segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A Palavra É: 36) Neve

Deus, quando tá de bom humor, lá dos céus manda aos ateus provas de seu amor. E se faz pintor, como se sua janela fosse uma grande tela... e o mundo, uma aquarela. E se faz poeta — sua brincadeira predileta. Digamos que chuva seja prosa; e neve, poesia. Por quê? Porque chover chove todo dia. Já a neve Deus dosa. Versos não são pra qualquer estação. Tem que ser algo especial, grande ocasião, como se Sobral fosse ao Japão. Enfim, tudo isso porque enquanto o poeta escreve lá fora cai neve. E num canto de seu olho cai pranto. Tudo é encanto pra quem sabe lançar a cada paisagem um novo olhar. É assim que a miragem vira realidade; e a verdade, ficção. E quem pode afirmar o que é real e o que não? Na dúvida, vá visitar outra dimensão.




Aliás, alguns sonhos parecem reais, mas não passam de ilusão. Assim como também o jornal mente e o crente acredita. Reflita! Ok, eu sei que neve demais tira a paz de quem trabalha. Atrapalha. Tudo para e fica aquela expressão rara na cara do sujeito. Mas isso não é defeito, é só a natureza botando a mesa — pra não dizer botando banca. Afinal, a neve é branca apenas pra que o homem apure as antenas e veja melhor como a humanidade é pequena frente à cena. Um homem é um floco de neve, um grão de areia; às vezes, perde o foco e alardeia que é o tal, mas não passa de mais um animal... e de uma raça muito sem graça, porque é a única que maltrata e mata quando não tá com fome. Isso tem nome.



Mas deixa pra lá, que cá neva, e é isso o que agora importa. E é branca pra afastar a treva. Bate a minha porta suavemente; um presente. Como disse numa canção, chega "caindo em gotas musicais", pra banhar o coração, pra ganhar o cidadão. E eu quero é mais. Pensando nisso, refleti que talvez a beleza nem seja a neve em si, mas esteja na pureza de quem vê com um quê de surpresa, basbaque; como o destaque da criança que lança um olhar lilás sobre coisas triviais. Mais tarde, quando a gente se acostuma, o olhar perde o alarde e o encanto se esfuma, vai com a bruma. É a hora da encruzilhada, em que quem vira à esquerda vai ser poeta e quem vira à direita não vai mais ver nada... ao menos com aquele olhar que penetra o que se vê. Veja você.



Boa imagem essa. Ser poeta é não ter pressa, é desfrutar da paisagem. É penetrar o visto com o olhar, meio que um misto entre (ab)sorver e gozar. E é assim que ele faz parte do universo: o que recebe, filtra, reparte e devolve em verso. E, quando versa, é uma espécie de conversa. Parece complexo, mas é simples como o sexo. É fato. É ato, desacato, é abstrato e ao mesmo tempo concreto. É o feto que se faz rebento, como o encanto do momento em que a mãe dá à luz. E a isso há que se fazer jus: não existe poesia maior (nem melhor) que o ato da maternidade, que é feito de magia e amor. Um filho é um poema que leva nove meses sendo escrito; é um ecossistema bonito; uma engrenagem perfeita e maravilhosa. Rebento é o casamento da poesia com a prosa.



Neve, quando cai, vai dançando; é bolha de sabão, é floco de algodão. Meio que cai na horizontal, na transversal; se move como mãos de um maestro regendo, ambidestro — bonito que só vendo (e mais que quando tá só chovendo). Mais bonita ainda é a linda vista panorâmica (quase de cerâmica) dos telhados todos brancos, recebendo os flocos saltimbancos e espelhando o céu. Um impávido e mudo escarcéu se reflete em tudo, e o cidadão nem sabe bem, olhando além, na imensidão, onde é céu e onde é chão. É um filme tão hipnotizante, que nesse instante a gente nem liga pra televisão — que até fica sem fala esquecida na sala. Na hora em que o céu nos faz carícias, pra que querer saber das notícias?



Quando vi neve pela primeira vez, chorei mais que os bebês; mas de felicidade. Pra quem nasceu numa pequena cidade do sertão do Ceará, se desabalar por esse mundão e ver coisas tantas: plantas, mares montanhas... Belezas tamanhas com que a natureza presenteia quem tem a manha de permitir que a grandeza lhe invada as veias, de se encantar com o brilho da lua cheia (como por vez primeira), de se enredar nessa arteira teia de façanhas de deixar as aranhas com inveja — pra quem tem gula e se estimula não há desconsolo: todo o bolo é a cereja, e até a segunda(-feira) é de primeira. Entra ano e sai ano, no cotidiano também se pode conter fantasia. Pra ver, basta pedir emprestado o olhar da poesia.



Entretanto, além (aquém?) da neve há o "censurar ninguém se atreve"; a eternidade de um encanto breve; o sol e sua clave; quem (pro)paga o que deve; quem esquece o que escreve; a febre do grupo The Fevers; quem é contra greve; quem não sabe o que houve; quem não sabe do que se trata, mas se inscreve; quem tem a alma jovem; quem tem a alma leve; quem nunca se move; a prova dos nove; aquele que obteve; quem condena, que prove; quem vê neve no Quebec; tudo o que não usei, mas retive; quem sempre acha que tá suave; aquele velho jogador argentino (por onde andará?), o Tévez; quem vê a vida de ultraleve; quem tá vivo, mas não vive; e a rima em Z, que vou ficar devendo pra você. E agora peço licença e vou voltar lá pra fora porque a vontade é imensa de ser de novo criança e convidar a neve pr'uma contradança.



Quer saber o que pensei? Olhando pro céu, cheguei a um veredicto pessoal: Papai Noel atrasou; pra mim, hoje é que é Natal.



***



PS1: De novo, a palavra quem escolheu fui eu.



PS2: Trilha sonora: Élio Camalle, Documentário (Léo Nogueira)




PS3: Essa canção merece uma explicação. Foi composta por mim há alguns anos durante uma viagem que fiz de trem-bala (sozinho!) de Tóquio a Kobe; a letra é um relato do que vi nesse percurso. Aliás, copio-a abaixo:

DOCUMENTÁRIO

Eu vi
Como na tela do cinema
Ali
Pela janela de um trem no Japão
Sorrir
O Monte Fuji imponente
Que parecia um sorvete
Ao alcance da mão
Senti
Que a humanidade é tão pequena
E li
A poesia visual que é
Poder
Olhar quilômetros de neve
E vi o quanto a gente deve
Sempre agradecer

Eu vi
Um quadro vivo
Um livro natural
Montanhas no quintal
E no céu
Passava um avião
Senti
O mar nas veias
Idéias que virão
Pois os poetas são
Tradução do mundo
Na canção

***


4 comentários:

  1. demais, Léo!!... pensando, essa é a primeira crônica qu'eu não dou risada; estou emocionada com a descrição da tua emoção. o Japão lhe faz bem, mais melancólico diria, mas de um lirismo que faz bem. o Japão lhe faz bem. curta e nos presenteie, então, enquanto durar. te abraço. obrigada.

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    1. Oi, Silvia. Só vi agora esse comentário. Puxa, obrigadão! A distância nos deixa mesmo um tanto melancólicos, mas tem seu lado bom, né?

      Abraços,
      Léo.

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  2. Obrigada por me ter "levado" até você, muito lindo Leo.

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