quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Crônicas Classificadas: 44) Oração na garrafa

Existem críticos e críticos. Nós, compositores, precisamos muito deles, mas também estamos à mercê de seu veredicto ou, pior, de seu silêncio. A maioria deles, por medo, preguiça ou conveniência, empunha sua pena a serviço do desserviço à sociedade, tratando apenas de artistas fabricados e a troco muitas vezes de brinquedinhos eletrônicos. Claro, na maioria dos casos o que fala mais alto é o medo de perder o emprego, fatalidade a que todos estamos sujeitos. Atualmente, os críticos preferidos da grande mídia são bonequinhos de ventríloquo, sem personalidade e sem matizes. Por essas e outras, a recente perda do crítico Mauro Dias nos dói tanto; sem contar a perda do amigo, bom de prosa e de copo. Existem críticos e críticos, e Mauro, entre eles, era todo um poeta. Sua prosa sempre tecida com a palavra certa ("pra doutor não reclamar"), escolhida a dedo, retirada da grande árvore da comunicação, tinha a capacidade de valorizar ainda mais a arte de quem era alvo de seus comentários. Fica a lacuna. Mas Mauro também era um grande cronista; pra quem não o conheceu, resgato uma de suas pérolas. Oremos:


Oração na garrafa
Por Mauro Dias, para o Caderno 2 d'O Estado de S.Paulo

Levai-me para perto das coisas aconchegantes; permiti, sim, que o mundo caia sobre minha cabeça, desde que seja morno e macio e nele possa eu descansar o corpo na noite úmida. Cuidai que as roupas estejam limpas e passadas e em seus lugares e que, ao acordar, ouça GuingaJobim e Antônio Maria, de quem roubei o início da primeira frase e, de resto, a intenção.

Dai-me a chave do sorriso e talvez de mais um pouco das mulheres, mas que as belas e de bom coração estejam no início da fila, e fazei com que gostem todos de mim, menos os chatos, ou os odiaria e talvez odiásseis-me. Por outro lado, afastai de mim os videoclipes, os filmes americanos sobre deficientes, mormente os baseados em fatos da vida real, os programas de auditório e os produtores de world music.

Dai-me gatos, crianças bem pequenininhas e amigos. Concedei-me noites de prosa livre em rodas de ternura, petiscos, vinhos e violões, e concedei ainda que consiga lembrar-me, sem tropeçar, da letra do Rancho da Goiabada. Permiti que meus olhos brilhem e o corpo e o coração suportem por muito a aventura da conquista.

Salvai-me para sempre, como tem sido, da ambição desmedida, da inveja, da desconfiança, da incredulidade. Dai-me a capacidade do deslumbramento e a maravilha de espantar-me e a glória de encantar-me e fazei com que, se houver quem se encante por mim, que o seja por estar eu deslumbrado, espantado e encantado.

Se houver o fim do mundo, ofertai-me a graça de não estar presente. Sendo impossível, fazei com que seja o fim uma espécie de sonho de muitas cores e sem fanfarras nem transmissão ao vivo pela TV. Enquanto isso, possibilitai-me água quente, janelas abertas, sopa de legumes pedaçuda nas noites de frio, montanhas sem teleféricos, praias sem ondas fortes, ruas arborizadas de pouco trânsito, estantes cheias de livros, discos cheios de música, pausas quando a circunstância as fizer necessárias.

Satisfazei-me os caprichos inocentes e dialogai comigo sobre os demais, sem nãos apriorísticos peremptórios. No entanto, silenciai-me quando disser besteira crassa. Permiti-me a qualidade do silêncio, o meu e o alheio. Uma luz sobre a página aberta e olhos para lê-la, permiti-me; e a canção que me lembra amores e memória para ouvi-la; o cheiro que me leva à infância e a revivida emoção; o gosto dos primeiros gostos.

Iluminai os cientistas para a descoberta do teletransporte, pois odeio aviões, talvez pela comida de bordo e a bebida em copos de plástico. Proibi todos os copos de plástico, os churrascos com mosquito e pagode, os encontros de turmas antigas – ou, pelo menos, livrai-me deles.

Impedi que encontre companheiros há muito perdidos, pois nunca sabemos o que dizer e para isso servem as lembranças. Livrai-me dos bons conselhos não solicitados e dos que arvoram para tudo a desculpa das boas intenções. Levai-me a lugares aonde nunca fui, desde que não vá sozinho, e agraciai-me com a hipótese da solidão.

Organizai-me os livros em ordem alfabética, mas deixai que Borges se misture com Poe e Machado imiscua-se na prateleira de Eça. Da mesma forma, Chico e PorterEdu e Villa. Desculpai-me por às vezes confundi-los.

Agradai-me com caldinho de feijão bem temperado e ao meio-dia, com maria-mole e aroma de refogado em panela bem usada. Pacificai-me de meus sustos com sol de inverno no parque, som de realejo e valsas de esquina. Ensinai-me a assoviar com dois dedos, jogar na ponta-esquerda, patinar – e nem precisa ser na neve –, falar francês de ouvido e gostar de cinema iraniano. Ensinai-me, ainda, a não me intimidar com a beleza feminina, a fazer backup da agenda eletrônica, a entender as regras dos jogos de cartas e o princípio de funcionamento dos motores a explosão, a entender para que mesmo importam a moda e os criadores dela e seus seguidores, a não ter medo de banho frio. Explicai-me por que é preciso alinhar os chinelos antes de dormir e por que alguns sonhos são bons, outros ruins.

Concedei-me uma longa viagem, daqui até o fim absoluto e inevitável. Concedei-me o prazer de alguns atos não tão puros e o indulto por eles.


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Originalmente publicada em 15 de junho de 2000, aqui.

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