quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A Palavra É: 48) Resistência

Às vezes, a gente perde a paciência (ou a elegância) e age com truculência, em outra instância; toma uma cana e manda uma banana pra geral, um "fuck you", um "tomar no cool" etc. e tal. Sim, porque a gente é humano, não tem sangue de barata, tá cansado de tirano e de psicopata travestido de chefe. Quando tudo é um blefe, não rola oferecer a outra face. E não é só questão de (falta de) classe, é que toda esperança se cansa, cedo ou tarde, e arde na fogueira dos sem eira nem beira órfãos de fé. É, quando nada mais dá pé, há que se meter a colher no caldo da História. Vitória não vem de graça, há que se pôr a mão na massa, arregaçar a manga. Pra evitar um "Brasil de tanga", vez em quando é preciso meter o louco. E achar pouco.

A gente se acostuma a achar que o mundo é nosso umbigo, daí, quando a cobra fuma e o classe média vira mendigo, vá olhar a merda que você fez. Como dizia o clássico, só lamento uma vez. Uma vez perdida a paz, notamos que, de mais a mais, nem paz era, mas pura quimera. Conformismo, estrabismo, malabarismo na corda rota. Nota de um samba só. Cipó no lombo. Um quilombo! Se é pra dançar, que ao menos escolhamos a canção e não deixemos por conta do azar. São dois pra lá, dez pra cá. Quando a casa cai, não basta rezar ao Pai. Aliás, tem mais, ela não cai da noite pro dia, quando parecia que tava tudo bem, tava nem. Ela já tava caindo. E a gente achando lindo. Porque um (in)feliz só vê aquilo que quer ver. Pode crer.

Seu amigo diz "tome cuidado", e você desvia o olhar, achando que tá tudo no lugar. E ainda ri do coitado. Porque a paz que antecede o caos vive à espera da pá de cal. Você é bom, os outros que são maus. E Deus provê. E está com você. E a vida é um grande carnaval. Até que vem uma bala perdida. Ou uma dívida não perdoada. Depois, abracadabra... o Grande Nada. Abra o olho. Ponha a barba de molho. Desconfie dos confiantes. Que a história se repete e tudo já aconteceu antes. E o futuro não promete. E os juros vêm sem demora, mora? Borrando o sete. "Tristeza não tem fim; felicidade, sim." Há que se adaptar às mudanças — mais ou menos como as crianças —, antecipar-se aos fatos. Pra cada ato, um desacato. Mas leia antes de assinar o contrato.

Quem se acomoda não faz nada e só repete "Tá foda! Tá foda!". Aí a coisa vira moda. E reclamar, um hábito. Porque ninguém percebe o próprio mau hálito. E a gente adora fingir que não é com a gente. O precipício vindo urgente e a gente feliz que nem num comício. Ouvindo merda e batendo palma. Depois, irmão, quando a sorte te deserda, você vende a alma. Ou o corpo, talvez. Tudo tem sua hora e sua vez. O que antes era "nunca, nem que o mundo caia sobre mim", agora é sempre, facim, facim. Ou, como diz o outro: simples assim. Porque só doi na primeira. É que nem dar a b... Cê relaxa na segunda. Depois, ainda espera pela terceira. Fodido, fodido e meio. E ainda finge que tá no recreio. Não creio...

Porque viver envolve risco; quem não sabe, vire o disco. Mais que existência, é resistência. Por isso dizem que só o forte sobrevive. Se eu sou fraco, vou viver do que já tive. Das glórias passadas, da vista cansada, e ganhando salário como se fosse mesada. E ainda me considerando milionário, rico de saúde (que atitude!). Viver é ir pra guerra desarmado, é escolher um lado, e não ficar deitado em berço esplêndido, cândido. Viver só faz sentido pra quem se atreve; pros demais é treva. Porque pra uns a vida é leve, e noutros cantos neva. A vida assusta porque não é justa. As leis não são pra todos — basta ver quem tá no lodo. Quando o chão é escorregadio, alguém ainda vem e te passa o rodo. E, se você não dá nem um pio, acha que o solo é cama. E que é comédia o drama.

