quarta-feira, 23 de maio de 2012

Crônicas Desclassificadas: 40) Parabéns pra mim

Dia desses, remexendo nuns guardados à procura de não sei o quê, fiquei deveras emocionado ao encontrar um conto sobrevivente dentre os muitos que escrevi quando era moleque. Não sei precisar ao certo a idade que eu tinha quando o escrevi (nele não consta a data), mas, como estava batido a máquina (de escrever), imagino que eu tivesse por volta de 15 ou 16 anos (talvez menos). Comecei a lê-lo e me peguei sorrindo como um pai que reconhece lampejos de talento no filho.

Naquela época eu consumia muita literatura policial, de aventura, de suspense e terror, então é fácil reconhecer impressas nas linhas do conto as influências do garoto leitor. E o conto até que não está mal! Então, pensei, por que não o publicar aqui? Afinal, se o editor (eu mesmo) deu sinal verde, é porque não vai denegrir a imagem do blog. Espero que ele esteja mais certo que condescendente. 

Bem, no mais creio que os leitores entenderão que, como se trata de um conto escrito por um garoto, não podemos ser muito severos. Duas coisas interessantes: 1) revisando-o, encontrei poucos erros, nada que pudesse parecer sobrenatural, apenas um "haviam" equivocado, uma vírgula de mais, um acento de menos, enfim, bobaginhas; e 2) o conto é narrado em primeira pessoa por uma personagem feminina! Seriam prematuros ecos buarqueanos? Deixemos  de preâmbulos, então, e vamos a ele:

Parabéns pra Mim

O despertador tocou. Instintivamente o desliguei e virei pro outro lado. Dormi de novo, se é que eu havia acordado. Tive um sonho terrível, no qual eu me encontrava presa dentro de um caixão. Eu tentava gritar e não saía som algum de minha boca. Num esforço sobrenatural consegui, enfim, soltar um grito, e acordei banhada em suor.

Só então percebi que estava quarenta minutos atrasada. Dei um salto da cama e me vesti às carreiras. Bati a porta, sem trancá-la, e corri pra rua sem me dar conta de que não havia feito meu serviço matinal de toalete. Peguei o metrô na estação Saúde, que era a mais próxima de minha casa. Como sempre, não tinha nenhum assento vago. Tive que ir em pé, tentando ainda me esquivar dos aproveitadores de plantão, que sempre tentam "tirar uma casquinha" de moças como eu nessas ocasiões.

Só depois de descer na estação São Bento foi que percebi que era dia do meu aniversário: sexta-feira 13 de agosto. Haviam se passado exatamente vinte e... Bem, vinte e poucos anos desde o dia do meu nascimento, que, por coincidência, também caiu numa sexta-feira. Tive que soltar um suspiro juntamente com um "puta que pariu" que, por sorte, não chegou a ser dito, ficando só no pensamento.

Fiz uma rápida avaliação da situação em que me encontrava e percebi a merda que eu era. Daquela menininha mimada que era a única alegria dos pais, eu havia me transformado numa mulher frustrada e sem expectativa que amargava um servicinho mixuruca de secretária num escritório de advocacia de quinta categoria e nas horas vagas perdia tempo lendo romances baratos ou então se embebedando de uísque nacional e ouvindo música de fossa.

É, eu realmente era uma merda! Viera do interior aos 18 anos achando que iria acontecer na cidade grande, tendo debaixo do braço apenas um diploma de colegial e um curso ralé de datilografia. Mas eu até poderia ter me dado bem, se não fosse o Marcos, aquele filho da puta aproveitador! Chegou com aquela cara de maior abandonado, foi chegando, chegando, se insinuando, pedindo colo, e em pouco tempo a caipirona ingênua já tava de quatro por ele. É, é isso mesmo, de quatro! E em todos os sentidos. Tinha entregado meu corpo, minha casa, meu dinheiro... E, no final das contas, pra quê? Pra ele me trocar pela franguinha da Suzana, minha melhor amiga. Pode?

