quarta-feira, 11 de abril de 2012

Os Manos e as Minas: 7) O coração do Homem-Bala

Estes são tempos difíceis pra quem gosta de música artesanal (e pra quem faz). As grandes gravadoras, em crise, mas sem dar o braço a torcer, tentam ver se conseguem chegar ao fundo do poço ("aquele poço não tem fundo"). Por sua vez, os mimados (e os nem tão mimados) artistas que outrora levavam multidões a seus shows sentem dificuldades pra se adaptar aos novos tempos, o das vacas magras. E muitos não conseguem manter a dignidade. E poucos conseguem ser generosos, preocupados que estão com o próprio umbigo.

E, ensanduichada no meio desse amargo e amanhecido pão, está toda uma classe de quixotes que, por pura teimosia (né não, Adolar?), tenta ir em frente, fazendo de conta que são moinhos os dragões. Pensei bastante antes de começar a escrever estas linhas. Não queria parecer piegas, muito menos baba-ovo, mas fui vencido por meus instintos. Afinal, a verdade tem que ser dita. Fazer música, pra quem sabe, é fácil. Cantar, pra quem sabe, é fácil. Mas estender a mão, que é tão fácil, é difícil pra caramba.

E estender a mão é o que sabe fazer como poucos meu querido e admirável Zeca Baleiro. Que nem precisava. Grande cantor e compositor dos mais inspirados, Zeca traz em si a generosidade dos grandes. Acompanho de perto sua carreira desde que ouvi por vez primeira a canção Bandeira (até rimou!). A voz aveludada e ao mesmo tempo agreste, o lirismo da letra, a melodia pungente, tudo ali me fazia detectar que nascia um artista com "estrela, flor, estilo".

O tempo me mostrou que eu estava certo. Lembro-me mesmo de um dia em que creio que o próprio Baleiro se espantou com sua popularidade. Tratava-se de um pocket show que ele faria na Fnac de Pinheiros. Como nunca o tinha visto ao vivo, cheguei cedo e sentei-me na primeira fila, pra companhar de perto sua apresentação. Era um show de divulgação de seu então novo trabalho, Líricas. E ele, se não me falha a memória, teve que parar na terceira canção, tamanho era o tumulto feito por uma multidão de gente que ficara do lado de fora. Chegou a ser engraçado vê-lo arregalar os olhos meio que assustado, sem entender o que se passava. Seria um princípio de incêndio? Era, sim, Zeca. E a brasa desse incêndio queima até hoje, e cada vez mais, mora?

Outra história que merece relato contou-me meu mano Élio Camalle. Disse-me ele que certa vez, quando ele ainda era músico do Quase Acústico, apareceu por lá um rapaz magricela de fala macia, que iria fazer o show daquela noite. Acabou que o show não houve, por falta de público. E ficaram eles, Zeca (o tal rapaz magricela) com a esposa, CamalleZé Luiz e Rozana (os dois últimos, proprietários da casa), proseando e bebendo noite afora. E o moço aparentava tranquilidade, apesar do ocorrido. Acho que naquela noite na Fnac deve ter passado por sua cabeça um filminho com essa e outras cenas de sua trajetória.

***

Sou cearense, filho de pais com pouca instrução, mas possuidores de muito caráter e muito amor. Nesse berço familiar forjei minha personalidade. E quando entrei em contato com a família Santos detectei essa mesma linhagem de família nordestina, apesar de possíveis diferenças de percurso. Primeiro foi Lúcia Santos, excepcional poeta e irmã de Zeca. Quando a conhecemos (eu e Kana), em pouco tempo parecia que ela era uma velha amiga, tão espontânea e à-vontade era em nossa companhia. Infelizmente, um dia se cansou do corre-corre paulistano e voltou pro sol de São Luís. Mas acho que fez isso só pra valorizar cada vez mais suas aparições por cá (se foi por isso, conseguiu).

