Meu nome é A, trabalhei durante muitos anos como repórter do jornal B, cobrindo assuntos locais referentes a esta cidade, onde nasci, cresci e vivi até há pouco. Hoje soube de uma notícia que me emocionou bastante e, por conta disso, resolvi escrever algumas linhas, como forma de homenagem, desabafo ou seja lá o que for. Adianto que não se trata de uma matéria paga que amanhã vai sair com destaque no B, muito pelo contrário. Arrisco-me mesmo a dizer que são as primeiras linhas que escrevo nos últimos não sei quantos anos que saem de meu coração, ou, para parecer menos piegas, que partem de minha própria vontade, que, para espanto meu, sim, ainda existe, apesar de viver sufocada em alguma recôndita parte de meu ser.
Pois bem, começo pelo começo. Há cerca de dois anos fui chamado para escrever uma matéria a respeito de um peculiar morador de rua que possuía uma biblioteca. Sim, senhor! Uma biblioteca! Mas não era uma biblioteca qualquer, como vocês constatarão dentro em breve. Bem, o sujeito chamava-se C e morava embaixo de um viaduto. Na realidade, não fosse o fato de estar localizado embaixo do tal viaduto, poder-se-ia dizer que era um lugar bastante agradável. C vivia até com certo conforto, com simplicidade, mas com conforto. Não se parecia em nada com um morador de rua. Era asseado; vestia-se com esmero, embora as roupas fossem evidentemente de segunda mão; mantinha os cabelos grisalhos cortados e a barba aparada; usava uns óculos de aro preto que lhe caíam muito bem ("um homem por trás dos óculos, como diria Drummond"); e, com relação a sua... moradia, havia uma mesa, duas cadeiras, um sofá, uma cama com lençóis e tudo, um guarda-roupa, um fogão portátil de duas bocas, um armário que, descobri depois, servia também para guardar seus vinhos... e uma estante vistosa, com razoável quantidade de livros. Ah, não possuía nenhum aparelho eletrônico. Visitei-o certo fim de tarde, apresentei-me, disse a que vinha, e ele se deixou entrevistar. Apertei o rec de meu gravadorzinho e entrei numa viagem das mais interessantes. Por conta da falta de espaço do jornal, tive que resumir a entrevista, com minhas próprias palavras. Como aqui o espaço é ilimitado, copio-a na íntegra:
A: Preparado, sr. C? Podemos começar?
C: Sim, claro. Ah, mas que sujeito mais mal-educado eu sou. Nem te ofereci uma bebida. Está esfriando, o sr. me acompanha num vinho?
A: Sim, mas... Vinho? O sr. tem aí um vinho?
C: Meu caro, a casa é simples, mas o coração é grande. Só vou ficar devendo as taças. Mas esse é um bom vinho, é argentino. De Mendoza. Malbec. Até nesse copo descartável vai descer bem. Perdoe o mau jeito. Uso copos e pratos descartáveis, por causa da escassez de água. Você me entende, né?
A: Claro, mas... Desculpe voltar ao tema, mas... O sr. tem vinho aqui? Nossa, acho que estou um tanto embasbacado... Desculpe...
C: Não tem por que se desculpar, meu caro sr. A. Realmente encontrar uma garrafa de vinho argentino na casa de um sem-teto não é lá algo muito comum. Explico: o fato é que, por causa da humilde biblioteca que tenho aqui, fiz muitos amigos. Alguns deles até possuidores de certos recursos. De forma que, como o sr. pode notar, tenho algumas regalias. Tim-tim.
AC: Tim-tim. Hummm! Muito bom o vinho!
C: Bondade sua. Comecemos?
A: Claro, comecemos. Bem, sr. C...
C: Pode me chamar apenas de C. Aqui em casa não carecemos de formalidades. Posso te chamar de A?
A: Claro, como quiser. Bem, sr. C, quero dizer, C, você poderia contar em breves palavras de onde é e como veio parar aqui, debaixo de um viaduto?
C: Meu caro A, eu sou, fui e sempre serei um sonhador. Nasci aqui mesmo nessa cidade e nunca viajei a parte alguma. Conheço o mundo e domino razoavelmente bem duas ou três línguas por causa do amor aos livros. Desde criança eles têm sido meus melhores companheiros. Meu maior vício sempre foi a aquisição desses amiguinhos de papel. Veja, são mágicos! Quando me casei, já possuía uma considerável biblioteca, que deu o maior trabalho pra ser transportada pra casa onde fui morar com D, minha então esposa. Explico: sou de família pobre, ao contrário de D, filha de gente de posses. Tanto que nos casamos com separação de bens. Como seu pai nos deu um apartamento como presente de casamento, contratei um caminhão de mudança pra levar o pouco que eu tinha, que, por causa da biblioteca, nem era tão pouco assim. Ah, que descuido o meu! Desculpe, sempre fui assim meio desligado. Isso irritava muito minha mulher. A degustação de um bom vinho melhora consideravelmente quando acompanhada de algo pra comer. Infelizmente não tenho geladeira, então tenho que adequar minha alimentação. Mas tenho aqui umas bolachas de água e sal que vêm a calhar com um patê que por acaso também deve estar por aqui em algum lugar... Deixe-me ver... Ah, achei!