Mas também quem manda ser sonsa? Ir assim acreditando em todo mundo, onde já se viu? Mas às vezes eu ainda acho que é essa maldita data de nascimento! Meus pais sempre me confortaram, dizendo que era um dia de muita sorte pra eles, pois eu tinha nascido no dia em que eles completaram um ano de casados, que eu era um presente de Deus pra eles etc. Mas eu nunca acreditei muito neles, não. Sempre procurei deixar de lado essa coisa de superstição, mas sempre acontece algo pra me deixar meio cabreira.

A porta do elevador se abriu e, através das duas portas de vidro, vi uma moça de cabelos loiros e óculos "fundo de garrafa" sentada na minha mesa usando a minha máquina de escrever. Abri uma das portas e, antes que eu pudesse pronunciar uma única palavra, ela foi logo me indagando:

"Bom dia. Em que posso ajudá-la?"

"'Em que posso ajudá-la?'. Escuta aqui, ô meu bem, eu é que te pergunto em que posso te ajudar. E, antes de mais nada, vai logo levantando essa bunda suja daí, antes que eu perca a paciência e te tire daí eu mesma!", fui logo engrossando.

"Acho que eu não entendi direito, minha senhora."

"Em primeiro lugar, senhora é a puta que pariu! E, em segundo, eu é que não tô entendendo direito, e acho bom você começar a se explicar bem depressinha!"

Realmente os meus aniversários não eram os dias mais felizes da minha vida, sempre me causavam uma inexplicável irritação, como se eu 'tivesse "naqueles dias", ainda mais chegando atrasada no trabalho e encontrando uma impostora no meu lugar.

"Moça, acho melhor a senhora se acalmar. Espere um minuto que eu vou pegar um copo d'água com açúcar..."

"Eu não quero copo ne..."

"O que é que está havendo aqui?", a voz era do dr. Epaminondas Sampaio, um senhor alto, magro, grisalho, já passando da casa dos 40 [notem que essa era minha imagem de uma pessoa de 40 anos na época], em outras palavras: meu chefe.

"Que bom que o senhor apareceu, seu Epaminondas, eu estava justamente fazendo a mesma pergunta pra essa moça aqui que estava sentada no meu lugar", falei eu, um pouco mais tranquila com a presença do meu patrão.

"Quem é a senhora, afinal?", perguntou seu Epaminondas, e dirigindo-se a... A mim!

"Essa moça entrou aqui aos berros, dr., e foi logo me expulsando de minha mesa de trabalho..."

"Acho melhor a senhora se retirar, a menos que tenha uma boa explicação pra todo esse carnaval", ele se dirigiu novamente a mim, e dessa vez me acometeu uma estranha sensação de irrealidade.

"O senhor não se lembra de mim? Sou eu, a Roseli, sua secretária...", balbuciei.

"Que espécie de brincadeira é essa, minha senhora? Eu jamais a vi antes em toda a minha vida! Ponha-se imediatamente daqui pra fora, antes que eu seja obrigado a chamar a segurança!"

Nesse momento, perdi os sentidos, e, quando acordei, estava sentada no sofá que ficava ao lado de minha mesa. Olhei ao redor, pra verificar se tinha sido um sonho, até que ao meu lado percebi a minha rival, que me encarava com os olhos esbugalhados por trás das grossas lentes de seus óculos.

"A senhora se sente melhor?"

A sirigaita insistia em me chamar de senhora, mas, estando eu ainda um pouco fraca e notando o olhar de desaprovação de seu Epaminondas, resolvi mentir: "Sim, acho que estou melhor agora. Vocês me desculpem, às vezes tenho algumas crises e... Bem, tenham um bom dia."

Não esperei o elevador, desci pela escada, e bem depressa, antes que tivesse outro desmaio. Saí na rua XV de Novembro e fui andando em direção ao centro, sem dar por mim. Quando me dei conta, estava já na Liberdade, em frente à Igreja das Almas. Entrei. Sentei-me em um dos últimos bancos e fiquei assim como que hipnotizada durante um tempo considerável, olhando pro nada.

De repente, senti uma imensa paz por todo o meu corpo, um sentimento de realização como jamais sentira antes. Resolvi voltar pra casa. Peguei o metrô e desci na estação Saúde. Eu morava no andar térreo de um prédio caindo aos pedaços, a cinco minutos da estação. Lá chegando, me dirigi à porta que eu agora me lembrava perfeitamente de ter deixado aberta. Curioso. Ela estava fechada. Abri minha bolsa e comecei a procurar a maldita chave por todos os cantos, porém, sem sucesso. 

