quinta-feira, 28 de abril de 2016

Canções que Amo: 5) Novas canções de protesto, por Fernando Cavallieri (na voz de Karina Ninni); Kleber Albuquerque + Adolar Marin; e Max Gonzaga

Nossa democracia nem bem teve tempo de crescer e aparecer e já se depara novamente – em pleno século XXI! – com artifícios da direita, que nunca soube admitir a soberania do voto e os avanços sociais e busca camuflar um novo golpe travestido de processo legal. Trata-se, obviamente, de artimanha de uma corja que só atende a interesses próprios (e de quem a mantém, por supuesto). Em nossa mais recente ditadura (até hoje, porque, como gostamos de ditaduras, não será de causar espanto se cairmos no abraço madrasto de uma nova nos próximos dias), os compositores engajados nunca se deixaram calar e compuseram uma série de clássicos que, batizados de "canções de protesto", viraram verdadeiros hinos de resistência.

Décadas depois, quando pensávamos que não iríamos nunca mais retroceder, nós, os compositores em atividade, vemo-nos também obrigados a usar as mesmas armas de nossos antecessores pra mais uma vez bradar contra os opressores de sempre. Só que hoje nossa missão é ainda mais difícil, pois, se antes o inimigo usava farda, hoje anda no meio de nós à paisana, às vezes até a nosso lado, obrigando-nos a apurar nossa lente. Por essas e outras, eu e outros compositores chegados fundamos um movimento chamado MPB Universitária, que nasce justamente num momento em que o comodismo de um ilusório estado democrático fez que uma grande gama de compositores ditos populares se acostumasse a tratar apenas de temas comezinhos e umbilicais.

Assim, aproveitei pra tirar o pó desta esquecida coluna e trazer pra cá uma trinca de canções que amo compostas por quatro camaradas da MPB Universitária e que podem ser tranquilamente batizadas de novas canções de protesto. São elas:


1) CLASSE MÉDIA

Marginal (2005)
Esta é uma canção que eu gostaria de ter escrito, pois resume muito bem o turbilhão de sentimentos que me invadem quando vejo uma iludida classe média bater panelas e tomar as ruas de verde e amarelo feito gado gritando contra uma corrupção unilateral. Uma classe média que se sente herdeira da casa-grande e, temente de perder suas regalias, aponta o dedo pra um falso inimigo, a saber: a classe que está abaixo dela. Claro que generalizo, pois há muitos intelectuais e pensadores oriundos dessa classe que são extremamente necessários à saúde mental de nosso país (muitos deles artistas), mas a triste realidade é que, quando uma classe teima em sufocar as conquistas de outra que vem logo abaixo dela, está implorando pra viver sob o regime do medo. E pode ter seu desejo atendido.

CLASSE MÉDIA

Sou classe média
Papagaio de todo telejornal
Eu acredito
Na imparcialidade da revista semanal
Sou classe média
Compro roupa e gasolina no cartão
Odeio coletivos
E vou de carro que comprei à prestação
Só pago impostos
Estou sempre no limite do meu cheque especial
Eu viajo pouco, no máximo um pacote CVC trianual

Mas eu tô nem aí
Se o traficante é quem manda na favela
Eu não tô nem aqui
Se morre gente ou tem enchente em Itaquera
Eu quero é que se exploda a periferia toda
Mas fico indignado com Estado quando sou incomodado
Pelo pedinte esfomeado que me estende a mão
O para-brisa ensaboado
É camelô, biju com bala
E as peripécias do artista malabarista do farol

Mas se o assalto é em Moema
O assassinato é no "Jardins"
E a filha do executivo é estuprada até o fim
Aí, a mídia manifesta a sua opinião regressa
De implantar pena de morte ou reduzir a idade penal
E eu que sou bem informado concordo e faço passeata
Enquanto aumenta a audiência e a tiragem do jornal

Porque eu não tô nem aí
Se o traficante é quem manda na favela
Eu não tô nem aqui
Se morre gente ou tem enchente em Itaquera
Eu quero é que se exploda a periferia toda
Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta
Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida

***

2) SAMBA DO BEM

Samba do Bem (2015)
Um dos compositores mais éticos que conheço atende pelo nome de Fernando Cavallieri, e é uma espécie de Che Guevara da música popular contemporânea. Vegano, engajado, espiritualizado, bicho-grilo moderno, é um cara que adora a natureza e tudo o que dela provém, que sabe como poucos aproveitar o reúso da água, é incapaz de conceber qualquer maltrato a animais e é, sobretudo, um sujeito cujo discurso não entra em contradição com suas ações. Embora condene um ou outro excesso seu, tenho que lhe tirar o chapéu porque ele consegue traduzir seu estilo de vida em canções de qualidade indiscutível. Uma possível falha no discurso (em minha opinião), é que ele mescla fases predominantemente amorosas com outras de uma raiva colossal, mas quem nunca...?