A: Obrigado. Realmente não precisava. Mas continue. O sr... você estava falando de sua mudança.
C: Sim, claro. Bem, os primeiros anos foram felizes, como em geral ocorre em qualquer matrimônio. Mas o tempo foi passando e as incompatibilidades, que no começo eram quase imperceptíveis, foram aparecendo. Fomos percebendo que, fora o sexo, não tínhamos absolutamente nada em comum. Foi uma constatação muito triste pra ambos. Ela adorava fazer compras, sair à noite, ir a festas... Eu queria apenas ficar em paz com meus livros. Admito meu egoísmo. Acho que nasci pra ser só. Se ao menos tivéssemos tido filhos, a coisa poderia ir se arranjando, mas, pra acabar de completar, descobri que eu sou estéril. E o sonho de minha mulher sempre foi a maternidade... Então, de comum acordo, resolvemos nos separar. Deixei tudo pra ela e trouxe pra cá apenas minha biblioteca. O restante dos móveis que tenho aqui hoje fui ganhando aos poucos.
A: C, uma informação ficou faltando. Sua profissão.
C: Ah, sim! Claro. A profissão. Minha profissão hoje é... amante de livros. Mas já fui professor universitário. Dei durante muitos anos aulas de literatura, obviamente. Mas, quando me separei, aliás, pouco antes da separação, vinha cultivando um segundo vício: o álcool. Com a separação, esse vício quase superou o primeiro. Mas eu ocultei uma informação importante: antes do fim de meu casamento, já por conta do álcool e da crise matrimonial, fui demitido.
A: Puxa! Sinto muito! Realmente é...
C: Não, não! Não sinta! Na realidade, ouso dizer que sou muito mais feliz hoje do que já fui antes em toda minha vida.
A: Como... como assim? O sr... digo, você tinha uma bela casa, família, um bom emprego...
C: A, meu jovem A! Eu vivia num mundo de aparências. A sociedade nos aprisiona. Somos todos escravos das convenções, e quando digo convenções quero dizer tudo o que diz respeito aos bons costumes, etiqueta, responsabilidades... Somos bonecos manipulados por uma ordem maior que nos impede de mostrar o que realmente somos em nosso íntimo. Eu, por exemplo, sempre quis ser escritor. Mas me faltava talento. Como precisava respirar esse ar literário, sentir-me próximo dele de alguma forma, me tornei professor. Mas também não era feliz. Lecionava pra jovens que não se interessavam pelas aulas que eu, apaixonadamente, dava. Eles queriam apenas o diploma e as cifras de uma promissora carreira. Da mesma forma que minha mulher queria encher a casa de filhos. Com o fim do casamento, tomei uma atitude drástica e resolvi ser livre. Foi assim que vim parar aqui.
A: Uau! Que história! Mas... E seus parentes? Pais, irmãos, tios... Você podia ter voltado pra eles...
C: Meu jovem A, com o tempo, aprendemos que viver significa seguir em frente. Voltar é um retrocesso ao qual eu não me permito. Aqui tenho por parentes Dom Quixote, Ulisses, Bentinho, Jean Valjean, Riobaldo, os Buendías, os Karamázov... Continuo?
A: Não, não precisa. Compreendo. Mas, a partir de então, como você sobreviveu?
C: Não digo que tudo foi um mar de rosas. A liberdade é algo assustador, só sabe quem é livre. Minha saída foi senti-la na carne. Explico: transformei esse meu humilde cantinho numa espécie de centro cultural a céu aberto. Quer dizer, não exatamente a céu aberto, pois, em cima de minha cabeça, em vez de aves voam automóveis. He he! Mas não faz diferença. O que aconteceu foi que meus livros, que sempre tinham sido meus, passaram a ser de quem os queria. De quem tinha fome deles. E assim, crianças, jovens, adultos, velhos, gente de toda classe social, de todos os credos, raças e sexo passou a me visitar com fins literários. Alguns me pediam dicas, outros vinham sabendo exatamente o que queriam. Com o tempo, me tornei muito popular. Alguns políticos chegaram a me visitar, com propostas que eram boas principalmente pra eles. Também alguns empresários vieram e quiseram me fazer responsável por um verdadeiro centro cultural, num outro endereço... Mas eu disse não a tudo e a todos. Se tivesse aceitado, teria voltado a ser prisioneiro.