Em seguida conhecemos o irmão, o tal José de RibamarKana estava gravando seu terceiro disco, Imigrante, e pensou em Zeca pra participar de uma faixa, um tecno-arrasta-pé (O Primeiro Passo), que na realidade era uma versão minha pra um antigo sucesso japonês (Yume No Naka He) do compositor Yosui Inoue ("espécie de Bob Dylan samurai", nas palavras de Zeca). Feito o contato, auxiliados por Lúcia, seu "sim" veio tão fácil e naturalmente que até nos espantou.

Achou uma brecha em sua agenda e ofereceu-nos mesmo seu estúdio pra gravação (ainda ganhamos de brinde a participação carinhosa e mais que especial de seu sanfoneiro, Adriano Magoo, e a competência e a "genteboíce" - by Tavito - de seu técnico de som, o Shina). Nessa mesma tarde soube por boca do próprio Zeca que eu era seu parceiro, pois ele acabara de musicar uma letra minha, que eu lhe havia entregado fazia um tempo. Por motivos que fogem a nossa competência, o Imigrante acabou saindo apenas no Japão, mas nem ante esse tropeço o moço esmoreceu conosco.

Tempos depois intermediei outra participação dele, dessa vez no disco Volver al Inicio, da uruguaia Samantha Navarro, cantando outra versão minha, dessa vez pra uma canção de Samantha chamada Arenal. E lá fui eu novamente a seu estúdio, atrapalhá-lo enquanto cantava a, em português, Areal. Fui coadjuvante de outro fato pitoresco nessa tarde. Num intervalo da gravação fomos (eu, Zeca e Shina) tomar um café e encontramos ninguém menos que Guilherme Arantes, que se sentou conosco pra prosear um pouco. Guilherme, por acaso, fora o patrono (e fizera o show de encerramento) da Fampop (conceituado festival de música de Avaré-SP) no ano em que ganhamos (eu, Kana e Élio Camalle) o primeiro lugar com o xote Bye Bye, Japão. Ele se lembrava.

Só que aí chegaram duas fanzocas de Zeca e ficaram ali de ti-ti-ti com o ídolo. Uma delas deu uma olhadinha de rabo de olho pra Guilherme fazendo cara de "quem é esse aí?". Pra tornar a situação menos desagradável, engatei uma prosa com este, por dentro me roendo da ignorância das moçoilas. Pô, gente, não saber quem é Guilherme Arantes é o fim do resto (como dizem atualmente)! As moças se foram, Guilherme se foi, e, na volta pro estúdio, comentei o fato com Zeca, que, reflexivo, sentenciou: "É, Léo, hoje é ele, amanhã sou eu."

***

Já disse aqui mais de uma vez que considero Kana uma artista excepcional, dona de uma voz afinada e singular, melodias belíssimas, profissionalismo (escreve música, arranja, toca vários instrumentos etc.) e que se sente em casa no palco, arrebatando plateias com seu carisma e seu humor espontâneo. Por conta disso, sempre a achei uma mina de ouro a ser explorada. Contudo, apenas duas pessoas investiram nela seriamente: Vasco Debritto e Zeca Baleiro.

Vasco (pra quem não conhece, trata-se de um compositor brasileiro que passou vinte anos no Japão, onde tem uma gravadora, a Koala Records, totalmente voltada à MPB) se encantou com ela a ponto de bancar-lhe um CD, o já citado Imigrante. No entanto, uma série de fatores impediu que o CD fosse lançado no Brasil. Por conta disso, após quatro anos de espera e praticamente sem produzir nada, Kana viveu um longo período de depressão, pensando mesmo em desistir da carreira. Lembro-me de que certa vez, como eu fosse só a uma das noites autorais do CaiubiTavito perguntou-me por Kana. Respondi-lhe com sinceridade que ela estava desanimada, pensando em desistir de tudo. Lembro-me de que Tavito arregalou os olhos e desferiu uma frase que, apesar de seu exagero (ou por isso mesmo), nunca esqueci. Disse-me ele: "Diga a ela que se ela desistir eu também desisto". Foi quando apareceu novamente em nosso caminho o Baleiro.