Abaixo, versão do disco da cantora Karina Ninni:


SAMBA DO BEM
Fernando Cavallieri

O Bem, do mal, é bufão e cordeiro
O mal, do Bem, abusa, fala mal, escarnece
Só vencerá o mal um Bem que for guerreiro,
Que não se apacifique diante da peste

Maldade, em toda esquina, age e floresce
E o Bem, lá de joelhos, fazendo uma prece
Quem é do Bem me diga se tem cabimento
O mal fazer do Bem montaria e jumento

Desde que o mundo é mundo é o povo quem diz:
"Melhor cortar o tal do mal pela raiz"
Eu quero ver o Bem chutar o seu traseiro,
Zombar e fazer barba, bigode e cabelo!

Maldade, em toda esquina age e floresce
E o Bem, lá de joelhos, fazendo uma prece
Quem é do Bem me diga se tem cabimento
O mal fazer do Bem montaria e jumento

Até parece que o mal não pega mais ninguém,
É só um "deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem..."
Mas, se "eu não tô fazendo nada e nem você também...",
O mal ainda termina acabando com o Bem!

Eu rezo pelo dia em que o Bem se levante
E mande o mal à lona, num letal nocaute
Que com o mal se exima de ser elegante,
Que vire o tabuleiro e lhe dê xeque-mate!

***


3) SEIS HORAS

Só o Amor Constrói (2009)
A fórmula é simples: imaginem dois compositores geniais (cada um em seu estilo) que têm mais ou menos a mesma origem e uma trajetória de pequenas (mas constantes) vitórias colhidas após um plantio de muita teimosia, são amigos de longa data e resolvem, depois de vários anos de convivência, compor a primeira canção em parceria. Imaginaram? Acrescentem a isso um ferrenho engajamento, nem diria político, mas social, misturem bem e permitam que a canção refogue até ficar "no ponto". Depois, deixem que não esfrie e sirvam a gosto, tanto faz que seja no disco de receitas de um ou no do outro; o sabor sempre vai agradar àqueles de paladar mais refinado e que não têm nojinho de certo acre que apimenta o tempero. Provemos?

SEIS HORAS

Seis horas da manhã
Aurora faz o café
Genésio pega o bumba
Luzinete vai a pé

Seis horas da manhã
Francisco pega o boné
Rovilson busca leite
E Neide chama o

Pra viver de faz de conta
Trabalhar pra pagar conta
Pra viver de faz de conta
Trabalhar pra pagar conta

Aperta o despertador
É hora de levantar
Tem porca pra torcer
Tem boca para sustentar
Tem chão

Calçada pra varrer
Latinha para amassar
Tem muro pra erguer
Tem fila para procurar
Patrão

Seis horas da manhã
Aurora faz o café
Arlindo esquenta a kombi
Franciellen vai em pé

Seis horas da manhã
Francisco pega o boné
Rovilson busca leite
E Neide chama o

Pra viver de faz de conta
Trabalhar pra pagar conta
Pra viver de faz de conta
Trabalhar pra pagar conta

***

PS: (Pra quem está em Sampa) Não coincidentemente, essa trupe acima se apresenta nos próximos dias: Max Gonzaga faz com sua banda show hoje (28/4) no Garagem Vinil, com participações de seus companheiros da MPB Universitária (maiores informações aqui); sexta (29/4), Kleber abre mais uma vez os portões de sua casa pra nova, e já tradicional, Gira de Compositores (maiores informações aqui); e Adolar Marin leva ao palco do Brazileria, dia 3/5, seu disputado programa Na Minha Casa, com os convidados Sonekka, Renata Pizi e Marcia Cherubin (maiores informações aqui). Como veem, há diversões pros mais variados gostos nos próximos dias. Prestigiemos a música brasileira, que sempre soube se fazer soar em tempos de asfixia!

***

7 comentários:

  1. Coluna multitarefas, Leleo:
    Cultura, Protesto, Engajamento, Divulgação, Parceria e generosidade.
    A última é a palavra-chave que nos levará sempre mais "adelante"
    Avante!
    beijão

    ResponderExcluir
  2. Beleza, Léo! Quando do lançamento do CD "In Alpha...", onde aparece pela primeira vez o "Samba do Bem", eu juntei à letra, no encarte, a seguinte epígrafe, citando frase de Edmund Burke:
    "Há um limite a partir do qual a tolerância deixa de ser uma virtude." Acho que, com o golpe, foram ultrapassados todos os limites. Quanto à minha raiva colossal, que eu prefiro chamar de ira santa, raiva civil, ela tem endereço certo: É para todos os canalhas golpistas de todos os quadrantes, seja qual for o motivo que alegam.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Compreendo e corroboro, Cava. Aliás, por falar em "Samba do Bem", não achei na internet nenhuma gravação de seu disco, mas teve o lado bom, porque por causa disso acabei descobrindo a Karina.

      Beijão – santo e civil –,
      Léo.

      Excluir
  3. Oi Léo Nogueira!! Que bom que vc gostou da gravação do Samba do Bem! Eu tô fazendo show do disco nesta segunda, dia 10 de abril de 2017, as 21h, no Ó do Borogodó. Apareça!!!

    ResponderExcluir