terça-feira, 25 de novembro de 2014

Crônicas Desclassificadas: 153) A responsabilidade de Chico Buarque... e a de cada um de nós

Ponha-se no lugar de Chico Buarque. Não deve ser fácil estar em sua pele 24 horas por dia. Por onde vai, é seguido por olhares, flashes, cliques, cochichos, suspiros, sem contar os malas que o abordam pra pedir isso ou aquilo. Já houve até casos em entrevistas em que ele ouviu a fatídica pergunta: "Como é ser Chico Buarque 24 horas por dia?" Ora, bolas, não tem o que perguntar, vá pesquisar o entrevistado, pô! Afinal, de Chico Buarque ao padeiro da esquina, cada indivíduo está pra lá de acostumado a ser ele próprio durante todas as horas de seu dia. Quer dizer, há exceções, principalmente se você trabalha numa empresa em que precisa pôr uma máscara, virar personagem pra ascender. Mas isso é questão de foro íntimo; cada um sabe de suas ambições profissionais. Voltemos a Chico.

Até aí, tudo bem. Toda pessoa pública sabe que uma saidinha à rua não é exatamente o ato mais simples do mundo. Se o camarada for à praia então e calhar de alguma dona casada cair em seus braços, pior ainda. Mas o fato é que há até bem pouco tempo Chico era considerado (e se via como) unanimidade em solo pátrio. Neguinho esculhambava Caetano pra lá, criticava João Gilberto pra cá, mas o moço de olhos azuis (ou serão verdes?) permanecia lá, intocável, irretocável, gerando desejo no mulherio e inveja na homarada. Ah, e sendo copiado por um sem-número de compositores ainda verdes (momento mea-culpa: até eu, no começo, já vivi essa fase). Ossos do ofício de quem faz samba e amor até mais tarde e tem muito sono de manhã, enquanto a fábrica começa a buzinar.

Só que já faz um tempão que Chico não é mais unanimidade. Eu não sei exatamente se essa "opinião geral" começou a cair por terra com o surgimento e a propagação das redes sociais ou se estas apenas facilitaram essa superexposição de opiniões contrárias a Chico. E o ápice se deu justamente durante o período das últimas eleições. Chico virou Judas em sábado de aleluia, malhado em praças públicas (virtuais ou não), tachado de vendido e aproveitador, entre os adjetivos mais leves. Tudo o que disse e compôs foi usado contra ele. Cheguei mesmo a receber de uma amiga, por e-mail, divulgação de um texto (escrito por um anônimo que se apresentou simplesmente como "Vizinho do Chico") que enfileirava versos de canções do moço do Vai Passar pra dizer que ele "não passaria".

O texto, empolado e bolorento, não me teria causado maiores emoções se tratasse só da opção política de Chico; afinal, quem votou em Aécio não perdoa o compositor por ter optado por Dilma, mesmo sabendo da relação histórica de Chico com o PT. O que me deixou mais triste que indignado foi que o tal "vizinho" o trata como um vigarista, um cara que se aproveitou da ditadura pra "fazer fortuna". Daí, como prezo muito a amiga que me mandou o e-mail, respondi-lhe: "Chico Buarque ganhou tudo o que tem com seu trabalho e seu talento. É um de nossos maiores gênios. Creio que um qualquer deveria pensar duas vezes antes de falar dele. Ninguém é obrigado a pensar como ele, pois somos todos livres (graças a Deus); o que me parece feio é que um anônimo tente sujar a honra de Chico só porque este tem opiniões diferentes das dele."

Escrevi outras coisas, mas de caráter particular, explicando a minha amiga a incoerência da malfadada missiva (o título era Carta aberta a Chico Buarque); o que queria salientar é que tratei especificamente desse texto porque o considerei um exemplo perfeito de chororô de fã que se sente lesado em seu fanatismo. Chico não é Deus, é apenas um homem, como todos nós. Dono de um espantoso talento, é verdade, mas deve ter lá seu punhado de defeitos. Portanto, não é justo que esperemos dele perfeição. Acho até bom que ele não seja mais unanimidade (lembram que Nelson Rodrigues a considerava burra?); assim, humanizamo-lo. Ademais, se Chico viesse a público declarar voto em Aécio, a outra metade da sociedade provavelmente (e com mais lógica) iria às redes sociais bradar contra ele. 

