segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Esquerda, Volver: 26) Talento vs. ideologia

Engraçado, o velho Cazuza dizia que queria uma ideologia pra viver, mas atualmente tenho visto muito artistas terem seu talento espinafrado justamente por ter uma. E isso acontece dos dois lados. Do lado de lá, por exemplo, já li muita gente recomendar que parassem de ouvir Chico Buarque, porque ele é um petralha e tal. Da mesma forma, os de esquerda costumam relativizar o talento de gente como Fagner e Roberto Carlos (pra não falar em Lobão, Roger & cia.). Acho isso um perigo, além de ser desrespeitoso com a obra da pessoa criticada. Vejamos: por que Carlos Vereza é um lixo e Osmar Prado é um gênio da raça? Por causa de seu pensamento político? E se invertêssemos os sinais? Daí o primeiro é que seria gênio e o segundo, lixo? Percebem a cilada em que caímos?

Do fundo do coração, sinto verdadeira repulsa por uma figura como Regina Duarte (e, reparem, escrevi antes de saber que ela agora está à frente da Secretaria de Cultura), mas me refiro à pessoa e às ideias. Décadas atrás, quando a via na novela Roque Santeiro, eu a amava. O que mudou? Por acaso, o fato de ela ter se revelado um ser humano equivocado (em minha concepção) a transforma numa atriz caricata e decadente? Ela pode, sim, estar prestando um desserviço a sua classe, mas o que ela faz quando não está interpretando é uma coisa completamente distinta de seu talento como atriz. Não acho que alguém "desaprende" seu ofício por causa de suas opiniões políticas. Sim, existem muitos profissionais que de repente perdem o brilho, se cansam ou mesmo, como disse acima, desaprendem, mas isso não tem necessariamente ligação com suas convicções.

Inclusive, não estarei de todo errado se disser justo o contrário: em muitas ocasiões, sobretudo na literatura, o talento de alguém a serviço do panfletarismo depõe contra seu autor. Há que se ter muito cuidado quando se cria uma obra pra não cair no simplismo didático que transforma personagens em caricaturas. O comunista Jorge Amado, apesar de seus exageros, costumava presentear-nos boa literatura social sem ser piegas. Não à toa é ainda hoje um de nossos autores mais lidos. Na música, e por falar em Chico Buarque, temos nele um exemplo de quem conseguiu abordar temas sociais sem cair na armadilha panfletária. Outros não conseguiram. Geraldo Vandré, por sua vez, em uma ou outra canção meteu os pés pelas mãos. E vestiu tanto a carapuça de salvador da pátria que pirou. 

Por outro lado, há aqueles que são chamados de alienados por fugir dos conteúdos sociais. E eu pergunto: será isso pecado? Analisado no calor do momento, pode até parecer que sim, mas quando pensamos na longevidade de uma obra esse detalhe acaba perdendo força. Há aqueles cujas preocupações sempre foram mais o indivíduo, os labirintos da alma humana, as questões existencialistas, e deixaram pra posteridade verdadeiras obras-primas. Da mesma forma que os românticos, sejam eles poetas ou compositores. Nem todos são versáteis e "sacados" (não confundir com safados); há aqueles que só fazem sambas, há aqueles que só fazem rock, há outros que só cantam o amor... o importante é saber distinguir quem faz bem o que faz de quem só joga pra plateia.

Se essa moda de esculhambar artista que não pensa como a gente pegar (aliás, já pegou), nós é que vamos acabar caindo numa armadilha, pois há muitos destes que são de deixar militante maluco e milico molusco. Se pensarmos num cara como Caetano Veloso, que ora diz X, ora diz Y, ora muito pelo contrário, o que faremos? Hoje, seu pensamento condiz com o nosso, então ele é fantástico, maravilhoso, superbacana... daí, amanhã ele acorda com a pá virada e desdiz o que disse (ou pede pra esquecerem o que escreveu, como já disse outrem), e então? Jogaremos suas belas canções no lixo e o chamaremos de imbecil, ridículo, gagá? E Lobão, que já gritou "Lula lá" em pleno Domingão do Faustão, depois "endireitou", bolsonarizou e desbolsonarizou... e sabe lá o que ainda uivará... Eu prefiro não querer mais revanche.

Meu brou e parceiro Teju Franco, grande compositor e que tem se revelado igualmente grande na prosa político-jornalística, reconhece que vez por outra não consegue evitar criticar com o fígado; e eu, que não sou o anjinho que esta crônica pode querer pintar, também admito que vira e mexe tenho ganas de voar no pescoço de um ou outro artista de pensamento enviesado, mas depois olho pra trás, leio um pouquinho de história, paro, penso, reflito e procuro não me manifestar contra indivíduos de quem discordo. Quer dizer, indivíduos não, artistas, pessoas públicas. Afinal, já estamos bem grandinhos e não precisamos mais nos espelhar no que pensa outro ser humano que por um ou outro motivo se tornou mais conhecido que nós (vaidade das vaidades, né, Curci?).

A verdade é que, como já me disse um parceiro certa vez, somos todos miseravelmente humanos, portanto sujeitos às intempéries de nosso tempo e nosso convívio social. Tivéssemos vivido na época de Monteiro Lobato, não é impossível que fôssemos racistas por osmose; no século 19, poderíamos considerar a mulher um ser inferior; fôssemos nobres no século 17, pensaríamos que a plebe era rude; pertencêssemos ao clero na época de Galileu Galilei, iríamos sonhar com tal herege queimando numa grande fogueira; etc. e tal. Provavelmente, os que viverão no próximo século (se ainda houver humanidade), quando lerem sobre nós, considerar-nos-ão uns boçais antiquados. Assim sendo, quem somos nós pra apontar o dedo na direção do outro e atirar a primeira pedra? "Covarde, sei que me podem chamar..."

