segunda-feira, 18 de julho de 2011

Crônicas Desclassificadas: 17) As mulheres do Japão

Tive o privilégio de viajar ao Japão três vezes, em duas das quais lá me instalei por um período não inferior a três meses. Fui recebido de braços abertos por meus sogros (de quem me considero menos genro que filho) e pela população em geral. Com a curiosidade que me é nata, aprendi um bom número de palavras e expressões japonesas, além de estudar seus três alfabetos (hiragana, katakana e kanji), o que me possibilitou estabelecer conversações básicas com a gente desse peculiar arquipélago.

Quando pisei o solo japonês por vez primeira, senti-me como que atirado dentro de um filme de ficção científica. Tóquio é uma cidade assustadoramente vertical, onde quase não se vê o o horizonte, tantos são os edifícios que realmente arranham o céu. Em contrapartida (estou me referindo a Tóquio), são poucas as construções antigas que sobreviveram a esse massacre da modernização. No entanto, as coisas funcionam, a malha ferroviária abrange toda a cidade, o que permite que o cidadão só use veículo particular se quiser; não se perde tempo em filas de bancos, visto que praticamente tudo pode ser feito via internet (e as pessoas sabem usá-la, obviamente); nas plataformas dos trens, as pessoas esperam pacificamente que as que estão dentro saiam, e estas fazem uma longa fila indiana pra dar espaço nas escadas rolantes àqueles que têm pressa; nas lojas e nos estabelecimentos comerciais em geral somos recebidos (e atendidos) com sorrisos, gentileza e profissionalismo (mesmo depois que pagamos a conta!); a segurança é (quase) total, de forma que se temos fome de madrugada e resolvemos ir a um dos tantos restaurantes ou mercados 24h, deparamo-nos com ciclistas, casais de namorados, idosos passeando com seus cães, alguém fazendo cooper, outros tantos voltando da balada, enfim, dá vontade de morar ali pra sempre. Claro que a saudade do Brasil bate pesado, mas isso vai ficar pra outra crônica.

Em se tratando de educação, então, nem se fala. O professor é chamado de mestre e é tratado (e respeitado) pelos alunos como um sábio, pois é em suas mãos que está a responsabilidade de educar os líderes do futuro. Lá a educação é uma coisa tão séria, que é estimulada pelo governo, pois este sabe que um país grande se faz com profissionais qualificados. E eles são aplicados em tudo a que se dedicam. Por exemplo, só lá nos podemos deparar com uma roda de samba na qual todos os músicos têm à frente partituras! As crianças estudam música na escola desde pequenas, por isso é mais difícil que comprem gato por lebre. Claro, sempre há aqueles que não gostam de estudar, mas a estes resta o trabalho braçal, que, ao contrário daqui, é bem pago. Por quê? Porque, se todos estudam, há falta de mão de obra "barata", o que a torna cara. Ou seja, um lixeiro, um garçom, um pedreiro, enfim, qualquer profissional de uma área que requer menos estudo recebe um salário digno que lhe propicia viver com um mínimo de conforto e sustentar os seus.

Se eu fosse enumerar as boas coisas do Japão, não iria terminar hoje. Mas preciso ser honesto e comentar que os aspectos negativos também não são poucos. Mesmo antes da tragédia de março último, o Japão vinha vivendo uma grande crise que ultrapassava o campo financeiro. Afinal, esta se abateu sobre boa parte do globo e até hoje ainda ecoa Primeiro Mundo afora, como os recentes acontecimentos na Grécia e na Itália nos mostram. Não, a crise japonesa vai um pouco mais além. Diria mesmo se tratar de uma crise existencial. O Japão sempre foi um país de guerreiros, não à toa os samurais são de lá (e a yakuza). Travaram batalhas sanguinolentas e orgulhavam-se até o fim da Segunda Guerra Mundial de nunca terem perdido uma. Ou seja, apesar da reviravolta do século XX que acabou transformando o Japão reconstruído numa das maiores potências do mundo, por aquelas terras o machismo persistiu. Nas ruas sempre foi normal ver o homem caminhando à frente da esposa e dos filhos. Tanto que, inconscientemente, o homem fala grosso e a mulher, fino. É um estereótipo, não soa natural. E os homossexuais sofrem em dobro e têm que manter oculta sua preferência, sob risco de não conseguirem bons empregos. São comportamentos ditados por uma sociedade que acaba construindo seres deturpados, que não podem mostrar a verdadeira face. Por essas e outras muitos japoneses que visitaram o Brasil acabaram dando um jeito de ficar por aqui, fosse por meio do casamento, fosse por meio de uma transferência no trabalho...