Após o contato que fizemos com ele, Kana se animou a mandar-lhe uma melodia. Muito tempo depois, quando já tínhamos perdido a esperança de que algo fosse acontecer, recebi um e-mail dele com uma gravação na qual ele cantava a melodia de Kana com uma letra sua. E uma bela letra (O Amor Viajou foi o nome que ele lhe deu), que casava perfeitamente com a melodia. Kana ficou exultante. Aquela parceria era-lhe um oásis em meio ao deserto existencial onde se encontrava. E a alegria foi ainda maior quando no final do ano passado ele nos avisou que a estava gravando em seu novo CD (O Disco do Ano, lançado este mês). Não exagero ao dizer que esse acontecimento foi um divisor de águas na carreira de Kana, pois foi a partir dele que ela resolveu virar a página do malfadado disco anterior e decidiu por fim pensar em gravar um disco novo, o Em Obras, que segue em obras.

Um dia, comovido, escrevi-lhe agradecendo por tudo o que fizera por Kana. Sua resposta me comoveu mais ainda. Vou até tomar a liberdade de transcrevê-la (acho que ele não vai se ofender por minha inconfidência), pois ela diz muito mais a respeito de Zeca que de Kana. Escreveu-me ele: "Oi, Léo, não é generosidade, porque isso sugere bondade em demasia, coisa de que não sou dotado. A Kana é talentosa e me mandou uma melodia incrível, com uma leveza que quero imprimir neste novo disco, por isso a estou gravando. É merecimento, só isso."

Claro que todo artista sabe de sua capacidade, mas um artista conhecido enxergar tal capacidade em outros que não estão sob os holofotes é, sim, grandeza de espírito. Nesse quesito Zeca vai no sentido oposto ao de outros artistas. Lembro-me de que (já disse isso aqui, mas vale o repeteco) certa vez, numa entrevista que Gal concedeu a , disse-lhe ela "minha geração é imbatível". Uma frase infeliz e um desserviço aos que vieram depois dela, pois, como já disse, música não é futebol. Melhor do que entrar numas de competição entre gerações é agregar. E isso Zeca sabe fazer bem. Vejamos:

Zeca contribuiu pro fortalecimento das carreiras dos emergentes (insurgentes?) Kléber Albuquerque e Vanessa Bumagny (entre outros); abriu um selo, o Saravá Discos, pelo qual lançou trabalhos de nomes como os de seus conterrâneos Antonio Vieira (que, octogenário, gravou um disco pela primeira vez, com pompa e circunstância) e Lopes Bogéa (póstumo); concluiu o até então inacabado (e melhor) disco de Sérgio Sampaio, Cruel; produziu o mais novo de Odair José; gravou canções de, por exemplo, Luiz Ayrão e Benito di Paula; em seu Baile do Baleiro faz-se de coadjuvante pra deixar brilhar de artistas novos a nomes esquecidos (certa vez assisti a um emocionado e emocionante Márcio Greyck); resgatou de uma precoce aposentadoria Raimundo Fagner, com quem gravou um CD em dupla; além do mais, é um artista ousado e corajoso, a ponto de escrever com verve crítica, e sem medo de incomodar (e incomodando), a respeito de assuntos como Tiririca (leia aqui) ou o roubo do Rolex de um apresentador do plim-plim (leia aqui - este é outro link, não o da Folha, pra que não-assinantes possam ler)... Se eu não parar, não acabo hoje!

