terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Grafite na Agulha: 44) Rica Soares falando dylanês em tempos de xablau

Vou começar a prosa dando um conselho. Como alguns de vocês sabem, estou morando no Japão, e por aqui 99,9% dos profissionais engravatados vestem Prad..., digo, preto — a cor da moda. É quase, como direi?, uma ditadura do preto. O preto sóbrio pra usar no frio, o preto charmoso pra flanar no verão, o leve preto-primavera, o digno preto-outono... Daí, eis que na contramão surge um japa (um china? um ceará???) trajando, sei lá, cor de abóbora. Vai por mim: cola nesse cara, que ele deve ter ideias diferentes na cachola! Tá, pode se tratar simplesmente de um esquisitão, mas o que é a vida sem risco? Agora, rebobinemos (desculpem pelo obsoleto verbo).

Reza a lenda que a garoa de Sampa, quando o século passado agonizava, viu o momento em que um jovem roqueiro gaúcho de talento (in)discutível tirou a sorte grande e caiu nas graças de um conceituado roqueiro carioca (roqueiro rural, diga-se — pra bom entendedor nem preciso dizer que era um Rodrix...), que praticamente o adotou. E esse choque térmico geracional abalou as estruturas da Pauliceia — pra quem teve sensibilidade de sentir. Só que tempos depois o velho guru abandonou o guri, se empapuçou de tudo e entrou numas de desencarnar — só pra saber qual que era a de ver Jesus numa moto. E o jovem roqueiro, órfão de mestre e com o cetro na mão (eu disse o cetro!), resolveu... envelhecer. 

Tenho cá pra mim que quando ele tomou essa sábia decisão — talvez inconscientemente, talvez sem querer querendo — não fazia a menor ideia de onde ia parar. E tanto é verdade que ainda não parou (“caminante, no hay camino...”). O único certo nisso tudo é que aprendeu a sobreviver a overdoces, bad strippers, ayahuascas, backs de orégano e outras cocas e hoje virou quase um monge ben-safadista, um cara que estudou a fundo a obra de (GrouxoMarx só pra tirar um sartre e fazer umas apostas num decadente cassino de Los Engels. Resumindo, aprendeu a voar (s)em Alcatraz.

Para! (do verbo parar, não da preposição... é preciso avisar, agora que perdemos o acento diferencial) Rebobinemos de novo. Falemos um pouco de mim: eu, que convivi (e continuo convivendo) com alguns feras da Música (com M maiúsculo), tenho o (vão) orgulho de admitir que adquiri certo know-how graças a essa convivência. Não enumero pra não parecer blasé, vou apenas, como dizem os latinos, al grano: conhecer Rica Soares (o tal supracitado roqueiro gaúcho) e tentar entender um pouco de seu modus operandi foi algo que me ensinou que arrotar humildade não é lorota, é, sim, sinal de aprendizado — e, por que não?, evolução. 

E eu, que fui dos poucos que conheço que viram o filme O Homem de Alcatraz (não confundir com Alcatraz — Fuga impossível, igualmente bom), acabei indo parar, no segundo semestre do ano passado, na casa de uma amiga cujo nome não vou revelar (digo apenas que começa com Cláudia e termina com Salto), convidado — juntamente com a patroa — a ter a inesquecível experiência (até onde me lembro) de não só ouvir em primeira mão o novo trabalho de Rica Soares, mas também filar uma boia por ele preparada, enquanto o próprio explicava os ingredientes (feitiços?) de suas culinária e música.

E assim, tão certo como dois e dois são cinco (sete?), de barriga cheia e com uns gorós nas veias, tive o privilégio de adentrar pela maioridade musical daquele ex-jovem roqueiro gaúcho. E, pasmem: justo ele, dono de uma piccola voz e de um violão mirradinho que teimava em tocar no automático uma sequência (em loop) de manjados acordes, vinha mostrar a uma seleta (não confundir com a cachaça) e atenta plateia novas futuras pérolas do roquenrol brasuca, recheadas de uma ácida verve poética que só poderia nascer da mente de um sujeito vestido de cor de abóbora — mesmo que no dia ele estivesse trajando preto.

Senhoras e senhores, deparei-me, embasbacado, com um discaço! Daqueles que mereciam até virar LP, só pra gente ter o trabalho de levantar o traseiro do sofá após a primeira metade da audição e ir trocar o lado da bolacha. E também pra resgatar o velho costume de ler o encarte, visto que suas letras (a propósito, leia-as aqui), de um original senso poético, nem precisavam ser tão boas como calharam de ser. RS, valendo-se apenas de seu conhecimento técnico (que, convenhamos, não é pouco), conseguiu lapidar o que viria a ser esse diamante musical de alta qualidade sonora, feito pra ouvir com o volume no talo — e não só pra se vingar dos vizinhos de gosto duvidoso. 

Aliás, apesar da consistência sonora do trabalho, não penso me enganar ao afirmar que são suas letras que valorizam as melodias. RS podia tranquilamente enveredar pela literatura e se dedicar a escrever ensaios acerca dos vários assuntos que domina, mas optou pela estrada esburacada (e cheia de pedágios) da canção. E, sim, é ao mesmo tempo um roqueiro à moda antiga (desses anteriores à pasteurização "midiótica") e um compositor/arranjador do mais alto grau de modernidade — e talvez a primeira qualidade explique a segunda. Pra terminar, sei que agora vocês devem estar se perguntando os motivos que me levaram a começar esta prosa falando dos men in black japoneses. Explico: porque, em meio a tanto roquinho meia-boca e monocromático que (não se) toca por aí hoje em dia, RS é o cara que vem trazer todo um arco-íris ao gênero. Sem esquecer a abóbora.


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O Pleonasmo Redundante de Rica Soares (2017 — independente)

1. Deuses Astronautas
2. Um Cara em Busca de Si Mesmo
3. Sossegado Desespero
4. Kid
5. Homem-Pássaro de Alcatraz — participação de Sander Mecca
6. Balada do Cavaleiro da Triste Figura
7. O Vírus
8. Canção Pro Tempo Passar Devagar
9. Eu, o Nico e o Papaléguas
10. Último Tango em Neverland
11. Bonde do Apocalipse
(Todas as canções acima são de autoria de Rica Soares)

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Ouça o CD na íntegra aqui:


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2 comentários:

  1. Que texto, que homenagem, que homenageado! Curtindo agora o CD do RS, qu'eu conheço pouco, mas devia conhecer mais. Obrigada, Léo. Abraço.

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    1. Oi, Silvia! Nós que agradecemos. pela leitura e pela audição respectivamente.

      Abraços,
      Léo.

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