Num gesto de desespero e exaustão, comecei a esmurrar a porta, como se assim, por um passe de mágica, ela fosse se abrir. Qual não foi minha surpresa ao vê-la abrir-se. Apareceu um garotinho que não devia ter mais de seis anos e parou em frente à porta entreaberta me olhando fixamente e sem nada dizer.

"Oi. Quem é você?", perguntei.

"Meu nome é Gilberto. E você, quem é?"

"Eu me chamo Roseli. E moro aqui."

"Em qual andar?"

A porta se abriu por completo e apareceu uma senhora gorda com um avental amarrado à cintura e um lenço na cabeça. Deveria ter uns 40 e poucos anos.

"Pois não?"

"Olha, minha senhora, deve estar havendo algum engano. Meu nome é Roseli e eu moro neste apartamento há cinco anos e...

"Impossível!", exclamou a mulher, abismada. "Eu moro aqui há treze anos e nunca vi você antes."

Novamente o número treze me trazendo surpresas.

"Gil, corre, vai chamar o zelador, rápido!"

Estive à beira de outro desmaio, mas me contive. Passamos momentos constrangedores, à espera do zelador, até que enfim ele apareceu. Meu rosto se iluminou ao ver aquele senhor atarracado de meia idade, calça social e tênis e um chapéu fora de moda.

"Seu Afonso", falei eu, "o senhor pode me explicar quem é essa senhora que eu encontrei no meu apartamento?"

"Perdão, senhora, mas eu não a conheço."

Mais um a me chamar de senhora, isso já estava me irritando. Tentei manter a tranquilidade e abri a bolsa à procura de algum documento que provasse que eu não estava mentindo. Revirei a bolsa pelo avesso e não encontrei nada. Nem identidade, carteira profissional, nada. Nem cartas ou pagamentos em meu nome que comprovassem meu endereço. Não havia nada!

A mulher, o garoto e seu Afonso me olhavam como se estivessem vendo uma louca. Seu Afonso, que era um homem educado e de um ótimo português, me perguntou se eu queria um copo de água com açúcar ou qualquer outra espécie de ajuda. Depois de fitá-lo durante alguns instantes, agradeci e me retirei. Sentei-me na calçada com os braços ao redor dos joelhos e chorei, um choro abundante como havia muito não me acometia. Que droga de aniversário! Que mal eu teria feito pra Deus pra merecer um presente assim?

Fiquei ali durante um bom tempo, chorando à beça, até que me veio à mente uma ideia desesperada: ir procurar a Suzana e o Marcos, que estavam morando juntos. Levantei-me, enxuguei as lágrimas, engoli meu orgulho e fui até a casa deles, que ficava a alguns quarteirões de onde eu morava (morava?). O Marcos trabalhava na compensação de um banco, à noite, portanto, deveria estar em casa a essas horas.

Continua (leia a 2ª parte aqui).

***

Digitando, percebi que o conto é meio grande, quero dizer, mais ainda do que costumam ser os textos que escrevo aqui, então, pra não cansar o leitor (e pra fazer certo suspense também, claro), resolvi dividi-lo em dois. Prometo nos próximos dias postar a outra metade.

6 comentários:

  1. Oi Léo,
    Me emocionei tanto lendo seu conto;fiquei imaginando você um adolescente (nerd)escrevendo um conto tão bom!Ai ai...a vida as vezes nos reserva esses momentos de alegria. Fiquei muito feliz em saber que meu ÍDOLO já nasceu talentoso.
    Obrigada por mais essa emoção meu contista preferido.

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    1. oi, Lucinda! Gostei dos elogios, embora não me sinta à altura. Só não concordei com o "nerd". Hahaha!

      Beijos e até já,
      Léo.

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  2. adoro seus contos ,parabenssssssssssssssssssssssss

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    1. Valeu, Tim! Você é gente que faz!!!!!!!!!!!!!!!

      Abração do
      Léo.

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