terça-feira, 23 de agosto de 2011

Crônicas Desclassificadas: 20) Uma tarde kafkiana no circo da Polícia Federal

O Brasil sonha alto, mas os degraus que faltam pra que ele chegue aonde almeja ainda são muitos. A mão de obra desqualificada é um dos pontos mais delicados em nossa estrutura (não só) de atendimento ao público. A falta de respeito ao tempo alheio chega a ser revoltante. Sem falar em determinadas escolhas geográficas onde se erguer um órgão que devia ser de fácil acesso a todos (um elefante branco funcional?). Mas vou começar pelo começo.

K é estrangeira, casada com o brasileiro L. Possui, portanto, o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros), que tem validade renovável de dez anos. Pois bem, no começo do ano, como vencesse o seu, K lá foi à Polícia Federal com os requeridos documentos, dar entrada na renovação daquele. Após muitas horas desperdiçadas em encontros e desencontros, filas erradas, atendimentos que se contradiziam, voltou pra casa com um nada prático protocolo de papel retangular que lhe iria servir de documento temporário enquanto o novo era providenciado. Até que chegou o dia de ir buscá-lo...

Raciocinemos: em qualquer estabelecimento decente de atendimento ao público, seja ele de qualquer natureza, supõe-se que, se alguém vai retirar algo que está pronto (e com data marcada!), irá gastar, quando muito, 15, 20 minutos... Na Polícia Federal não é assim. O calvário começa já na condução a ser tomada. O pomposo prédio está localizado na Lapa de Baixo, numa rua (quase beco) escondida em meio ao nada, numa região onde não há quaisquer estações de trem, metrô, ou terminal urbano de ônibus. Se uma pessoa mora, por exemplo, no Jabaquara (Zona Sul de São Paulo), irá gastar por volta de duas horas pra chegar até o referido prédio (se o trânsito estiver bom!). Mas voltemos a K e L.

O casal lá chegou por volta das 13h30. Embora houvesse dois guichês, não havia nenhum funcionário atendendo. Em meia hora de espera, a fila praticamente havia dobrado, até que uma funcionária se dignou dar o ar da graça e voltar a seu posto. Parecia uma adolescente. Aliás, 90% das atendentes eram mulheres, digo, meninas! Uns quinze minutos depois voltou a segunda, esta já beirando os 50 (e com uma expressão de aborrecimento que não procurava esconder).

Lentamente a fila foi diminuindo. Notava-se a predominância de sul-americanos, grande parte de origem indígena, o que levava a supor que se tratasse de paraguaios, bolivianos e peruanos. Entre eles havia uma boa dúzia de mães com crianças de colo (algumas com mais de um filho); L notou mesmo um recém-nascido. Em segundo lugar vinham os chineses. Dois estadunidenses conversavam alto e animadamente. Um deles, de terno e gravata e atitude de resignada superioridade, de vez em quando consultava seu relógio e dava de ombros. L, observando-o, embora não dominasse o inglês, pescou meia dúzia de palavras não muito simpáticas proferidas pelo homem (loiro), que parecia dizer: "OK, fazer o quê? Aqui é o Brasil, não podíamos esperar nada diferente."

Finalmente chamaram K. Seu rosto se iluminou num sorriso. Já imaginava o suculento prato que iria encarar dentro de alguns minutos. Ainda não havia almoçado. Doce ilusão! Agora ia começar a segunda (e pior) parte de seu sofrimento. Pediram-lhe que aguardasse ser chamada, "Atrás da faixa vermelha, por favor!". Atrás da faixa vermelha, espremidos como num curral, cerca de cinquenta estrangeiros aguardavam, estupidificados, o momento de ouvir seus nomes. L nem pôde ficar com a esposa, o limitado espaço não permitia.

Às 16h30 K ouviu (pronunciado errado) seu nome. Quando pegou em suas mãos o tão esperado RNE, o alívio foi tão grande, que nem reparou que a validade deste era de apenas... nove anos! No ônibus se deu conta; enfurecida, só lhe restou lamentar. Depois de tudo, ainda lhe roubavam um ano, pra tornar a tarde de todo inesquecível. Nem valia a pena voltar e reclamar. Só de pensar em ter que voltar ali mais duas ou três vezes a cabeça já ficava zonza.

Desceram no centro e entraram num restaurante famoso de nome não muito, digamos, limpo, e pediram uma bisteca, aliás, uma bisteca tamanho família, acompanhada de uma cerveja, como dizem, estupidamente gelada (pra rebater o calor e a tarde estupidamente perdida). Saciados, restava-lhes ainda a volta. Em pleno horário de pico, pensar em tomar qualquer condução era uma a(des)ventura a ser descartada. Preferiram fazer a digestão caminhando. K ainda teve estado de espírito suficiente pra, lembrando-se da bisteca e da inútil fila, filosofar: como podia um país ser ao mesmo tempo tão maravilhoso e tão horrível?

***

3 comentários:

  1. Léo
    Li. Gostei do relato. Mas não gostei de ver o sofrimento que foi imposto ao casal l/k - que suponho conhecer.
    Abraços
    Paulinho das Frases

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  2. Paulinho das frases disse2...
    Léo
    Ocorreu-me agora episódio que tem alguma semelhança com seu relato. Qdo fui para os EUA, mil anos atrás, depois de provar que eu tinha raízes aqui (leia-se pai, mãe, família, faculdade boa e, principalmente, grana aqui no Brasil) o Consulado me deu visto de um ano ou mais, não me recordo.
    No aeroporto, o burocrata pergunta o que iria fazer lá. Disse que seria um curso de dois meses e que iria viajar. Sem dizer nada, o burocrata reduziu para três meses meu visto. Reclamei. Ele disse que seu eu quisesse, que falasse com ele e que ele "daria um jeito". Muito atravimento, o meu direito líquido e certo ele transformou em uma eventual generosidade que ele iria me conceder ou não.
    Esses postos são fabulosos para quem precisa se auto-afirmar (com hífen, ou sem hífen???)

    É isso. Encontrou um que gosta de escrever tanto quanto você, não é mesmo???

    Aliás, liás, já descobriu o que quer dizer síntese??? Pelo jeito, tb preciso descobrir
    Abraços
    Paulinho das Frases

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  3. Oi, Paulinho!

    Por partes: 1) Não, você não conhece. Esta é uma obra de ficção. Inclusive, o posto da PF é totalmente inventado. 2)Tristemente interessante seu relato. Mas faltou dizer se no final você ficou um ano ou três meses. 3) Autoafirmar, sem hífen (e feio pra burro!). 4) Tô te corrompendo a meter os dedos nas teclas, hem? Hahaha!!! 5) Sim, sei o que é síntese. Sei até usar, mas o resultado deixa de ser "nogueiriano".

    Abração do
    Léo.

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