sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Crônicas Desclassificadas: 28) De Natal e suicidas

Adolescente, tímido e cheio de complexos, flertei ligeiramente com o suicídio. Digo ligeiramente porque, covarde como sempre fui, não pude chegar às vias de fato. Conformei-me com o seguinte paliativo: eu teria a vida inteira pra resolver meus "grilos" e, se em algum momento esta (a vida) me enchesse o saco, sempre haveria a possibilidade do suicídio pra me livrar do sofrimento. O tempo passou, cresci (não muito - nos dois sentidos) e afastei por completo tal ideia de minha mente. Preferi ocupá-la com drogas mais inofensivas. Contudo, na condição de tema, o suicídio sempre me pareceu intrigante.


Há alguns dias soube que uma pessoa muito próxima de minha esposa se suicidara. Fiquei, obviamente, chocado, sobretudo porque a pessoa em questão sempre me pareceu, senão alegre, ao menos tranquila. Mas talvez seja esta a questão. Quem quer se suicidar não manda recado. Só que, no caso desse senhor (sim, trata-se de um homem), seu ato, a meu ver, teve mais de crueldade (e, por que não dizer?, de covardia) que de qualquer outra coisa. Mas vamos por partes.

Por respeito aos envolvidos, contarei a história sem citar nomes. Sei que é Natal, jingle bellsjingle bells, mas de votos de felicidades o facebook e as caixas de mensagens de todos os leitores certamente estarão repletas, então, creio eu ser mais humano nessa época contar um pouco a respeito dos que não suportaram mais...

Pois bem, como a maioria de vocês sabe, minha esposa é japonesa. O que vocês não sabem é que, tendo ela vindo ao Brasil pra estudar, na época do nascimento do Real, e como este estivesse equiparado ao dólar (ou seja, R$ 1 = U$ 1), os (não tão) parcos ienes da coitada se evaporaram num piscar de olhos puxados. Esperta, como em geral o são os nipônicos, perambulou pelo bairro da Liberdade até achar trabalho de garçonete num restaurante japonês. Garçonete bilingue, deixemos claro.

Ela acabou me conhecendo, casamo-nos, e este, que deveria ser um trabalho provisório, acabou durando quatro anos (!), tempo em que ela desenvolveu laços fortes de amizade com os donos do restaurante, a quem acabou por considerar seus “pais brasileiros. O tempo passou e ela conseguiu trabalho de professora de música em uma escola japonesa. Contudo, nunca paramos de frequentar o restaurante que lhe possibilitou continuar os estudos e permanecer no Brasil.


O restaurante em questão teve seus tempos áureos, mas, nos últimos anos, vinha enfrentando vários problemas financeiros. A Liberdade, aos poucos, deixava de ser um bairro japonês pra se transformar num bairro oriental, com a disseminação de coreanos e, sobretudo, chineses. Não sei se vocês sabem, mas durante séculos o Japão viveu terríveis guerras contra chineses e coreanos, o que explica em parte a fuga da clientela japonesa dos restaurantes japoneses, com a chegada de seus vizinhos orientais.

E eis que chegou o ano da graça (graça?) de 2011 e, com ele, uma devastadora crise, que se complicou ainda mais com a conhecida tragédia que se abateu sobre o Japão no começo deste ano. Não foram poucos os restaurantes japoneses que fecharam no bairro da Liberdade, que, sem que déssemos por isso, transformava-se num bairro chinês. Os produtos made in Japan escasseavam, e, por mais que os japoneses sejam espertos, a troca dos originais pelos genéricos não agradou aos exigentes clientes. Alguns dias antes de minhas férias, visitei, junto com minha esposa, o restaurante que fora praticamente sua casa durante quatro anos. Deu dó de ver a situação: quase nenhum cliente, funcionários de braços cruzados, e toda aquela beleza, digna de filme de Kurosawa, praticamente jogada às traças.

O japonês é, em geral, um cidadão honrado e cumpridor das leis. Imagine quanta coisa deve ter passado pela cabeça do dono desse restaurante, vendo aproximar-se o fim do ano, com décimo-terceiro e tantos gastos mais com que teria que arcar em relação a seus funcionários. Todas as vezes que vi o dono desse restaurante foi com um sorriso nos lábios. Quando o expediente se encerrava, sentava-se tranquila e gostosamente a beber uma cerveja gelada junto com a esposa, numa atitude bem zen. Não consigo até agora vislumbrá-lo dando um nó numa corda e levando-a ao pescoço antes de chutar um banquinho qualquer e dar adeus à vida. Deixando uma viúva sem filhos (e sem falar português) tendo que arcar com os prejuízos do marido...

