sexta-feira, 17 de abril de 2015

A Palavra É: 1) Cabeça

cabeça é o fim ou o princípio do corpo? Tudo depende do ponto de vista. Saca só: se um camarada passa a vida olhando pro chão, a impressão que temos é de que a parte mais distante de seu corpo são os pés. Seu objetivo a ser alcançado é um subsolo, um porão ou algo do gênero. Ou até, quem sabe, possa ser que aja como um avestruz e viva procurando um buraco onde enfiar a cabeça. Portanto, podemos dizer que o corpo dele principia por esta. Já há outros que vivem com a cabeça nas nuvens; estes, certamente, foram começados pelos pés e cresceram como árvores, pra cima, até chegarem à cabeça. Mas não pararam por aí, continuaram crescendo pra fora do corpo, como um invisível arranha-céu, em cujo topo, no heliponto mais especificamente, fincaram sua cabeça, meio como se fosse uma bandeira. Ou uma biruta...

Mas isso tudo o que escrevi no parágrafo anterior pode parecer apenas um papo-cabeça... ou pior: um papo sem pé nem cabeça. Afinal, pode (e deve) haver por aí quem pense exatamente o contrário. Mas então, malandro, cada um, cada um. Sua cabeça é seu guia; cada cabeça, uma sentença; quando a cabeça não pensa, o corpo padece; etc., etc. Portanto, o mais importante é saber usar a cabeça; mesmo porque, caso contrário, ela seria apenas um enfeite em cima do pescoço. Nesse caso, em vez dela, você poderia atarraxar uma melancia... Por que não? Ou fazer como a personagem do maravilhoso conto de João do Rio, O homem da cabeça de papelão (leia aqui), que trocou sua cabeça por uma de... papelão! Mas isso depois de ter dado muita cabeçada.

Cabeça é um troço interessante. Se você sair pela rua, não vai ver duas iguais – quer dizer, fora no caso dos gêmeos. Mas voltemos: dizem que cada cabeça é um universo, e eu acredito bastante em tal afirmação, e o fato de não haver duas iguais (fora no caso dos gêmeos) só corrobora isso. Claro, podemos ver formatos parecidos, traços semelhantes, mas sempre haverá uma diferença. Acho que a cabeça está pro homem como a digital está pra mão. Uma cabeça é única, inconfundível, reveladora. E não estou me referindo só ao rosto de um sujeito, refiro-me à circunferência inteira: queixo, cabelo, orelhas, testa... e por aí vai. A cabeça é elemento imprescindível na formação da personalidade de um sujeito. E aqui não vai nenhum julgamento de aparência. Há muita gente feia que ostenta sua cabeça com tal dignidade que até termina ficando bonita.

Falando nisso, há algumas canções brasileiras que abordam com propriedade o tema. Dorival Caymmi, por exemplo, cantava que "quem não gosta de samba bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé". Meu mano Élio Camalle tem, inclusive, uma canção que se chama Cabeça, na qual ele diz "Perdi a cabeça no meio da rua/ Meu crânio eu vi quando rolou/ Pra dentro da boca de lobo/ Tava cheio de juízo/ E escorreu no asfalto". Belchior, em Todo Sujo de Batom, admitia, "Eu estou muito cansado/ Do peso da minha cabeça". E não me venham com piadinhas sobre a forma da cabeça dos cearenses; ele estava se referindo a outra coisa. Quem sabe nesses versos já estivesse querendo explicar seu sumiço...

Me lembrei dessas canções de cabeça, sei que há outras, mas deu preguiça de procurar, porque o que vale, no fundo no fundo, é o que a gente lembra de cabeça. Em compensação, procurei isso: "Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espetáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima, porém me não ofendeu."

Isso não é meu, embora também me doa a cabeça. É de Fernando Pessoa, falando pela boca de Bernardo Soares. Dados os devidos créditos, despeço-me dizendo que, pra terminar, tem ainda o quebra-cabeça, a mula sem cabeça, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, o cabaço, o cabaça, o cabeçalho, o cabecilha, o cabeceiro, o cabeçorra (não, não estou me referindo ao Belchior), o cabeçote, a cabiçulinha, o cabuçu, o cabaçu, o calabouço, o acabaçado, a bacabaçu, o cabo, da capo, o Eça, a fuça, a gabação, o que é bom à beça, o Acácio, a jaca (e o pé na jaca), o cabelo, o macabeu (antes ele do que eu), o nabo, o que obedece, o que padece, o quebequense (um cearense – que não tinha nada que ver com a história), a rabeca, a Rebeca, o sabido, o tabaco, o ubuçu, a vagaba, o xaboque, o zabelê e muitos outros que igualmente não cabem aqui.

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PS1: Seguindo sugestão de Xico Sá, tô lendo um ótimo livro de Ray Bradbury chamado O zen e a arte da escrita, que trata justamente do ato de escrever. E não é que a leitura me inspirou? Acabei tendo uma ideia pra escrever mesmo sem assunto. Pensei o seguinte: crio uma coluna nova pra tratar de temas aleatórios, partindo sempre de um ponto específico, uma palavra. Mas tal palavra tem que ser dita por alguém, a pedido meu. Sem imposições nem censura. E minha primeira cobaia foi uma colega revisora, Eliane. No caso dela foi até pior, diria um tiro no escuro, pois, quando eu tinha acabado de ter a ideia, tasquei-lhe: "Eliane, fala uma palavra qualquer." Ela disse que tava sem palavras, então lhe pedi pra chacoalhar a cabeça. Ela obedeceu e, na sequência, disse: "Cabeça."

PS2: Trilha sonora — Élio Camalle, Cabeça (dele)



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