quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Os Manos e as Minas: 31) Na ilha de Chico, no barco de Caetano

Tom Zé, nos primórdios, quando a Tropicália ascendia, ao ser questionado num programa de TV a respeito das diferenças estéticas entre eles (os tropicalistas) e Chico Buarque, tascou sem dó e com a fina ironia que sempre lhe foi característica que respeitava muito o autor d'A Banda, "pois ele é nosso avô". Claro, Tom Zé, que é oito anos mais velho que Chico, referia-se à música deste, que, segundo ele, parecia antiga se comparada com a que os baianos & agregados andavam fazendo. Já eu costumo dizer que a genialidade de Chico foi revolucionar a música brasileira sem violar sua estrutura, seguindo todos os padrões clássicos. A modernidade de Chico sempre esteve na qualidade do que fazia/faz. Creio mesmo que depois da morte de Noel Rosa o Brasil teve que esperar quase três décadas pra ver surgir alguém com a pena tão refinada.

Li em algum lugar — acho que no Verdade tropical, mas não tenho certeza — uma declaração de Caetano em que dizia que eles, os tropicalistas, queriam experimentar também o feio, já Chico preferiu se dedicar apenas ao belo. Nisso sou obrigado a concordar com Caê. Quando descobri a obra de Chico (escrevi a respeito aqui) fiquei louco e não descansei enquanto não adquiri sua discografia inteira. Durante esse tempo, nenhuma canção que não fosse de Chico me satisfazia. Quando enfim a febre baixou, tentei repetir a dose com Caetano, mas me frustrei, porque este, apesar de ser também um compositor de primeira grandeza em nosso cancioneiro, sempre foi muito irregular, talvez por sua veia tropicalista. É normal em seus discos ouvirmos uma pérola e logo em seguida uma canção sem pé nem cabeça.

Isso pode ser entendido também como ousadia. Caetano sempre arriscou mais que Chico. Creio mesmo que quando acertava superava o colega de ofício; mas a qualidade da obra de Chico está na impressionante regularidade. Seus fãs costumam dizer que ele não tem nenhuma música feia. Pensem aí em todos os compositores brasileiros e vejam se encontram outro sobre quem se possa repetir essa afirmação. Não há. Simplesmente não há. A exuberância de Chico tanto nas melodias quanto nas letras (e mesmo nas feitas pra melodias alheias) é algo único na história da canção em língua portuguesa. Obviamente, haverá quem discorde, e preciso terminar este parágrafo afirmando que o que escrevi não é uma verdade tropical (nem absoluta), mas sim apenas e tão somente minha opinião.

Nesse duelo entre Chico e Caetano, não é segredo pra ninguém que o primeiro levou a melhor também quando enveredou pela literatura. Ok, seus primeiros livros não são lá tudo isso, mas de Budapeste pra cá parece que ele acertou a mão e vem conseguindo escrever uma leva de romances primorosos. Já Caetano, em sua solitária incursão pelo reino das palavras impressas, concebeu um livro (o supracitado Verdade tropical) cheio de altos e baixos e um tanto cansativo. Caetano é verborrágico, todos sabemos, e seu livro sofre dessa verborragia. A impressão que tive ao lê-lo foi a de que parecia que Caetano não o havia escrito, mas sim transcrito. De sua fala, obviamente. Bom, mas pra ser justo tenho que admitir que nele há algumas belas e tocantes passagens.

Vocês já perceberam que tenho time nesse jogo. E quis explicitar isso pra prepará-los pro que em seguida escreverei. De repente, não mais que de repente, percebi até com certo espanto que nos últimos anos tenho ouvido mais Caetano que Chico. A explicação que me ocorre é que, como sempre fui fanático por este, já pus pra tocar zilhões de vezes suas canções e não há mais novidade. Inclusive, na condição de fã exigente notei que depois do Paratodos (lá se vão quase 25 anos — como o tempo passa rápido!) Chico não lançou mais nenhum excepcional disco. Mais uma vez, pra meu gosto pessoal. Os bissextos lançamentos subsequentes mantiveram a regularidade da qualidade, mas as canções fora de série foram escasseando.

Talvez o novo Caravanas seja seu melhor em décadas, mas nem este cheguei a ouvir repetidas vezes como fazia com todos os anteriores. Ah, um parêntese: houve, sim, um grande disco, Cambaio, mas este não pertencente a sua discografia, é mais um daqueles trabalhos feitos pra teatro (e mais um em parceria com Edu Lobo). Em contrapartida, Caetano tem me agradado cada vez mais. Desde seu , quando teve a coragem (pra alguns, o disparate) de abrir mão da parceria de sucesso com o arranjador Jaques Morelenbaum e optou por gravar uma série de discos com formação mais roqueira, venho notando que a caetânica verve está cada vez mais vicejante. Essa troca na escalação dos músicos lhe fez bem, deu-lhe frescor e vitalidade. Suas mais recentes canções têm um vigor quase juvenil.

Gostei sobretudo de Abraçaço, este sim que ouvi muitas e muitas vezes (até escrevi sobre ele aqui). E aqui o fato de não ter ouvido tanto Caetano quanto Chico me fez aproveitar sua boa fase e ir fuçar seus lados B, inclusive canções que fez pra outros/as, como as do belo disco Recanto, de Gal Costa, cujo repertório é todo de autoria do baiano. Aliás, Caetano tem me ajudado muito a compor ultimamente. Explico: sempre gostei de criar letras novas pra canções famosas. É assim: pego uma canção qualquer de que goste, aproveito sua linha melódica e faço-lhe uma nova letra. Depois, envio esta pra que algum parceiro a musique. Pois bem, já fiz isso recentemente com umas quatro ou cinco de Caetano.

Pra encerrar, gostaria apenas de enfatizar que meu casamento com a obra de Chico Buarque continua firme e forte e talvez essa pulada de cerca (e justo com a obra de seu amigo) até sirva pra que a relação futuramente venha a ficar mais apimentada. E quem sabe até eu me encha de coragem e lhe cantarole ao ouvido "te perdoo por te trair".

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8 comentários:

  1. Não concordo com tudo, os dois são músicos excelentes. Mas Chico é também POETA.

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  2. Maravilha!! Só amplia e me enriquece. Agradeço.

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  3. Chico dispensa comentários. Tudo que se disser dele parecerá redundante. Mas Caetano, quando acerta, é uma coisa! Amo os dois, cada um de uma forma.
    Beijos!

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    1. Pô, Dannoca! Aí você resumiu minha prosa toda num haicai. rsrs

      Beijos,
      Léo.

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    2. Hahahahaha! Eu que sou sintética demais...
      Beijão!

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