Tenho uns quatro ou cinco amigos que estiveram em vias de se suicidar, a maioria deles envolvida com música, esta que é, ao mesmo tempo, veneno e antídoto. Acabaram optando por extrair sangue de seus versos. Este japonês, ao contrário, lidava com sushis, sashimis, lamens, yakisobas... Em vez de fazer uma canção, preferiu se jogar no abismo do desconhecido... Lembrei-me de um não menos cruel poema de Fernando Pessoa com o qual, na falta de desfecho melhor pra estas mal-traçadas, presenteio-lhes, na pior das hipóteses pra que, na dúvida, optem por preferir “a morte em literatura”: 


Se te Queres Matar
Por Álvaro de Campos (pseudônimo de Fernando Pessoa)

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, 
Se ousasse matar-me, também me mataria... 
Ah, se ousares, ousa! 
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas 
A que chamamos o mundo? 
A cinematografia das horas representadas 
Por atores de convenções e poses determinadas, 
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim? 
De que te serve o teu mundo interior que desconheces? 
Talvez, matando-te, o conheças finalmente... 
Talvez, acabando, comeces... 
E, de qualquer forma, se te cansa seres, 
Ah, cansa-te nobremente, 
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, 
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó, sombra fútil chamada gente! 
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... 
Sem ti correrá tudo sem ti. 
Talvez seja pior para outros existires que matares-te... 
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado 
De que te chorem? 
Descansa: pouco te chorarão... 
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, 
Quando não são de coisas nossas, 
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, 
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda 
Do mistério e da falta da tua vida falada... 
Depois o horror do caixão visível e material, 
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. 
Depois, a família a velar, inconsolável e contando anedotas, 
Lamentando a pena de teres morrido, 
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação, 
Tu, verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... 
Muito mais morto aqui que calculas, 
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois, a trágica retirada para o jazigo ou a cova, 
E depois o princípio da morte da tua memória. 
Há primeiro em todos um alívio 
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... 
Depois, a conversa aligeira-se quotidianamente, 
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste. 
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: 
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste; 
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. 
Duas vezes no ano pensam em ti. 
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, 
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... 
Se queres matar-te, mata-te... 
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!... 
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera 
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? 
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? 
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem! 
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 
És tudo para ti, porque para ti és o universo, 
E o próprio universo e os outros 
Satélites da tua subjetividade objetiva. 
És importante para ti porque só tu és importante para ti. 
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? 
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, 
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? 
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente: 
Torna-te parte carnal da terra e das coisas! 
Dispersa-te, sistema físico-químico 
De células noturnamente conscientes 
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos, 
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, 
Pela relva e a erva da proliferação dos seres, 
Pela névoa atômica das coisas, 
Pelas paredes turbilhonantes 
Do vácuo dinâmico do mundo..
.

***

A propósito: Feliz Natal aos sobreviventes (que a vida anda pela hora da morte)!

8 comentários:

  1. É, mano Sonekka, esta é a época do ano em que há mais suicídios. Enquanto tantos estão indo às compras, outros estão indo embora...

    É pra se refletir mesmo...

    Abraço do
    Léo.

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  2. Muito triste tudo isso.Mas a vida está aí para ser vivida com todas as suas nuances.Vamos refletir sim, agora, já.

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  3. Triste o drama do japonês. Um tapa esse poema do Pessoa. Estava longe de relê-lo hoje. Valeu, Leo!

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  4. Ya lo dijo Charly (García..claro...)
    "..los que no pueden mas, se van.." (en la canción "Viernes 3am"), me hizo acordar tabien a la película sobre la vida Violeta Parra, la viste?, cuando en un momento le dice a su hija, que coqueteaba con la idea del suicidio :"eso no se avisa, se hace." y así lo hizo ella, a quien ni la música pudo salvar...
    abrazos amigo!
    já tenho saudades do Brasil e de voces!

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  5. Anônimo, Alan, Marcela:

    Grato pela visita e pelos comentários.

    Marce:

    Sí, que este texto me hizo acordar a la canción de Charly. Casi la subí, pero por fin he eligido el poema de Pessoa. En cuanto a la película de Violeta, no la ví todavía. Voy a buscarla. Y, por último, sí, las saudades son gigantes. Cuándo vuelves?

    Besos,
    Léo.

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  6. Leo,
    Você escreve muito bem. É sempre um mistério incompreesível o suicídio. Da maneira que você escreveu é possível sentir o desepero deste homem. Que triste...
    beijo,
    Fernanda

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  7. Oi, Fernanda!

    Realmente o suicídio é, como você disse, um mistério incompreensível. Contudo, não será a vida igualmente outro mistério incompreensível?

    Beijão do
    Léo.

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