Somos, desde sempre, um povo sofrido, de vida dura e esperanças curtas. Por todas essas privações, acostumamo-nos a projetar em terceiros nosso orgulho. Queremos ver bravos onde há apenas homens, na maioria das vezes profissionais desempenhando sua função e sendo remunerados por isso. E é assim que uma partida de futebol pode virar uma batalha campal, pois, se minha vida está uma droga, meu time não pode perder; a Seleção Brasileira vira o "Brasil de chuteiras"; um piloto de F-1 como Ayrton Senna se transforma em herói de guerra morto em batalha; e artistas, profissionais que trabalham com cultura, são convocados a ser soldados do Bem contra o Mal, e justo num momento esquisito, quando não é raro ver paladinos do Bem jantando com militantes do Mal...

Não, meus caros, não é saudável projetar em pessoas públicas nossos anseios. Afinal, são os nossos. E, mesmo assim, atire a primeira pedra quem nunca mudou de opinião. Eu já mudei tantas, que nem conto mais. Chico Buarque votou em Dilma, mas a importância de sua obra é infinitamente maior que seu voto. Do mesmo modo, por exemplo, o diretor Fernando Meirelles votou em Marina no primeiro turno e em Aécio no segundo, mas o que vai ficar pra posteridade são seus grandes filmes; Cidade de Deus já é um clássico moderno que tem inspirado cineastas mundo afora. Acho importante um artista se manifestar politicamente, denota coragem, principalmente em tempos tão raivosos, quando o mais sensato é sair pela tangente. Contudo, o que permanece é a obra.

Assim, pra finalizar, sugiro que vocês, raros leitores, antes de pensar em enlamear a vida e a obra de grandes ídolos nossos, procurem ser protagonistas de suas vidas e arquem com o ônus da própria responsabilidade. E deixem o artista livre pra criar. No caso específico de Chico Buarque, afianço que ele está em dia com suas responsabilidades. Acabo de ler o maravilhoso O irmão alemão e posso assegurar que, se não está à altura de sua obra musical, chega bem perto. O Chico romancista ainda tem muito chão a percorrer antes de se igualar ao Chico compositor, mas tem uma vantagem: em geral, o compositor, com a idade, cansa; já o escritor melhora com os anos. Em minha humilde opinião, Budapeste e O irmão alemão são verdadeiras joias. Deixemos em paz o coração de Chico, pra que ele seja um pote até aqui de... mágica!

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PS: A propósito, procurei um vídeo no qual Chico, com muito bom humor, fala sobre o assunto. Destaco uma pérola dita por ele: "As pessoas têm raiva. Existe uma raiva, mas você não vai ficar com raiva de quem tem raiva." Sábias palavras! A seguir, o vídeo:


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2 comentários:

  1. Léo, sensatez é o seu sobrenome! Bingo!!! Mais um ponto marcado com esta crônica! O problema não é ele ser de esquerda ou de direita. O grande problema é ele ter opinião. Coisa difícil de sustentar nesses nossos tempos...
    Em tempo: a respeito do vídeo, já li comentários do tipo: "nossa, ele está de cara cheia!", quando ele está simplesmente rindo de toda essa loucura! Aliás, "encher o pote" também é um perigo para a opinião alheia, a julgar pela celeuma criada pelo porre da Letícia Sabatella... rs
    Um beijão!

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  2. Oi, Dannoca!

    Não tava sabendo desse babado da Letícia, não. Fui investigar e o que te digo é que, se já gostava dela, agora gosto mais. Esse povo que não tem mais o que fazer que ficar cuidando da vida alheia devia era ir catar coquinho.

    Sobre a questão de esquerda e direita e posicionamentos, concordo, sim, que é louvável um artista se posicionar, mas quando fulano é muito, muito, muito reaça, pode notar que sua própria obra já está um tanto contaminada por seu reacionarismo.

    Beijos,
    Léo.

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