segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Crônicas Desclassificadas: 151) Os dois Brasis

Eu, que moro em São Paulo, adoro o Rio e tenho muitos amigos/parceiros cariocas por quem tenho carinho e respeito. Da mesma forma, adoro a Argentina, país que aprendi a amar e com o qual tenho a maior afinidade. Faz anos que, sempre que a oportunidade surge, dou uma escapada ao país hermano pra matar as saudades e renovar a bagagem cultural. Ah, e tenho também amigos/parceiros argentinos por quem, igualmente, tenho carinho e respeito. Portanto, não estou entre aqueles que dão corda a atitudes bairristas, à futebolização das relações de vizinhança. Em primeiro lugar, porque não acredito em raças. O indivíduo é fruto de seu meio. A mesma pessoa que nasceu, por exemplo, no Japão e pensa assim-assado, tivesse nascido no Zimbábue, teria comportamentos e pensamentos distintos, adquiridos pelo contato com sua realidade local.

Daí que dizer que mineiro é come-quieto; gaúcho é macho, pero no mucho; baiano é preguiçoso; carioca "se acha"; paulista só sabe trabalhar; nordestino é tudo "inguinorante"; entre outras coisas; não passa de preconceitos que foram alçados à categoria de folclore. Minha mãe dizia que nem os dedos das mãos são iguais, portanto, se mesmo dois irmãos têm comportamentos diferentes, como podemos generalizar, rotular pessoas por determinadas regiões? Um nordestino que vive no interior do Ceará não pensa da mesma forma que um conterrâneo seu que veio pra São Paulo. Por quê? Porque este foi "contaminado" pelo local pra onde se mudou. Tudo isso é muito natural, e qualquer pessoa com um pouco de discernimento e desprovida de tais preconceitos é capaz de compreender meu raciocínio.

Por essas e outras, não posso conceber que um fulano de tal, baseado em pesquisas discutíveis, venha arrotar que pessoas pertencentes à raça X têm QI menor que as que pertencem à raça Y. Afinal, respeito mais um indivíduo que pensa por si só e desenvolve talentos, por apostar na curiosidade, que um pensamento coletivo. Se um boi corre rumo ao precipício, os demais que vêm atrás dele cheirando seu rabo não são capazes de perceber que o destino final é o abismo. Assim é o pensamento coletivo. Por causa disso, acredito que um país só pode vir a ser grande e justo quando todos os indivíduos tiverem, desde o berço, as mesmas oportunidades pra que desenvolvam suas capacidades. Quem nunca passou fome e põe no faminto a culpa das mazelas do mundo não passa de um imbecil bem-alimentado.

Mas o mundo ainda tem muitas voltas a dar até que seus habitantes sejam dignos de merecer ser chamados de humanos. Em determinadas situações, os adjetivos perdem seu real sentido. Os animais, por exemplo, são chamados de selvagens, mas não vemos neles nenhum traço de crueldade. Mesmo quando matam, fazem-no por instinto, pra matar a fome, nunca por prazer. Já o homem, que, por ser o único animal racional, deveria ser melhor que seus colegas de quatro patas, tem por hábito ser o pior de todos. Nossa humanidade ainda é subdesenvolvida; julgamos o outro pela cor, pela aparência, pela roupa etc., mas não conseguimos entendê-lo pelo que tem de mais importante e que não pode ser visto a olho nu, mas apenas percebido: seus pensamentos e seus sentimentos.

E por quê? Porque optamos pela cegueira. Pra maioria de nós é simplesmente impossível tomar decisões desviando os olhos do umbigo, pensando no outro. E é assim que chegamos aos dois Brasis de hoje. Como política é um assunto que me interessa e fascina, tenho conversado a respeito dela com várias pessoas: amigos, familiares, desconhecidos... e percebo que a maioria escolheu seu candidato pensando nos benefícios que a vitória deste proporcionaria a seu mundinho particular. Ou seja, cada um pensa em melhoras, sim, mas sempre priorizando sua aldeia, sua área profissional, sua classe social. Só que tais pessoas não entendem (ou disfarçam?) que, obviamente, pra que melhoremos as condições dos que têm menos, é necessário tirar um pouco dos que têm mais.