E eis que os estrangeiros invadiram o Japão. Começou com os soldados estadunidenses; depois com os representantes de empresas estrangeiras, que lá chegavam pra ensinar sua tecnologia; em seguida vieram brasileiros, chineses e coreanos, estes pra fazer o trabalho "sujo" que ninguém queria fazer; enfim, o fato é que o Japão foi mudando de cara. E as mulheres começaram a vencer o preconceito e se emancipar. Aprenderam a dizer "não" aos machos japoneses e, lentamente, passaram a flertar com muitos ocidentais que lá vivem. Até bem pouco tempo, era impossível ver casais de mãos dadas na rua, beijando-se então nem se fala. Agora as coisas mudaram. E os jovens japoneses precisaram, a duras penas, aprender a se reconstruir. A se ocidentalizar. E o grito de liberdade foi se dando em princípio pela revolução no vestuário, depois por meio dos cortes de cabelo nada ortodoxos representados por uma infinidade de cores, por modelos rasta etc. Até que a revolução chegou no andar de cima, no cérebro.

E aí começou uma nova guerra: a guerra entre as gerações. Com tanta invasão estrangeira mesclando-se a sua cultura, os jovens começaram a querer falar inglês antes mesmo de dominar bem sua própria língua. E os velhos passaram a ter dificuldades pra conversar com seus netos. Vou dar um exemplo bem popular: "leite", este líquido tão imprescindível na maioria das sociedades, em japonês chama-se "gyunyu" (lê-se guiú-niú), ou pelo menos é assim que os mais velhos dizem. Porque pros jovens é "míruku". Sim, do inglês "milk". E assim vai. Quando se trata da escrita, a dificuldade vai mais longe, pois alguns kanjis foram sendo substituídos por palavras estrangeiras, o que torna difícil a leitura pelos jovens de livros antigos. Resumindo, o milenar país do sol nascente vê-se hoje em pleno processo de reconstrução, mas me refiro à reconstrução comportamental. Não dá pra saber o que pode acontecer a médio prazo. Uma coisa que pra nós é natural, como a miscigenação, pra eles ainda é uma aberração. Mas é inevitável. Cada vez mais nascem negrinhos de olhos puxados, ou amarelinhos de olhos claros, ou de cabelos enrolados. E cada vez nascerão mais.

Essa revolução tinha que ter mesmo começado por meio das mulheres, afinal, sempre foi fácil ser homem em qualquer lugar do mundo. E é sempre preferível que tudo continue como está. Ninguém gosta de mudanças, mesmo quando estas são pra melhor. Mas as mudanças chegam, sempre partindo do elo mais fraco. Nisso o Japão copiou o mundo. As mulheres estão tirando as burcas, os quimonos, os vestidos, estão assumindo os cargos de chefia que sempre foram ocupados pelo macho predador, algumas mesmo, como nossa Dilma, estão chegando à presidência de seus países! Já outras aprenderam a não precisar do homem pra nada, assumindo relacionamentos homossexuais, já que o homem nunca entendeu a mulher mesmo, sempre a viu menos como um ser pensante e mais como um objeto de desejo.

