terça-feira, 25 de outubro de 2011

Crônicas Desclassificadas: 24) Aqueles Olhos Verdes

Tinha sido um dia terrível. Aguentara desaforos calado pela simples razão de que precisava do dinheiro (pouco, é verdade) que aquele emprego lhe proporcionava, fora humilde, subserviente, fizera-se de imbecil e admitira estar errado mesmo sabendo que estava certíssimo. Mas não era o único, era apenas mais um. E em casa havia mais duas bocas esperando-o. Aliás, esperando seu parco ordenado. Um ano antes já não estava aguentando mais e planejara mesmo chutar o balde e mandar uma banana pra todos, mas a chegada da pequena mudara seus planos.

Agora estava ali, na plataforma da estação Santa Cruz do metrô, espremido entre uma multidão de estranhos, novamente mais um, mais uma vida sem sentido. E, pra acabar de completar, como estava com a conta bancária no vermelho e pedira ao patrão que lhe pagasse em dinheiro, lá ia ele enfrentar a boiada com todo seu soldo no bolso. Chegou o trem. Menos entrou que "foi entrado". Cotovelos e ombros salientes fizeram-no ter ingresso ao inferno de dantes... e durante... e depois...

O apito silvou, as portas se fecharam, o ar era escasso pra tantos narizes e bocas, sua cabeça rodava. Sentia que podia desmaiar ali mesmo. Só não o fez porque não devia. Foi então que percebeu que dois olhos o fitavam. Primeiro, viu apenas os olhos. Eram verdes, mas não eram bonitos. Na verdade, estavam mais pra gris que pra verdes. E a parte que devia ser branca daqueles olhos estava avermelhada, injetada de sangue. Então reajustou sua vista, afastou o foco e reparou naquele rosto, igualmente vermelho, sorridente. Os dentes eram amarelos. Os fiapos de barba mal feita eram brancos. Os cabelos, curtos, eram grisalhos e encaracolados. A vermelhidão descia pelo pescoço e terminava num peito repleto de uma espécie de floresta grisalha que se deixava ver pelos botões abertos da camisa surrada, cor de burro quando foge.

Sentiu náuseas. A vontade de desmaiar cedera vez à de vomitar. Não teve coragem de encarar novamente aqueles olhos. Em vez disso, de forma um tanto brutal abriu espaço por entre os passageiros e se dirigiu à extremidade oposta do vagão. Achou um canto microscópico e ajeitou-se, ou melhor, espremeu-se ali. Fechou os olhos e a tontura voltou. Abriu-os com violência como se despertasse de um pesadelo. Virou, sem querer, o rosto na direção do olhar predador, e lá estava ele, fitando-o. Ainda. O riso tinha algo de demente. Seria demente a palavra? Parecia mais emanar uma suja e pervertida libidinosidade.

Quando as portas se abriram na estação Vila Mariana, correu como uma virgem e mudou de vagão. Pareceram horas aqueles sufocantes minutos. Em vez de descer na estação Ana Rosa, onde fazia normalmente baldeação, deixou-se ficar até a estação Paraíso. Saiu do vagão apalpando o bolso dianteiro esquerdo da calça. O dinheiro ainda estava lá. Respirou fundo e esboçou um sorriso, como quem sai do cinema após ver um daqueles horripilantes filmes de terror. Desceu a escada rolante ainda com um sorriso imbecil no rosto.

Havia menos gente na plataforma, então entrou com mais facilidade no vagão do trem que o levaria à estação Consolação. Quando as portas se fecharam, ali estava o sujeito, olhando-o com selvagem alegria, como se soubesse que o iria reencontrar. Por pouco não soltou um grito. Quando se deu conta da situação e reparou em sua covarde atitude, encheu-se de coragem e fitou o tipo com agressividade, lançando-lhe o olhar mais duro de que era capaz. O outro nem se abalou e manteve o olhar... E o sorriso. Da boca aberta parecia que a qualquer momento iria escorrer uma baba, como da boca de cães raivosos. Pensou em ir até ele e lhe dizer uns desaforos, mas conteve os ímpetos.

Quando as portas se abriram na estação Brigadeiro, suas pernas não tiveram forças pra se mover. Sentiu um gosto de sangue na boca. Sem se dar conta, baixou a vista e reparou que o sujeito estava, digamos, armado. Estação Trianon-Masp. O sujeito levantou-se, ainda sem dele tirar os olhos. Mas não saiu. Estação Consolação. Saiu ele em disparada e nem quis saber se era longa a escadaria. Preferiu-a a encarar a fila da escada rolante. Quase chegando no alto, olhou pra trás e pôde ver aquele rosto monstruoso fitando-o da escada rolante.