Nessas eleições, vimos uma clara divisão entre a parte superior e a inferior de nosso mapa. O lado de cima sempre foi considerado o mais pobre. Porém, nos últimos anos, sua qualidade de vida tem melhorado; por isso, as pessoas que moram lá não têm dúvidas na hora de votar. Da mesma forma, a banda de cá, pertencente à parcela mais rica do país, votou em massa justamente no outro candidato. Supõe-se que onde há mais dinheiro haja também mais educação. Portanto, quando um pobre vota pensando em seus próprios interesses, alguns chamam a isso ignorância. Mas, se você foi à escola, estudou, conhece um pouco de história e geografia, e vota apenas pensando em seus próprios interesses, sinto muito em lhe dizer: sua ignorância é maior que a do outro.

Explico: quem tem mais dinheiro, mais educação, mais privilégios, tem mais responsabilidades que aquele que tem menos tudo isso. Agora mesmo já li sobre aquela velha história de que, se o sul financia o norte, o melhor é separar as duas partes. A coisa, sabemos, não é tão simples assim. E, mesmo que fosse, representaria apenas o caduco pensamento nazista. Afinal, pensando apenas de uma forma simplória, o que seria da metade de baixo do Brasil sem a mão de obra dos que vieram da metade de cima? O Brasil vencedor, o Brazil, quer se relacionar com o Primeiro Mundo, com os EUA, enfim, com os países endinheirados, e quer virar às costas à América Latina, mas não vê (ou não quer ver) que os de lá nos veem como vemos nossos vizinhos...

A previsibilidade do pensamento dos imbecis endinheirados é que torna o mundo uma bomba-relógio. Quando alguém estende a mão (metaforicamente, esse alguém pode ser um bairro, uma região, um país..) e você lhe vira as costas, da próxima vez esse alguém lhe apontará uma arma. Enquanto quem tem demais continuar não aceitando tirar um pouquinho do que tem pra melhorar a vida de quem não tem, a África vai continuar faminta e exportando doenças pro mundo rico, os haitianos vão continuar entrando ilegalmente em nosso país, a violência vai cada vez mais ganhar toques de sadismo, e cada vez mais aqueles que só pensam em seu umbigo vão se ver presos dentro de seus carros blindados, de seus condomínios fechados, e com medo, com muito medo!

Resumindo: dividir o país só o enfraquece. As pessoas têm reclamado muito das escolas públicas, mas tenho uma séria preocupação também com o outro lado: quando vejo um jovem que sempre estudou em escolas particulares, cuja mensalidade é mais cara que os vencimentos de toda uma família, e sai às ruas feito um pit bull gritando que os nordestinos devem voltar pro Nordeste, que a presidente é uma fdp, agindo como se tivesse no cérebro apenas estrume no lugar da massa cinzenta, eu começo a pensar que o problema da educação no Brasil é mais grave do que havíamos pensado. Se o Brasil está dividido hoje e dizem que a culpa é do nordestino, que é "naturalmente" ignorante, eu digo que culpa maior têm esses mimadinhos graduados, que gastaram anos preciosos de sua vida e uma fortuna dos pais pra se diplomar em ignorância.

"O Brazil não conhece o Brasil"...

***

4 comentários:

  1. Texto Perfeito!

    O lado positivo dessa eleição, além da reeleição da nossa presidenta, foi descobrir a verdadeira face de algumas pessoas, lembrei daquele filme o qual atua Julia Roberts, Sleeping with the Enemy.
    Do meu lado Houveram algumas muitas baixas de amigos "facebookanos" prós-Aécio, "antinordestinopobrepetistasgays", que ainda defendem as modernas ideias da idade média.

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    1. Pois é, Kovaldo! As redes sociais fizeram vir à tona o lado negro de cada um. Todos nós o temos, só que alguns o têm em maior proporção. Espero que, com o tempo, os exaltados aprendam a controlá-lo, pro bem da sociedade.

      Abração,
      Léo.

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  2. Otimo texto, Léo!!!
    Também penso que vir à tona a "sinceridade" do como, quem e o que forma o pensamento de cada um, ajuda a tirar nossa ignorância dos dogmas marketizados de nossa cultura. Aproximamo-nos um pouco mais do quanto "somos" - iguais ou diferentes - e é a partir desta apropriação de algo um tanto mais concreto é que as coisas podem vir a ser desenvolvidas no ponto de que, apesar de diferentes, habitamos um mesmo pedaço de terra e que devemos tratá-la um tanto melhor do que o que havia como parâmetro, na tradição.
    Abs

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    1. Falou e disse, Erico!

      Saber conviver é respeitar as diferenças e trabalhar em prol de um país mais justo.

      Abração,
      Léo.

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