A: C, reparando bem, sua biblioteca até que não é das maiores. Afinal, por que tanto interesse?
C: Ah, realmente essa safra é muito boa. Eu adoro vinho! Abandonei a cachaça, mas continuo um amante de vinhos. Aliás, vinho e literatura têm tudo a ver, não acha? Bem, mas continuemos. O fato é que algumas pessoas que aparentemente vinham com as melhores intenções começaram a me furtar livros. Sim, porque eu os emprestava. E sem nenhum controle. Alguns, percebi depois, eram donos de sebos e me subtraíam pra enriquecer seu negócio. Dessa forma, perdi algumas preciosidades. Menos mal que já tinha lido todos. He he! Mas resolvi tomar uma atitude. Fiquei mais severo. E, pra proteger a mim e às pessoas que me frequentam, tive a ideia de, em vez de emprestar livros, trocá-los. Sim, trocá-los. Explico: há aqueles que vêm me visitar, escolhem seus livros e leem aqui mesmo, marcam a página em que pararam e voltam. E há aqueles que preferem levar os livros "por empréstimo". Com relação aos primeiros, não fiz nada. Continuam vindo. Já no caso dos segundos, só deixo que levem algum livro se, em troca, me trouxerem outro. É muito educativo, pois, como já tinha lido todos os que possuía, comecei a ter a oportunidade de novas leituras. Só aconteceu um problema: meus Dostoiévskis, Machados, Borges, Joyces, Nerudas, Dumas, Pessoas etc. foram paulatinamente sendo trocados por Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Harry Potter, livros de vampiros, autoajuda... He he! Mas eu não me importo, não. Se eu vivesse ainda em meu antigo lar, podia pensar que estou sendo roubado. Mas aqui, esse "roubo" me faz feliz. Afinal, de nada vale um bom livro na estante. Como diz uma canção, "lugar de poesia é na calçada". No mais, de vez em quando até que é relaxante ler algo mais leve. Sou da seguinte opinião: livro é livro. É melhor um leitor de literatura considerada menor do que nenhum leitor. A literatura é uma grande escadaria, e cada degrau tem sua importância.
A: Que bela história, C! E assim que essas pessoas que te visitam também te, digamos, sustentam? Quero dizer, você não parece o tipo de pessoa que sai por aí catando papelão, latinhas, ferro velho...
C: A, meu jovem A! Um dos livros que também li foi a Bíblia. Apesar de eu não ter nenhuma religião, acredito em Deus, e a Bíblia segue sendo dos livros que mais gosto de reler. Há muitos ensinamentos ali. Salomão é de uma inteligência ímpar, sem falar em Noé, Davi, Moisés, Abraão, José... E Jesus? Que cara fantástico! Sabe que tem uma passagem do Novo Testamento que me tranquiliza? Jesus, em determinada situação, disse que as aves não trabalham, mas Deus não as deixa passar fome. E, se Deus cuida das aves, por que não irá cuidar de nós, seus filhos?
A: C, todo esse discurso é muito tocante, mas você há de convir que é um tanto impraticável, principalmente nos dias atuais, de tanta competitividade, você não acha? Emendo a pergunta em outra: você é comunista?
C: Meu caro A, eu não acredito nos "ismos". Acredito em liberdade. É mais fácil ser comunista do que ser livre. É mais fácil ser escravo, funcionário, marido, empresário, ladrão, padre, presidente da república, escritor, jornalista, professor de literatura, alcoólatra... do que ser livre. Liberdade é algo que não se pode explicar com palavras, pois quem nunca foi livre, por mais sábio que seja, não possui a menor capacidade de entendê-la. A liberdade consiste em confiar seus dias ao porvir, sem medo. Repito: sem medo! Quem você conhece que não tem medo? A, eu te garanto uma coisa: eu não tenho medo. (pausa) Nossa! Como acabou rápido esse vinho! Os prazeres da vida são realmente fugazes! Mas, felizmente, tenho outro. Se quiser, abro. Os vinhos combinam com um bom papo.
A: Não, não. Por favor! Já tomei demais seu tempo. E, se eu tomar outro, não estarei em condições de chegar em casa e concluir a matéria. Queria fazer ainda uma última pergunta. Vejo que você é uma pessoa que preza a higiene pessoal. Como... como é que?...
C: Meu amigo A, a poucas quadras daqui mora uma psicóloga que tem um interesse especial por meu caso. E confidencio que minha pessoa não lhe cai de todo mal, e a recíproca é verdadeira, se é que você me entende...