Continuou correndo até a rua Augusta. Alguns quarteirões abaixo, viu-se entrando num boteco e pedindo uma cachaça. Tomou-a de um gole só. Pediu outra. Com idêntico gesto esvaziou o segundo copo. Pediu uma cerveja. Sentou-se numa mesa cuja janela dava pra rua. Era sexta-feira. Rua e bares estavam cheios de gente de todas as tribos. Consultou o relógio de pulso. 20h30. De repente, viu o sujeito caminhando pela calçada, vindo em sua direção. Ficou catatônico. Sentiu a vista escurecer, o corpo fraquejar... Se estivesse de pé certamente teria desabado. Mas, não... Não era ele! Sentiu um alívio do tamanho do mundo e virou de um gole a cerveja que havia no copo.

Foi então que reparou numa morena com pouca roupa e ar vulgar que bebia algo sentada num banco em frente ao balcão. Sorriu-lhe e ela lhe retribuiu o sorriso. Sentia-se confiante, renovado. Analisou-a lentamente: era um pedaço de morena, alta, magra, cabelos negros presos tipo rabo de cavalo, seios do tamanho certo como que querendo saltar do generoso decote, as pernas eram rijas, as coxas pareciam duas labaredas de fogo saindo de uma microssaia vermelha, os lábios carnudos (cuja língua passeava por eles de um lado pro outro) lembravam os de Angelina Jolie... Só por último reparou em seus olhos. Eram terrivelmente verdes.

***

Chegou em casa na ponta dos pés, pra não fazer barulho. Gastou mesmo preciosos minutos tentando fazer a chave, que misteriosamente crescera, caber na fechadura. A cabeça lhe doía tanto que por pouco não a arrancava do pescoço. O relógio deu 4h da manhã. Apalpou o bolso dianteiro direito da calça. O celular estava lá. Desligado. Apalpou o  esquerdo. O dinheiro não estava lá. Nem nos bolsos traseiros, muito menos na carteira. Às escuras se dirigiu, às apalpadelas, rumo ao banheiro, sentindo o rosto completamente banhado de suor. Ainda no escuro fechou a porta. Só então acendeu a luz. Ligou a torneira e lavou asperamente o rosto, esfregando-lhe bastante sabão, como se com isso pudesse extrair dele alguma mancha que não fora convidada. De um puxão pegou a toalha e com igual aspereza secou o rosto. Mirou o espelho. Lá estava ele a encará-lo. O mesmo rosto e o mesmo sorriso libidinoso do sujeito que horas antes o fitara no metrô. E aqueles olhos... ah, aqueles olhos... verdes!

7 comentários:

  1. Só tô vendo agora o rosto do Anthony Hopkins na capa de um dos filmes recentes que vi na locadora, no filme do padre exorcista... Olha aqui a foto

    http://pt-br.paperblog.com/anthony-hopkins-e-alice-braga-exorcizam-demonios-em-the-rite--61097/

    Muito bacana o conto, eletrizante.

    Veleiro

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  2. Muito legal, Léo. Eletrizante...
    abraço,
    Denilson

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  3. Com um olhar cinematográfico vemos aqui um roteiro explícito e a liçao de que um olhar pode pode ser perigoso ao ponto de te deixar algúem desatento...

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  4. Velerim: Assustadora a foto do Hopkins, hem? Valeu ter curtido.

    Denílson: Obrigadaço!

    Marta: Sim, você acertou em cheio! Inclusive já havia comentado sobre este conto com um amigo que tá dando os primeiros passos como roteirista. Esperemos...

    Beijos do
    Léo.

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  5. Léo:

    Muito bom. Gostei. Estou terminando agora, comecei meio-dia. Brincadeira.
    Valeu.
    Parabéns!!!
    Para vc que escreveu e seus leitores relaxarem, deixo link de um texto que acabei de escrever: 180ª oposto (ou opostos?, acho que é opostos).

    http://colunistas.ig.com.br/bocanotrombone/2011/10/27/tio-sukita/

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  6. Seu blog, me manda um recado:
    "seu comentário estará disponível depois de ser aprovado"
    E eu mando outro para você:
    Léo, não me censure (risoso)

    Aproveitando, ouvi A Kana no MP3 que João e Raul fizeram para mim cantando aquela música que ela vai ao Baile. Já conhecia. Mto boa mesmo. Parabéns!!!

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  7. Paulinho: De uns tempos pra cá alguns desocupados começaram a escrever comentários de baixo calão por aqui. Dessa forma, a única opção que me restou foi moderar os comentários, no intuito de que eles fossem levar seus desforos juvenis pra outra freguesia.

    Sobre a Kana, creio que se trata do "Bye Bye Japão", certo?

    E, por último, vou lá ler seu texto. Mas não entendi o que você quis dizer com os 180°. Seria que seu texto vai 180° graus em outra direção?

    Abraço do
    Léo.

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