sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Palavra É: 27) Melodia

No princípio, tudo era breu, e eis que do breu se fez a luz (Luiz?). Naturalmente, nesse mesmo princípio tudo era silêncio. Um deus tirano e surdo não permitia o som. Até que uns anjos conspiradores começaram a se reunir em horas mortas em tavernas nas quebradas da periferia celestial pra beber vinho e conchavar contra o despotismo do silêncio. Eles não tinham ainda o domínio da palavra, e tudo eram sussurros, cochichos, grunhidos. Com o tempo, foram aperfeiçoando a técnica, até que um dia, reza a lenda, durante uma dessas bebedeiras, uma garrafa caiu no pé de um dos conspiradores, e este, com lágrimas nos olhos, soltou um dó maior.

Antes de continuar, que conste dos autos que qualquer semelhança deste relato com algum filme do Monty Python não passa de intriga da oposição, essa mesma que não gosta de melodia (nem de cronistas bufões). Esclarecida essa questão, resta dizer que o dó saiu bonito, apesar da dor do anjo (ou por isso mesmo). E foi então que outro anjo, este mais esperto (devia ser uma espécie de antepassado dos maestros), ao notar a limpidez da nota derrubou inadvertidamente outra garrafa no pé de outro anjo, e lá veio um ré, depois uma outra no pé de outro, que soltou um mi (na verdade, foi mais um mi-mi-mi), e as garrafas daí por diante não pararam mais de cair...

Foi assim que nasceram, da junção dessas vozes de diversos timbres (umas mais graves, outras mais agudas; umas firmes, outras vacilantes), as notas musicais que, mais pra frente, muitas garrafas (e muitos pés) depois, passariam a compor melodias, o que prova por dó mais ré (ao cair em si) que Baco ajudou na invenção da melodia. Sim, e tem mais, depois dessas melodias nascidas do vinho derramado, os anjos descobriram que mais longe ainda, quase na fronteira entre o Olimpo e a Linha da Cintura, digo, do Equador, havia o lar recreativo das anjas, onde, em bacanais bacanas, fizeram-se homens. E despiram-se de suas asas — já não precisavam mais delas, pois agora eram poetas.

Depois disso, palavras fizeram amor com melodias, empenharam-se em emprenhá-las, e rebentaram canções mundo afora. Opa! Eu disse mundo? Claro. Porque faltou contar uma parte dessa história: o deus surdo, quando descobriu que seus súditos anjos ousavam fazer melodias nas suas barbas (além de outras relações ilegais, imorais e que engordavam), baniu-os(/as) do celestial silêncio, e esses primeiros inconfidentes se encontraram (perderam?) exilados numa terra distante, muito distante, onde se viram obrigados a, literalmente, dormir no barulho. 

Era o preço a pagar por sua desobediência. A partir dali, adeus silêncio. Tudo seria uma confusão (e profusão) de sons. Uma verdadeira babel de sons — e de sins. Em compensação, tudo era música, desde o choro dos bebês que vinham ao mundo até o choro dos velhos que o abandonavam. Passando, obviamente, por todas as demais etapas da existência, fosse de choro ou de riso. Ou de gritos ou de sussurros. E a melodia, mais que estar entre nós, passou a fazer parte de nós. A melodia contou — melhor dizendo, cantou — em apenas sete notas (bom, 12, se contarmos com suas cinco primas-irmãs) a história da humanidade. 

Onde houvesse dor, lá ela estava; de toda forma, onipresente, onde houvesse alegria também ela lá podia ser encontrada. Empanturrava nobres fartos e ao mesmo tempo consolava plebeus de barriga (e alma) vazia. A melodia corria mundo enchendo-o de encanto onde quer que se fizesse necessária. E ela se fazia necessária em todos os cantos (e quando digo canto é porque isso já acontecia muito antes de a terra ficar redonda). A melodia aproveitava-se de sotaques pra criar ritmos, e foi assim que se inebriou ao descobrir o Brasil.

Quer dizer, ela já o havia descoberto desde antes de seu batismo (de sangue), quando ingênuas criaturas que não careciam de roupa eram responsáveis por toda a melodia que aqui existia; contudo, com a chegada dos intrusos de língua engraçada, foi vendo tudo o que acontecia meio que como se não fosse com ela, mas deu um jeito de tomar as rédeas quando viu tanta dor, tanta injustiça, tantas peles de cores que não a branca vivendo e morrendo sem viver realmente. Foi aí que ela se apaixonou pelo Brasil e tratou de fazer da mistura de gritos uma música única, porque plural.

E a melodia trouxe a anistia; todos os santos da Bahia; a boa companhia; um novo dia; a euforia; a feitiçaria; a galhardia; a histeria; a isonomia; quem cantasse o que é mais estranho que o cu da jia; outra liturgia; a maestria; um diferente tipo de orgia; a popularização da poesia; gênios em grande quantia; a romaria; uma sonora soberania; a travessia; a utopia; os trabalhadores de vida vadia; a xenofilia; a zombaria; e, sobretudo, ali no bairro carioca do Estácio, um cara que juntou luz e melodia e viria a se chamar justamente Luiz Melodia, mas que nos seria tirado numa sexta-feira 13 que achou que era 4, quando percebemos que no fim tudo também é silêncio.

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Dedicada a Luiz Melodia.

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PS1: Quem escolheu a palavra desta vez foi meu mano Zeca Baleiro, não coincidentemente neste 13 de agosto travestido de 4.

PS2: Trilha sonora: Sérgio Sampaio e Luiz Melodia, Doce Melodia (Sérgio Sampaio)



PS3: E um bônus também a cargo do bardo das balas: Zeca Baleiro, O Silêncio (Zeca Baleiro)


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