Ninguém disse que era fácil. É que nem esgrimir a última flor do Lácio (fácil é morar num palácio). Argumentar, resistir, lutar, seduzir... tudo tem um preço (até o apreço). Fácil é chorar de barriga cheia. E no frio usar meia — de lã. Fácil é pra quem tem garantido o amanhã. Pra quem tem que labutar, há que rebolar. A vida é uma constante luta, principalmente quando é filha da puta, vida mãe solteira, vida madrasta. E a gente beira a ribanceira, e a gente (é boi e) pasta. Quando o sujeito só pode contar consigo, seu melhor amigo é a inteligência. Que também é uma forma de resistência. Resistir é aguentar a bronca, mas também é quebrar a banca. Não é só suportar o soco, mas saber dar o troco. Não é nem passividade, nem só agressividade; é ter liberdade de escolha — o resto é viver dentro de uma bolha.

Entretanto, além da resistência há a assistência, a benevolência, a clemência, a demência, a experiência, a falência, a gerência, a hortênsia, a inocência, a jurisprudência, a latência (no Ceará, há a latomia), a maledicência, a negligência, a onipotência (né, Deus?), a prepotência (né, presidente?), a quintessência (e a sexta-feira), a regência, a sapiência (e outros sapos), a transparência (que hoje muitos invisíveis usam de forma errada), a urgência, a vivência (e a vidência) e, por último, o Xico Sá e o Zeca Baleiro, que não cabem na rima, mas, como são donos de muitas obras-primas, sendo citados, sob qualquer pretexto, valorizam o texto. Pra terminar, é sempre bom lembrar que "hay que endurecer, pero sin perder la ternura". Assim como há que saber quando obedecer e quando, digamos, ter outra postura. Pois cada ditadura há que se enfrentar com a dita dura.

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PS1: Quem escolheu a palavra foi a querida Helena Tassara. Como seu pedido é uma ordem, restou-me obedecer.

PS2: Trilha sonora: Fátima Guedes, Mordaça (Eduardo GudinPaulo Cesar Pinheiro)


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4 comentários:

  1. Léo, forte o texto. Gostei muito.
    Embora, sempre venha com "mas": não há convicção, a vida não tem receita e acredito que uma indignação, um grito ou uma reação devam ser estratégicas, isto é, elas só servem no lugar e tempo que causam o efeito desejado de, sendo atacado, o que se faz tenha de fato e direito o resultado que prevemos e queremos, pois periga perder-se no ciclo de coisas que se acumulam e nos indignam mais.
    Digo isto através da minha experiência própria. Talvez, para o "meu caso", somente esperar o momento e lugar certo para o contra-ataque vá amenizar minhas mágoas, rancores e muitas vezes ódio - sem que me deixe com estes sentimentos guardados para revisitá-los com frequência senão "naquela oportunidade" à frente, no tempo, em que verei claramente que minha fala tenha a devida valia que tanto quero, frente aos desmontes que a vida tenta nos apresentar com tamanha frequência.
    Adorei a proposta da Helena Tassara a você.
    Bom, o que escrevo é tão-somente um complemento a respeito da minha experiência frente a esta sua vasta visão de resistência, que admiro tanto.
    Parabéns pelo texto.
    Yours
    é.

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    1. Seu(s) complemento(s) é(são) sempre bem-vindo(s), Érico. Em nossos papos já tive a compreensão de tudo isso que você escreveu acima. Claro que a indignação vã e deslocada no tempo e no espaço não leva a nada; mas manter a chama dela acesa é sempre bom pra que no futuro, quando venhamos a nos deparar com situações similares, saibamos o que fazer e não deixemos simplesmente que a vida nos violente.

      Abração,
      レオ。

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  2. Bela reflexão. Muita resistência sem ação vira tolerância ao intoleravel. Ação imatura leva a dissolução do objeto pretendido. Então, seremos capazes de reconhecermos o fato gerador do resultado que queremos? O que mais é preciso? Como pode melhorar?

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    1. Olá, Unknown.

      Boas indagações. Deixo-as no ar, pra que pensemos todos a respeito.

      Abraços,
      レオ。

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