terça-feira, 25 de agosto de 2015

Versão Brasileira: 3) "One More Cup of Coffee" por Sander Mecca

Tenho uma relação de longa data com a música de Bob Dylan. Lembro que meu primeiro contato com ela foi de estranheza. Tirante Blowin in the Wind, que foi amor à primeira ouvida, tudo o mais me parecia um tanto torto (então, eu só dava atenção às linhas retas...). E sua voz não ajudava; áspera, falha, esganiçada, não parecia em nada com a de Roberto Carlos, meu maior ídolo na época (tempos depois, a estranheza se repetiria com a voz de Chico Buarque, mas aí eu já estava vacinado contra os preconceitos da linha reta). Confesso que demorei pra gostar do primeiro disco que comprei dele (um the best of). Contudo, como a galera a meu redor gostava tanto do cara, fiquei ouvindo e reouvindo, tentando entender o que todos viam... aliás, ouviam de tão fascinante que eu não conseguia detectar.

Foi então que tive a ideia de traduzir umas letras dele. E, meus filhos, naquele tempo não era fácil como hoje. Gastava horas folheando um dicionário chumbrega, correndo atrás das palavras (eu já era ruim de inglês naquela época!), enlaçando umas, sendo driblado por outras... E o resultado das traduções era um troço mutcho loko! Foi por esse viés que comecei a gostar de verdade de Dylan. E, como sói acontecer com este escriba, de tanto curtir seu som, comecei a curtir também sua voz... melhor dizendo, sua interpretação. Como gostei de outros intérpretes que nunca tiveram vozeirão (Erasmo Carlos, Guilherme Arantes, Nelson Cavaquinho, Joaquín Sabina...). A boa música encanta meus ouvidos. Tá, tudo tem limite; eu não seria capaz de gostar de uma voz como a minha nem cantando a Rosa de Pixinguinha (e Otávio de Souza. Não esqueçamos os letristas)...

Vou colar aqui o que escrevi em outra postagem (esta): "foi aí que então assisti a Não Estou Lá, um filme tão interessante quanto esquisito inspirado nas andanças do bardo judeu de Minnesota, no qual vários atores fazem o papel deste em diferentes fases de sua vida. E eis que eu, que não estava lá – aliás, não estava nem aí –, dei a mão à palmatória e fiz as pazes com o cara que segue soprando no vento. Uma canção em particular (e que eu não conhecia) me arrebatou no filme: One More Cup of Coffee, cuja linda e longa introdução tocou em determinada cena com Richard Gere e, confesso, me obrigou a repeti-la uma infinidade de vezes. Daí, fui obrigado a fazer uma versão dela, que meu camarada (o nunca suficientemente incensado) Sander Mecca tem cantado 'pelaí'."

Em suma, tudo o que escrevi acima foi só preâmbulo pra dizer que, após longo período de deserção (no qual só ouvia MPB), voltei a me alistar nas bases dylanianas. O mais era tratar de como conheci a canção em questão, como acabei fazendo uma versão dela em português e como o Mecca a tomou pra si e valorizou pra cacete o trabalho que eu havia feito etc. e tal. Só que, a partir dessa canção, fui retomando o gosto por versões, sobretudo por versões de Dylan, o que resultou num projeto no qual estou apostando bastante. E mais não digo porque se trata ainda de um embrião. Esperemos que possa vir à luz com saúde pra tratarmos mais aprofundadamente acerca dele.

Só mais um detalhe, antes de irmos ao que de fato interessa: assisti há algum tempo a um show em que o mano Zeca Baleiro (& banda) retomou, anos depois, o repertório de seu CD Líricas (uma obra-prima, saliente-se. Já escrevi sobre ele aqui). No show, Zeca cantou (lindamente), pra espanto meu, One More Cup of Coffee, só que no original em inglês, o que me deixou duplamente contente, por me ver em sintonia tanto com o das balas quanto com o da Mecca. Bom presságio! Agora, vamos ao vídeo da canção, que é um registro feito pela lente de Cláudia Salto no Brazileria, há algumas semanas. E, como se não bastasse a empolgante interpretação de Sander, este foi acompanhado pelos talentosos Douglas Froemming (violão de aço) e Fernanda Leal (violino). Saquem só:


SÓ MAIS UM CAFÉ (ONE MORE CUP OF COFFEE)
Bob Dylan/versão: Léo Nogueira

Seu hálito é doce como o mel
E seu olhar fugaz
É um labirinto onde o céu
Dá as mãos a satanás

Mas eu já me perdi demais
No vão de seu olhar
Que não nasceu pra me dar paz
Só pra me embaralhar

Eu te peço só mais um café
Sem açúcar, sem amor, sem fé
E depois, nunca mais

Você acredita que seu pai
É uma espécie de rei
Mas ele mesmo é quem se trai
Refém de sua própria lei

Eu vou pra longe de você
Eu vou fugir dos olhos seus
De sua fome de poder
E de seu medo dos ateus

Eu te peço só mais um café
Sem açúcar, sem amor, sem fé
E depois digo adeus

Pode ser que sua irmã
Veja mesmo o futuro
Mas, querida, o amanhã
É um rio mais turvo e escuro

Pode ser que sua voz
Seja um canto de pardais
Mas, no entanto, entre nós
O oceano não tem cais

Eu te peço só mais um café
Sem açúcar, sem amor, sem fé
E depois nunca mais


A letra original:

ONE MORE CUP OF COFFEE
Bob Dylan

Your breath is sweet, your eyes are like
Two jewels in the sky
Your back is straight your hair is smooth
On the pillow where you lie


But I don't sense affection
No gratitude or love
Your loyalty is not me 

But to the stars above

One more cup of coffee for the road
One more cup of coffee for I go
To the valley below

Your daddy he's an outlaw
And a wanderer by trade
He'll teach you how to pick an choose
And how to throw the blade


And he oversees his kingdom
So no stranger does intrude
His voice it trembles as he calls out
For another plate of food


One more cup of coffee for the road
One more cup of coffee for I go
To the valley below


Your sister sees the future
Like your momma and yourself
You've never learned to read or write
There's no books upon your shelf


And your pleasure know no limits
Your voice is like a meadow larks
But your heart is like an ocean
Mysterious and dark


One more cup of coffee for the road
One more cup of coffee for I go
To the valley below


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PS: Estava finalizando o texto (escrevo na segunda, 24/8), quando me deparei com crônica de Ruy Castro na Folha na qual ele, tratando sobre lista recente da Rolling Stone que põe Dylan em 1º lugar entre os cem maiores compositores populares de todos os tempos, solta uma pérola sobre ele: "Sua música é pobre, óbvia, sem interesse melódico ou harmônico. Serve apenas para carregar a letra, e olhe lá. Mas eu o poria em 1º também – na lista dos 100 maiores chatos de todos os tempos." Podemos considerar um exagero da revista a escolha, mas não é motivo pra que Ruy esculhambe Dylan, não? Chato por chato, temos nosso gênio/chato João Gilberto, mas, no quesito chatice, Ruy (que é um biógrafo excelente, admitamos) ultimamente vem ganhando de goleada.

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Ouça a original:



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