***

8 comentários:

  1. Muito bom. Mas realmente fica um bode de quem diverge frontalmente, principalmente a direita. Eu as vezes tento separar a obra da postura política, mas fica difícil, principalmente quando não li ainda.. exemplo Mário V. Llosa. Detesto o posicionamento político dele e o papel que teve no Peru;como não li nada dele até hoje, apesar deos elogios que todos fazem, ele fica pro fim da fila, porque tantas outras leituras prioritárias, que na me ânimo a conhece-lo....

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    1. Porra, O Zi! Que canseira me deu agora! Tinha escrito pra caramba, daí, quando fui enviar, o blogger fechou, tive que entrar na conta de novo e perdi tudo o que tinha escrito! Que foda!!!

      Querido, resumindo, genialidade não tem a ver com convicções políticas. O exemplo que você deu é muito bom: Vargas Llosa é genial; já li vários livros dele e digo sem medo de errar que é um autor que vale a pena ser lido. Não à toa ganhou o Nobel. Se lermos/ouvirmos/vermos só aqueles que pensam como nós, estaremos limitando muito nosso leque de conhecimento e nossa bagagem cultural.

      No mais, acho válido, justo até, espinafrar artistas que pisam na bola; o que não acho justo é que, por causa disso, critiquemos suas obras.

      Abração,
      レオ。

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  2. Nada! Vaidade é escrever um texto inteiro com intenção de ensinar as pessoas como se manifestar na internet ou como se comportar com os artistas com uma ideologia diferente. Quer que te chame de mestre? (Não chora. Foi só piada, como diria seu comediante preferido, o Padilha)

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    1. Queridona, sinto muito se a História (com H maiúsculo) me dá razão. As picuinhas do momento em que vivemos passam, a Obra (com O maiúsculo) fica. Pena que não estaremos vivos pra eu te dizer "Tá vendo como eu tinha razão?". Claro que, se olharmos pra trás, nem precisamos esperar o que virá. Mas, se quiser me chamar de mestre, pode (Não chora, foi só piada, como diria meu comediante preferido, o Padilha).

      Beijos,
      レオ。

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  3. Minha (re)visão sobre o assunto é muito simples: eles não estão nem aí se os julgamos e apoiamos ou rejeitamos por suas posturas (políticas). Todos os citados são personas públicas que já conquistaram seus lugares, apropriadamente ou não, estão com as cadeirinhas guardadas na máquina produtora de ideias, para fazer a cabeça do povo e já se posicionaram muito bem - os que você cita - de que realmente não se incomodam se suas obras são bem ou mal quistas, em decorrência das falas; os lugares foram cavados numa época em que a ditadura estava em ação, fincaram suas bandeiras e a indústria continuará a usá-los para o propósito requerido, e eles ganharão sua graninha e voltarão para seus reinos.
    Nossa opinião é apenas conversa de bar para eles. E há a propaganda reversa, em que uma opinião polêmica causa mais efeito mercadológico que até o boca-a-boca.
    O que me incomoda mesmo é a vinculação dessas personas às diversas formas de propaganda que faz com que as pessoas ajam desta ou daquela maneira que eles legitimam ao se darem ao direito de usar seus "sorrisos colgate" para venderem produtos e ideias. O lado individual em que se posicionam politicamente não produz quaisquer mudanças na venda de seus produtos artísticos.
    Mas, abro uma exceção para um acontecimento diferenciado: Gal Costa lançou um disco dando uma entrevista em que se posicionava ao lado do "coronel" Antônio Carlos Magalhães. Apesar de ser um grande trabalho, o produto mal foi vendido, vindo a ser considerado um produto menor. Mas esta é a sina dos baianos, pois se tem uma figura política que se utilizou dos artistas baianos para promover seu Estado foi o ACM, e o quarteto passou por poucas e boas por ter que homenageá-lo - nenhum deles sofreu algo em suas vendas por este motivo. E mesmo a "namoradinha" perdeu público pelas posturas dela. Os que perderam é que não possuíam estabilidade no mercado. Imagina só, se a própria Globo pouco se importa com opiniões particulares de seus artistas - conforme a representatividade - imagina as nossas opiniões.
    Acredito que devamos continuar deixando falar o que nossas paixões levam a expressar pois, afinal, somos apenas expectadores, individuais, e o que achamos ou não, não fará diferença alguma, pois sejamos sinceros pelo menos com a gente, não? A gente nutre uma vontade de participação ativa neste sistema corporativo onde representamos apenas o papel de consumidores de produtos. As ideias vão e vêm e eles sabem que será esquecida no próximo (com)passo.
    Mas, a ideia do texto e o próprio são muito bons.
    Abraço, Leozim!

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    1. Meu caro Érico:

      Você, que é um cara inteligente, devia perceber que: 1) citei um punhado de artistas (assim como podia ter citado outros) que estão vivos, mas minha ideia não é falar DELES, mas desse comportamento momentâneo. Por isso tentei jogar a situação em outra perspectiva, dizendo que as picuinhas de um tempo passam, as grandes obras ficam, quer queiramos quer não; e 2) não quero mudar o mundo; seria pretensão demais. Mas tenho minhas opiniões e um blogue pra publicá-las; portanto, por que não o fazer?

      Abraços,
      レオ。

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