***

O que um indivíduo faz de sua carreira é responsabilidade exclusiva dele mesmo, mas sempre é benfazeja a aparição de alguém que se oferece pra dar um empurrãozinho na subida da ladeira. Kana (assim como Kléber, Vanessa e tantos outros) continua trilhando seu caminho, entre tropeços e acertos, pagando pra ver onde vai dar, mas é importante enaltecer a generosidade, sim, de gente como Zeca, que vem de uma árvore cujos frutos são cada vez mais raros. Defeitos? Bolas, o moço é humano, né? No entanto, não fica bem eu vir aqui no dia de seu aniversário expô-los em blog público. Já me bastam os meus, que aumentam a cada dia (a exemplo da barriga).

Zeca, meu velho, parabéns (menos pelo aniversário que pelo coração)! Calma aí!


***

O Amor Viajou (Kana - Zeca Baleiro)

20 comentários:

  1. Gabriel de Almeida Prado11 de abril de 2012 às 06:20

    Pô, o Zeca é Baleiro mas você também "mandou Bala" nesse texto, hein? Hahahaha

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    1. Gabo:

      Fazemos o que podemos com as balas que temos. Hahaha!!!

      Abração do
      Léo.

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  2. Belíssimo texto! Parabéns a você, ao Zeca e à Kana!

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  3. Léo, valeu a citação, mas cabe uma correção: o Zeca fez dois shows no Villaggio, em 1996, ambos com bom público. Esse a que o Élio se refere foi no outro bar, o "Quase Acústico" (ex-Porque Hoje é Sábado), na rua Santo Antonio, na mesma época. Pleno sábado, deu absolutamente zero de público. O cara nem se abalou e ficamos ali, eu, Rozana, Elinho, Zeca Baleiro e a mulher dele, batendo papo pra passar o tempo. No ano seguinte ele gravou seu primeiro CD e começou a decolar para o sucesso.

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    1. Valeu pela correção, Zé. Corrigi, vê se tá certo agora.

      Abraços,
      Léo.

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  4. Salve Leo ,e seu texto emocionado.
    Parabens à você pelo texto Parabens à Kana
    pela resistência e Parabens ao Zeca por tudo
    que vc citou no texto.

    Bj
    Izabel

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  5. Excelente artigo, Léo ! Adorei ! Abraços prá você e prá Kana !!! :-)

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    1. Valeu, meu caro Mr. Goldman!

      Abração do
      Léo.

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    2. Léo,
      parabéns. O texto está lindo. E a música de Kana é linda também! Quer saber? É a minha preferida do "DISCO DO ANO". Casamento perfeito entre letra e música. Eu ouço e me sinto em Honolulu, vendo aquelas moças havaianas, dançando no ritmo contangiante da canção. Muito, muito, muito legal! Sucesso pra você e pra Kana!

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    3. Que bom, Soninha! Muito gente tem gostado. Espero que seja a primeira de muitas boas parcerias.

      Abração do
      Léo.

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  6. Oi Léo! O seu texto está à altura da generosidade e do bom caráter do grande Zeca. Ele tem outra qualidade: trata os fãs com o maior carinho e respeito, apesar dos exageros de alguns e está sempre de bom humor, além de guardar o nome de cada fã que conversa com ele mais de uma vez!Eu sempre brinco dizendo que o Zeca é o sonho de todo fã: canta de tudo, grava muito faz muito show, lança artistas novos, enfim, Zeca é tudo!! (by MPB-FM!)
    Bj p/ vc e pra Kana!

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    1. Oi, Klaudia!

      É tão gratificante quando um ídolo da gente é também um ser humano especial, né? Eu, pra falar a verdade, depois de uma ou duas decepções, prefiro manter distância dos ídolos, pra não perder a imagem que criei deles. Ainda bem que com o Zeca a coisa foi fluindo naturalmente.

      Beijão do
      Léo.

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  7. Linda crônica Leo. Parabéns .Rô Castelo

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  8. Teu texto me comoveu, sinceramente, Léo. Muito mesmo!
    Não te direi o que acho de Zeca! Pouparei teu olhos!
    rsrsrsrs....beijo!

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