Prevejo que o século XXI seja revolucionário nessa questão de sexo frágil. Cada vez mais o homem entra em depressão, frequenta analistas (e não estou falando dos financeiros, refiro-me aos psicanalistas), sofre por ter um salário menor que o da esposa, enfim, o homem de hoje luta pra não se transformar num bebê de calças. Nesse momento, temos que voltar os olhos novamente pro Japão e acompanhar com atenção (e carinho) as mudanças comportamentais pelas quais passa o homem japonês, pois ele foi um dos primeiros atingidos por essa revolução. Temos que aprender com os erros e acertos deles, pois a nova mulher está chegando e precisamos estar preparados pra assumir a condição de novos homens.

E o esporte, que sempre foi vitrine de tendências, mostrou-nos no domingo do dia 17 de julho de 2011, que a revolução está a todo vapor. Em 2002, quando o Brasil venceu a Copa do Mundo sediada pelo Japão (e pela Coreia do Sul), visitei aquele país pela primeira vez. Bastava abrir a boca e dizer que era brasileiro pra ser tratado como um rei. Em determinada ocasião, visitei uma escola e fui praticamente obrigado por um professor de educação física a participar de um rachão entre alunos. Detalhe: meninos e meninas estavam misturados nos dois times. Após aguerrida disputa pra ver que time ia ter o privilégio de ver este "craque" a seu serviço, começou o jogo. Senti-me Pelé. A cada drible, a cada toque, a cada chute a gol, praticamente todos paravam pra me aplaudir. Mandei um chute de trivela na trave e o mundo quase veio abaixo. Pena que cinco minutos depois minha carreira de jogador de futebol no Japão teve lamentável fim: tive que ser substituído pra não sofrer um ataque fulminante em campo, tamanha era minha falta de condicionamento físico. Bem, dei esse exemplo apenas pra ilustrar como as coisas mudaram tanto em tão pouco tempo. Mas um detalhe me chamou a atenção naquele dia: a velocidade e a aplicação dos japoneses. Parecia que só eu estava preocupado em dar show. Pra eles o gol era realmente uma meta!

E a meta, surpreendentemente, foi alcançada nesse dia 17. E pelas mulheres! Japonesas! Enquanto os novos-ricos Neymar, Pato, Ganso, Robinho & cia ltda. perdiam finalmente uma guerra contra o ainda pobre Paraguai, as japonesas mostravam brio e poder de superação frente às gigantes dos EUA, num verdadeiro Davi x Golias de saias, aliás, de calção. Foi emocionante ver essas mulheres, vindas de um país que há quatro meses estava destruído, receberem o troféu de melhores do mundo. Elas, e não eles! Esse resultado reveste-se de simbolismo e merece atenções não só de comentaristas esportivos. Afinal, elas mostraram a seus homens (e aos homens das outras) a que vieram. Embora também assustado, fico feliz, pois sempre estive do lado delas em geral, além de estar ao lado de uma delas em particular.

6 comentários:

  1. Sim...foi emocionante vê-las chegar ao topo mundial! Fiquei muito, mas muito feliz!!!
    Pude enviar a meus amigos japoneses e nisseis que residem no Japão, mensagem de carinho e votos de alegria.
    Ao mesmo tempo em que pensava em nosso time, tristemente desclassificado com um acontecimento inédito no futebol brasileiro....
    São as trapaças da sorte...

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  2. É, Irinéa. Pena que, no nosso caso, haja mais trapaças que sorte. E Ricardo Teixeira pairando acima do bem e do mal, um rei "imexível" em plena democracia...

    Beijão do
    Léo.

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  3. Muito Bom Leo. Adorei o texto!

    Izabel

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  4. Grato pela visita e pelas palavras, Izabel.

    Beijo do
    Léo.

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  5. Parabéns pelo texto Léo, acho que o Japão de hoje esta sofrendo grandes transformações culturais, sociais, sexuais... etc.
    Enfim uma verdadeira revolução de costumes e valores para uma nação que foi milenarmente uma das mais fechadas do planeta.
    Alguma coisa esta fora da ordem ... um grande abraço Léo

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  6. Salve, prof. Antônio Carlos! Folgo em lê-lo!

    Abração do
    Léo.

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