retardatário, o mendigo, o pedinte (afinal, esses dois não são necessariamente o mesmo), o carteiro, o velho que vai ali jogar uma daminha na praça, os manifestantes (!!!), o camelô, os intrépidos profissionais do furto (que sempre estão atentos aos Lucianos Hucks e seus Rolex nos faróis vermelhos), o vira-lata, o gato de rua, os pombos, as formigas etc. E quanto a estes? 

Que esperem o domingo pra caminhar na Paulista! Ou vão ao Ibirapuera (enquanto a entrada ainda é grátis) ou, melhor ainda, associem-se a uma dessas academias (não, quem falou em ensino?; estou me referindo a ginástica, malhação, bombagem...) que pululam aos milhares por aí — e fé na tábua! Quem mandou não nascer automóvel? Ou então se mudem pro sertão, aguentem aquele solzão na moleira e divirtam-se criando calo no calcanhar naquele chão rachado e vermelho enquanto assistem à subida daquele poeirão como se fosse uma neve negra de ponta-cabeça... Porque as grandes metrópoles são do automóvel... e, de preferência, o particular, visto que o coletivo ainda roda por aí enquanto os carros individuais não se rebelam e invadem a Paulista em manifestação.

Agora, falando sério, o próprio paralelepípedo já é por sua vez um paliativo, inventado porque os ilustríssimos senhores europeus não queriam descer de suas exuberantes carruagens num dia de chuva e enlamear os formosos calçados. A ideia, como tudo o mais que vinha da Europa, foi prontamente assimilada por seus irmãos latinos, e eis que o Brasil foi aos poucos se paralelepipedeando. Só que isso não bastou. As damas tinham o incômodo de vez por outra enganchar seus saltos nos vãos paralelepipedescos, e isso não era algo bem-visto pela sociedade. Havia que cobrir o chão com algum material menos propenso a vexações públicas. Ainda não haviam imaginado o vexame maior que é ver a água subir de quando em vez acima do nível dos calcanhares. E assim, o deus-homem disse "Faça-se o asfalto", e assim se fez. 

E o deus-homem viu que isso era bom e asfaltou o mundo. E no sétimo dia veio o dilúvio... Entretanto, além do paralelepípedo, há o par ávido; o parente bêbado; o pobre cúpido; o pateta didático; o portentoso estúpido; o picareta flácido; o príncipe das trevas gélido; o pensador híbrido; o palerma insípido; o presente jurássico; o pedregoso líquido; o preço módico; o pretenso nórdico; o prazer ótico; o purgatório dos plácidos; o punguista rápido; um preso no sábado; o pavor do tímido; o piso úmido; o presunto vívido; o primeiro xerógrafo; o primo do Zéfiro; e, principalmente, minha amiga Ana Lúcia, que, talvez pensando nas Paralelas de Belchior, entrou numas de paralelismo e, provavelmente imaginando meu tombo após eu escorregar num ensaboado paralelepípedo, foi quem escolheu a palavra. Admito que escorreguei, mas não caí. 

É mentira, Terta?


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PS: Trilha sonora: Kleber Albuquerque e Tata Fernandes, Estrada (Kleber Albuquerque Tata Fernandes)



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