A: Hummm, entendi. Claro... Bem, C, já está ficando tarde e eu preciso realmente ir. Mas, se você me permitir, gostaria de voltar outras vezes, pra aprofundar alguns pontos... Ou quem sabe tomar algum livro emprestado.
C: Mi casa es tu casa.
A matéria obteve grande repercussão. E acabei me tornando amigo de C. Sempre arranjava tempo de voltar ali. Algumas vezes era eu quem lhe levava um bom vinho e ficava de papo com ele até altas horas. Outras vezes lhe levava roupas, sapatos, meias... Assim, tornei-me também um de seus muitos mantenedores. Ele vivia na maior segurança, parecia um desses chefões do tráfico que comandam tudo mesmo de dentro da prisão. Havia mesmo um policial fã de Raymond Chandler e Rubem Fonseca que sempre ia ali e tratava de manter os maus elementos longe. Mas aí o jornal E, do Estado de F, me fez uma proposta irrecusável, financeiramente falando, e acabei me mudando para lá, o que me fez perder por completo o contato com ele. A verdade mesmo é que os acontecimentos do cotidiano me fizeram esquecê-lo por completo. Até que entrei de férias e resolvi vir visitar meus pais. Aqui chegando, deu-me aquele estalo e lembrei-me de ir visitar meu velho amigo. Chegando lá, fiquei chocado. Havia várias famílias morando ali, mas não encontrei nem sinal de C. Perguntei a respeito dele aos moradores, mas ninguém soube me responder. A impressão que tive foi de que tudo fora um sonho e que ele nunca existira. Resolvi então dar um pulo até a redação do B, rever os antigos companheiros e aproveitar para sondar acerca de C. Lá, recebi a trágica notícia de que C morrera num incêndio pelo que tudo indicava criminoso. Pesquisei edições da época do ocorrido, li depoimentos dos frequentadores, vi fotos chocantes, no entanto, apesar dos evidentes vestígios criminosos encontrados pela polícia, nunca se descobriu o culpado (ou os culpados). Foi um grande mistério, principalmente porque, segundo constava, C não tinha inimigos. Posicionar-se acima de inimizades pode ser algo muito perigoso...
Voltei à cena do crime e só então notei o negrume das colunas chamuscadas ainda visíveis (lembrei-me de que C às vezes lia de noite à luz de velas, e ficou a dúvida: de re pente, ele podia ter adormecido...). Havia novas famílias no local, mas nenhum vestígio de livros. Lembrei-me do policial fã de Chandler e Fonseca e fiquei me perguntando se ele teria participado das investigações. Voltei a pé para a casa de meus pais, arrasado, pensando na vida e no legado daquele Quixote moderno. Quando entrei em meu antigo quarto, atirei-me de roupa e sapatos na cama que fora minha e chorei como havia muito não fazia. Os soluços saíram frouxos das entranhas. De repente, não sei por que, lembrei-me de um livro que ele me dera de presente pouco antes de minha partida e que, na pressa, eu não tinha levado. C me falara muito a respeito desse livro. Era um de seus favoritos. Pelo que eu me lembrava, tratava-se de um romance de ficção científica de Ray Bradbury ambientado num futuro incerto no qual os livros eram proibidos e o trabalho dos bombeiros consistia em encontrá-los e incendiá-los. Procurei-o entre minhas coisas até que o encontrei. Folheando-o, deparei-me com a única foto em que aparecemos juntos, tirada no dia da entrevista. Estamos sorridentes, abraçados, parecendo os dois velhos amigos que ainda nos viríamos a tornar. Devolvi a foto ao livro, que ainda não li. Servir-me-á de marcador de página. Ah, seu título: Fahrenheit 451.
***
Genial, Léo! Muito bom mesmo!
ResponderExcluirFiquei aqui pensando se você não conheceu mesmo um C. Hehehehe!
Beijão!
Oi, Danny! Você não é a primeira pessoa que me pergunta isso. Bom sinal, né? Sinal de que a personagem é crível. Vou dar a mesma resposta: "Bem, o C nasceu de meu miolo mole, mas não duvido nada que eu ou você encontremos outros Cs por aí."
ResponderExcluirBeijão do
L.
Vi este artigo e lembrei-me da sua crônica...
ResponderExcluirhttp://www1.folha.uol.com.br/colunas/gilbertodimenstein/985969-morador-de-rua-ensina-respeit
o-ao-livro.shtml
Pô, gente! Vamos assinar, né?
ResponderExcluirAnônimo, meu caro, fico feliz em me saber lembrado em artigo tão esperançoso. Ainda bem que a personagem real teve melhor sorte.
Abração do
Léo.